sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9289: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (4): Fragmentos Genuínos - 2

FRAGMENTOS GENUÍNOS - 2

Por Carlos Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66


Retrospectivo agora um acidente marcante e que emocionou toda a gente; um dos condutores da Companhia de Formação e Serviços ao pôr uma GMC em movimento fê-lo no sentido inverso, entalando contra a parede do refeitório um camarada que teve morte imediata; nomeado o Alf. Mil. Pamplona para tratar das formalidades do enterro do jovem, lá fui também nomeado juntamente com mais seis praças companheiros do infortunado. Transportando-nos em duas viaturas uma maior onde ia eu próprio ao lado do condutor, indo na retaguarda em bancos laterais os praças tendo ao centro o caixão vindo atrás um velhinho Willis com um condutor a transportar o Alferes. Deslocámo-nos para o cemitério de Olhão por aí existir uma casa mortuária, aí já se encontrando no exterior os familiares do finado, onde foi feita a autópsia ao corpo, a que o Alferes teve de assistir para vir a elaborar o respectivo auto. Terminada que foi a autópsia, o coveiro que servia de ajudante ao médico, pegou em todos os utensílios cirúrgicos utilizados para o efeito, meteu-os num alguidar de plástico e veio ao exterior para uma torneira existente junto dos familiares, lavar toda aquela parafernalha ensanguentada. Que doloroso foi assistir aquelas manifestações pungentes e revoltadas.

Terminou esta fase ainda com a soldadura do caixão cuja execução digno de ser comparado com um das momentos de Hitchkoc. Aproximou-se a noite e como a casa mortuária não tinha luz, o expedito coveiro (não tinha o olho direito) foi buscar um gasómetro e foi a essa luz que o soldador fez o trabalho. Episodicamente saiam do caixão sopros de ar que digo com franqueza me aterrorizavam. Num dos intervalos que fazia para espairecer, um dos militares que nos acompanhavam, lembrou-me que não tinham jantado, pelo que dando dinheiro a um o encarreguei de ir comprar umas sandes e bebidas. Terminadas que foram estas peripécias arrancámos para Portel, agora levando atrás da viatura em que ia o caixão o carro com os familiares. Os militares aproveitaram a viagem para degustarem a merenda que tinham ido comprar; creio que a mesa terá sido o caixão vindo logo atrás o carro da família.

Participei, de homenagem durante toda a noite junto do desventurado defunto ate é a hora do funeral logo nos alvores da manhã.  A noite estava extremamente fria, não houve por parte de ninguém a oferta nem sequer de um golo de água e muito chegados a Portel, já alta noite, ali mantivemos um sentinela, em que também menos foi dirigida uma palavra. A tropa foi a responsável pela morte do ente querido e nós éramos a sua face. Após o cumprimento do regulamentado protocolarmente com a execução de salvas no acto final, antes do corpo baixar à terra, seriam pouco mais de 8h00, dirigimo-nos ao posto da GNR onde me foi dado assistir a uma cena perfeitamente rocambolesca: o Pamplona fardado com o capote (era bonito) cinzento com as virolas da gola em vermelho entrou no Posto, e provavelmente por ter ouvido barulho, apareceu numa porta lateral um Cabo já quarentão, de camisa da farda e em ceroulas; ficou varado: ainda ameaçou bater a pala, nunca vi expressão tão cómica. O Pamplona lá o fez vir a si pelo que rapidamente se despachou carimbando a guia de marcha e arrancámos direitos a Tavira, não sem antes nos banquetearmos com um suculento almoço oferecido pelo inefável jovem alferes.

Mais dois acontecimentos durante a minha estadia nesta cidade antes de vir a ser mandado apresentar em Abrantes já mobilizado para a Guiné, de notar que o meu irmão mais velho tinha acabado de chegar da guerra de Angola.

A primeira é demonstrativo da violência sobranceria e displicência eram tratados os jovens entregues à guarda desta instituição e ocorreu ainda durante o período em que estava a tirar a especialidade.

A actividade que fomos desenvolver nesse dia tratou-se de numa improvisada carreira de tiro que existia nas traseiras da enfermaria fazer treino de tiro com a metralhadora Dryse. Depois da necessárias recomendações pelo jovem alferes Cadete, Oficial de Tiro para aquela actividade, lá começámos a tarefa. Durante a sua actuação, o Silva de Braga, Professor Primário, deixou encravar a arma e inadvertidamente ainda deitado levantou-a do chão, de imediato o crápula do Alf Cadete lhe espetou um pontapé, que lhe quebrou duas costelas.

Não posso de deixar de contar esta rocambolesca estória quase no fim da minha estada em Tavira, um dos instruendos do Curso de Oficiais Milicianos de Infantaria que aqui decorreu, foi intimado a comparecer em Tribunal Civil no Porto para ser julgado. Fui nomeado como guarda do jovem em causa para o acompanhar ao julgamento e no caso de ser condenado teria de o trazer de regresso ao Quartel. Em conversa com o elemento foi-me transmitido por este, que praticamente estava assegurado que seriam os dois absolvidos, o pai também era arguido no processo. Então lá nos preparamos para apanhar o comboio do fim da tarde que chegou no dia seguinte de manhã a S. Bento. Mandei o meu “preso” levar uma mala com roupa civil e eu fiz o mesmo. Sai do Quartel de Tavira um desconchavado cabo-miliciano, já bastante conhecido fardado e de pistola à cintura e um anafado Cadete na sua coquete farda. Assim que o comboio arrancou, fomos imediatamente a casa de banho vestir a nossa roupa e transformámo-nos em dois jovens em amena cavaqueira a caminho do Porto, não sem antes eu ter dito: - Oh "meu a partir de agora amigo”, não penses em te pirar porque nem que vás até Paris eu vou atrás de ti.

Fizemos uma longa e incómoda viagem e ao chegarmos à Estação de S. Bento encontrava-se meio encoberto um casal que ao ver-nos aproximar se desmanchou no melhor dos sorrisos de boas vindas que se pode receber, não entendi o que esperavam ver. Lá nos metemos no carro do pai do jovem e seguimos de imediato para o Tribunal, mudámos dentro do carro de roupa convenientemente, e foi realizado o julgamento que de facto deu na absolvição.

Ainda me convidaram para ir a casa deles mas estava nos meus planos vir para casa - Caxias - para desfrutar do fim de semana e abalei imediatamente para a Estação de Comboio para passados poucos minutos embarcar. Apenas já depois de estar no comboio mudei de roupa, até a malvada da pistola foi à cintura até aí. Enfim coisas de um desmiolado e imberbe saloio.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. poste de 28 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9279: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (3): Fragmentos Genuínos - 1

5 comentários:

Anónimo disse...

De facto Tavira,era assim:Rancho in_
tragável;falta de água que era salo_
bra.A Atalaia com seu campo de tortu_
ras e o respectivo túnel;os escremen_
tos das alimárias que nos fim de se_
mana,durante o mercado rural ali mon_
tado,por lá abundavam,serviam de "amortecedor"às nossas"quedas"ao soar
da celebre"DEITOU";a lama das sali_
nas;os instrutores parece que escol_
hidos a dedo para aquela Unidade.O
meu foi o sr.Alf. R.P.Bom a ensinar
mas igualmente a vexar e inacessível.Naquele tempo o treino
com as MG 42 e/ou as Borsig(MG 34)
era feito nos Claustros do Convento
da Graça.Julho de 1967.
Carlos Nabeiro.

Hélder Valério disse...

Pois é, caro Carlos Rios

Quando se começam a 'desatar' os nós da memória, as histórias surgem a ritmo impressionante.
Estas recordações de Tavira serão comuns a muitas gerações de 'mancebos' que por lá passaram. Falando com amigos vários, não há de facto muitas diferenças nos relatos das várias provações.
Não foi o meu caso, que fui 'contemplado' com as maravilhas da instrução da EPC que, como deves calcular, rivalizava com as da EPA e com Tavira. Parece que, por essas épocas, onde havia menos 'rigor' era nas Caldas, pelo menos ao pessoal que por lá passou nunca ouvi nada de semelhante ao relatado nos outros locais.

Mas, já agora, o episódio relatado é um bocado macabro, não é verdade? Com situações dessas, quando chegaram a África já iam 'vacinados'...

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Caros camaradas

Não façam confusão com rigor e disciplina e algumas "bestas quadradas".
Encontrei durante o meu serviço militar além de algumas "bestas" também muitos com grande capacidade de liderança.
Fui durante algum tempo instrutor de tiro, e aí sempre fui muito rigoroso, dando instruções prévias de que se alguma anomalia acontecesse , não se mexiam, apenas levantavam a mão direita.
Nunca foi preciso bater em ninguém muito menos partir costelas.
Na EPA a disciplina era rigorosa mas não encontrei nenhuma "besta", tendo inclusive um instrutor tenente, filho de um brigadeiro muito conhecido na altura, que não tinha jeito nenhum para militar, era um "porreiraço".
Na EPI,havia por lá algumas "bestinhas", que tinham um Q.I. muito baixo,por isso facilmente lhes dávamos a volta.
Estas "bestas quadradas" eram quase sempre uns invertebrados e uns incompetentes em situação de combate, do qual fugiam sempre que tivessem oportunidade, ou mesmo sem ela.

Um alfa bravo

C.Martins

Manuel Carvalho disse...

Caro Camarada Carlos Nabeiro

Fomos contemporaneos em Tavira, fui para lá das Caldas da Rainha de comboio no dia de S. João 24 de Junho de 67 tirar a especialidade de Armas Pesadas. É como dizes a comida era má e racionada, as batatas eram contadas e divididas irmãmente, os bocados pequenos tambem eram dividedos, a sopa tambem não comíamos a que queriamos, enfim ao fim de tres meses sem vir a casa era do Porto ao chegar com menos 13 quilos, o que uma mãe sofre.
Quanto á parte militar tive dois seres humanos de grande qualidade a quem cumprimento e vou dizer os nomes porque eles merecem tenente Chumbinho e Cabo Mil. Luis,eram exigentes mas justos e humanos.
Ao contrario de muita gente a minha recruta foi muito dura, Caldas da rainha Abril de 67 quarta companhia não vou dizer nomes.Tivemos várias fraturas.
Relativamente à fome em Tavira tenho muitas recordações até porque para mim a comidinha sempre teve a sua importancia e ali era pouca e má. Tenho ideia que os serviços que nos mais gostavamos de fazer eram as fachinas à cozinha, porque enquanto trabalhavamos iamos comendo.Lembro-me do Ten. Trotil numa refeição de massa com carne ir a cozinha dar duas chicotadas nos cozinheiros, mandar recolher as terrinas e elas voltarem cheias de carne. Vidas,,,,,,,,

Um abraço para todos e um bom ano

Manuel Joaquim Carvalho
C Caç 2366 Jolmete 68/70

Ricardo Chumbinho disse...

Tenente Chumbinho? Seria Capitão António Chumbinho....? Em Aldeia Formosa? No caso, seria o meu pai...