segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9302: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (5): Fragmentos Genuínos - 3

FRAGMENTOS GENUÍNOS - 3

Por Carlos Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66

Durante seis dias, passámos primeiro pelo Funchal para irmos buscar mais uma Companhia, navegámos a caminho de Bissau, correu uma agradável viagem sempre com mar calmo e bom tempo; pela primeira vez vi uns curiosíssimos peixes-voadores, que acompanharam diversas vezes o navegar do navio ao seu lado. Aqui vim também a reparar na extrema estratificação existente na sociedade portuguesa; que profunda ignorância a minha: os graduados tinham aceitáveis acomodações e uma sala para refeições; os restantes camaradas, que iam exactamente com o mesmo fim que nós (a guerra) iam instalados a monte em deploráveis condições nos porões de carga e comiam em marmitas no convés do navio.

No Bar e sala de estar, onde passávamos a maior parte do tempo, adormeci um sábado nos sofás do mesmo só acordando com os ruídos estranhos na manhã seguinte; o padre preparava o espaço para a realização de uma missa. Lá tive que me levantar de madrugada, 8h00, e desandar.

O famigerado Niassa

Ao aproximar-nos de terra vislumbrava-se à distancia uma paisagem deslumbrante, ainda que difusamente, o ar era pesado e o calor abrasador começava a fazer sentir-se, de um conjunto de ilhas fronteiras a Bissau, (arquipélago dos Bijagós) aonde nos dirigimos e fundeámos entre a cidade e o agora bem visível arquipélago, que nos transmitia uma sensação de placidez com a sua luxuriante floresta onde eram visíveis alguns conjuntos de moranças (tabancas) numa mostra exuberante e exótica de tipicismo tropical que já imaginava devido às profundas explanações e ao imenso espólio fotográfico a que tivera acesso em longas e agradáveis conversas durante toda a viagem, com o malogrado, querido amigo e conterrâneo Vasco Cardoso.

Imagem de uma tabanca situada em lugar de pouca mata e onde se pode verificar o seu aspecto exótico e tipicamente tropical. Ao fundo uma luxuriante, densa e misteriosa floresta.

O povo bijagó é nómada entre as ilhas do arquipélago e cultiva principalmente arroz

Uma bolanha cultivada com arroz

Braço de mar ou bolon, em maré baixa

Tabanca bijagó. As aldeias bijagós estão sempre cercadas de árvores e afastadas da costa.

Pouco tempo tivemos para usufruir deste ambiente, onde o calor era já abrasador, porquanto de imediato começamos a transferir para os botes que nos levaram ao cais, todas as nossas bagagens e afins. De imediato comecei a sentir um profundo desalento quando cheguei a um degradado cais de desembarque e pude constatar o movimento que nele se fazia e a miséria que dele parecia depreender-se, onde pululavam um número indeterminado de crianças desnudas ou em farrapos e que se ofereciam para transportar as nossas coisas, (houve de imediato quem aceitasse) tinham em comum um pormenor que na altura me chamou a atenção apresentavam grandes ventres e os umbigos de alguns eram bastantes salientes, a tudo isto juntava-se o ar sobranceiro e displicente que uns quantos indivíduos, alguns fardados, apresentavam. O ar era seco, denso, agreste, enfim; parecia quase irrespirável; a simples tarefa de transportarmos para as lanchas as nossas bagagens e afins faziam-nos estar permanentemente a transpirar com a roupa colada ao corpo como que pegajosa parecendo fazer parte da pele, era profundamente incomodativo a par do inóspito ar ambiente que em lugar das fragâncias e odores tropicais que imaginava ir encontrar. Fui confrontado assim que comecei a caminhar, com o sufocante respirar ao cheiro a terra vermelha queimada, típica do continente africano, ainda acompanhado de episódicos pequenos tufões que se levantavam em muitas das ruas, que em parte eram de terra e com pouca limpeza, o que começou a germinar em mim um sentimento de rejeição em relação a este pedaço (dito) de Portugal. Não, pensava eu. Aqui não fico, isto não tem nada a ver com a minha já saudosa linha do Estoril onde nasci e cresci e onde em comparação escolho os maravilhosos e esplendorosos nasceres do sol, em que sorvendo uma brisa agradável e revigorante, remando numa “chata”, navegava junto da costa para recolher os “galrichos”, postos na noite anterior para fazer decorrer uma maré, sendo que escolhíamos as noites em que um manto diáfano de luar nos alumiava transmitido pelo nosso satélite, na sua majestática quietude, de que usufruíamos para a minha falhada pesca artesanal. Surgiam nesta aérea cabeça mais alguns pingos nostálgicos.

Forte da Giribita visto da Praia de Caxias

Depois de em Stª. Luzia recebermos directamente o armamento, conselhos e despedidas de grande amizade e alvoroço, juntámos um grupo em que se incluía o Vasco Cardoso, o Bastos, o Mota e mais alguns que sendo guiados pelo malogrado Vasco, que já aqui tinha estado quando ainda na adolescência, fomos dar uma volta pela cidade e terminar no “Pireza” uma pequena cervejaria cujo proprietário o Vasco conhecia e onde a uma pergunta posta por este, apenas pude responder a frase que se veio a tornar paradigmática entre os diversos elementos que se deslocavam a Bissau: "a cidade como vila é uma aldeia bastante grande".

Vista aérea de Bissau em 1966

Uma rua de Bissau – havia muitas assim

(Continua)
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Vd. último poste da série de 30 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9289: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (4): Fragmentos Genuínos - 2

2 comentários:

Aníbal Magalhães disse...

Amigo Carlos Rios:

A foto que apresenta como "Imagem de uma tabanca......." diz respeito á tabanca de Bissum-Naga.
Foto tirada em Janeiro de 1970.
Bissum-Naga, C.Caç.2465 (1969/70)

Um abraço

Aníbal Magalhães

Anónimo disse...

Caro Carlos Rios

É sempre um prazer, ler a sua bem descrita "crónica".
Fluente, melódica, apesar de falar de um tempo, ou melhor, uma viagem para a guerra.

Acompanhei-os naquele tempo, ouvindo apenas as notícias na rádio ou nos jornais, esporádicas na TV, mas hoje, vocês contam-me como as coisas se passaram, desde o embarque ao regresso.

A minha curiosidade de adolescente, permanece, e sou a vossa mais fiel
leitora.

Obrigada pelo reviver das vossas memórias, que me transportam às décadas de sessenta,setenta, se bem, que de má memória.

Saudações amigas da

Felismina