1. Mensagem de Manuel Joaquim* (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 6 de Janeiro de 2012:
Meus queridos camaradas,
Aqui vai mais um "textito" que talvez tenha algum interesse, "Que parvo que eu fui!". Pois é, fui parvo naquela altura mas não me serviu de aviso para evitar outras parvoíces ao longo da vida.
Abraço grande
Manuel Joaquim
Memórias de Manuel Joaquim (4)
Que parvo que eu fui!
Julho/1965. No Campo Militar de Sta. Margarida o BCaç 1857 preparava a sua ida para a Guiné, marcada para o fim do mês. No início das manhãs respirava-se um ar seco, com alguma frescura . Naquela manhã também mas, para nós, adivinhava-se um dia ainda mais tórrido que os anteriores, a dar-nos cabo do físico nos terrenos do Campo.
Não me lembro de quase nada no que se refere aos exercícios militares a não ser que, desta vez e a dada altura, coube à minha Secção fazer qualquer coisa do género patrulhamento. Desta missão guardo na memória coisa pouca, algumas imagens e sensações. Lembro-me de uma paisagem agreste pouco arborizada, de sofrer um calor intenso envolto em aromas fortes vindos do pisoteio de plantas secas que cobriam um solo também seco, e por vezes pedregoso, nada “amigo” como também o não era um mato cheio de estevas cujas folhas pareciam expelir um óleo irritante que se nos agarrava às mãos e à cara.
Neste ambiente, a água dos cantis “voou” rapidamente e a sede apareceu. Não se esperou muito para ouvir vozes a suspirar por água. Demos por um ribeiro seco e vimos no seu leito, a alguma distância, uns tufos de verdura, sinal de água. A missão de patrulhamento (?) passou para segundo plano em relação à busca de água, seguimos o ribeiro em direção ao tufo de plantas verdes e viçosas mas água foi coisa que se não viu. Vi sim algo inesperado, uma aldeia ali perto. Mandei um soldado ler a placa que vislumbrei numa estrada, umas dezenas de metros abaixo, de modo a confirmar-me a nossa posição e a deixar-me mais descansado.
Carregueira, gritou-se da estrada.
Ao ouvir tal nome lembrei-me logo do meu amigo Formigo, na altura furriel miliciano vagomestre na Guiné e meu colega professor primário. É a sua aldeia natal!
A sede exasperava alguns. (Sede? Aquilo era sede? A Guiné irá mostrar-nos o que é ter sede!). O cansaço era muito, a jornada longa e a Carregueira ali tão perto! Que tal uma saidinha rápida para matar a sede e saber como estava o meu amigo? Há uns tempos já largos tinha-me escrito do Ingoré. Falei nisto à malta e, claro, este “convite à dança” foi logo aceite, efusivamente. Resolvi fazer uma pausa na “guerra”, saindo da área militar. Apanha-se a estrada e ala, a caminho da aldeia. Perguntei à primeira pessoa que encontrámos se sabia onde morava um militar que estava na guerra da Guiné, chamado Formigo.
- Olhem, é mesmo ali, aquela casa com um café (ou disse taberna?) na parte de baixo. A mãe dele deve lá estar a aviar.
E lá fomos todos contentes, não havia melhor lugar para matar a sede!
- Oh nosso cabo miliciano, se tiverem pena de nós talvez nos dêem de beber e apareça qualquer coisinha para trincar ...
- Sei lá, água darão mas comida... deve ser difícil. Não querias mais nada?!
Chegados à dita casa lá vou pela porta adentro, a Secção inteira atrás de mim toda “artilhada” de espingarda ao ombro mas com um ar abatido de cansaço, um cansaço real mas nitidamente exagerado. Deviam querer impressionar a senhora que até tinha um filho na tropa!
Ao entrar, enquanto os olhos se adaptavam à luz interior, vi um vulto a deslocar-se rapidamente à minha frente. Ao melhorar a visão reparei numa senhora a olhar para nós com ar interrogativo, por detrás do balcão.
- Bom dia, minha senhora!
- Bom dia, o que desejam?
- A senhora é a mãe do Joaquim Formigo Caetano? Sou um amigo...
Fui interrompido por algo que ela disse mas que não entendi e vi-a cambalear como se fosse desmaiar. Um pouco depois perguntou, muito aflita e ansiosa:
- Aconteceu-lhe alguma coisa? O que é que foi? Ai o meu filho!
- Não, não! Não aconteceu nada! É que eu sou amigo dele, queria saber como é que ele está! Vimos aqui para beber alguma coisa, estamos com muita sede, estamos em Sta. Margarida. Ao ver o nome de Carregueira lembrei-me do meu amigo Formigo, sabe, vivemos na mesma pensão em Leiria durante três anos e fomos colegas de curso. Ele está bem? ...
Enquanto durou a explicação a senhora lá se foi acalmando lentamente até que perguntou, num tom de voz seco e impessoal:
- O que querem beber?
Bebi água mas não fui acompanhado por aí além. A maior parte do grupo preferiu outras bebidas mais “finas”. Não esperavam pagar, pelos vistos! Enquanto bebíamos fui falando com a senhora acerca da minha convivência com o filho, da nossa amizade, da minha próxima ida para a Guiné, ela falou-me do pouco que dizia saber da vida do filho na guerra, etc. Passaram-se assim uns bons minutos de agradável conversa.
- Bem, muito obrigado pela sua atenção mas temos de ir embora. Quanto é a conta?
- São ... ( esqueci o valor)
Olhei para o grupo. Com que então queriam borla?! Vasculhei os bolsos sabendo que de lá não saía nada mas a ver se alguém se adiantava com uma moedita ou dizia alguma coisa. “Nicles”, tudo calado! Lá tive que ir a um bolso mais recolhido e puxar por uma nota guardada para outros gastos que não aqueles ali! Mas tudo bem, a culpa era toda minha, não tinha que me queixar de nada.
Despedidas feitas, abastecemo-nos de água numa fonte ali perto e lá regressámos ao Campo com um sério aviso a todos: “Espero que ninguém dê com a língua nos dentes! Não me lixem!
Tínhamos que completar a missão e uns bons quilómetros para andar até ao quartel.
Voltaram aqueles aromas fortes (agora rarefeitos por causa do calor), vindos do mato e de alguns pinheiros e eucaliptos dispersos e voltámos a ser fustigados pelas folhas pegajosas das estevas mais altas que, ainda hoje, me vêm à memória de vez em quando...
Foi só então, no regresso a Sta. Margarida e ao recordar a aflição daquela mãe, que tomei consciência da asneira que tinha praticado (“devíamos ter bebido primeiro e só depois eu falar do Formigo, que estúpido!”).
******
O silêncio sobre esta “fuga” não foi, na altura, quebrado por ninguém. Quanto ao melindre da situação havida na mercearia acho que só eu dei por ele (e isto só depois!). Nunca esqueci este episódio. Não pela infração militar cometida mas pelo pânico causado àquela senhora, a quem apareci abruptamente como um possível mensageiro da desgraça, trazendo notícias sobre o seu filho combatente na Guiné. Logo que o reencontrei, pedi-lhe que apresentasse as minhas desculpas à sua mãe. Mas estas desculpas não apagaram a asneira que pratiquei. Apetece-me dizer, parafraseando o título de uma canção recentemente na berra,
- Que parvo que eu fui!
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 11 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9341: Memórias de Manuel Joaquim (3): Est-il un ennemi?
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Quando em Fevereiro de 1971 vim gozar merecidas férias a meio da minha comissão, como era tradição, fui à minha empresa cumprimentar as largas dezenas de colegas que mantinha. Na primeira porta em que entrei vi um colega que tinha um filho também a cumprir a sua comissão de serviço na guerra colonial. Eu tinha embarcado para a Guiné em Abril de 1970 e ele em Maio para Moçambique.
Dou-lhe um abraço e pergunto-lhe com a maior naturalidade:- Então senhor Luís, está bom? Como está o Nunes?
O homem saiu disparado e eu fiquei com ar de parvo a olhar para nenhures. Alguém se abeirou de mim e me disse que o Nunes tinha falecido ao fim de um mês de comissão, ao que julgo vítima de uma armadilha.
Abraço
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira
Pois é, Manuel Joaquim, "que parvo que foste", mas quem é que estava preparado para essas situações?
Mesmo o que o Vinhal conta é também absolutamente natural. Lidávamos com essas notícias com alguma frequência e não nos ocorria a necessidade de tratar desses assuntos com 'punhos de renda' quando entrávamos à conversa com alguém, quando calhava a entrar, pois para mim até era mais vulgar evitar qualquer conversa sobre o que conhecia ou via ou vivia pela Guiné. Por todos os motivos que queiram.
Abraços
Hélder S.
Caro Manuel Joaquim
Também estive em Sta Margarida mas no meu caso apanhei lá frio de rachar.
Era um sítio ruim para nós soldados com poucos recursos para de lá sairmos e para lá regressarmos. Não havia transportes praticamente e mesmo quando íamos de comboio, ficávamos bastante longe quartel no meu caso o CIM comandado pelo o então coronel Maçanita. No dia que soube da minha mobilização tinha chegado de casa . O meu pai foi-me levar a Santarém onde apanhei um comboio às 6 da manhã e depois de muitas voltas, entrei no campo já passava da uma hora da tarde.
Pensei que ia levar uma porrada e levei na verdade. Nessa mesma tarde quando transportava o comandante de um batalhão que ia para Angola que fazia a pista de combate fui avisado da mobilização. Não sabia para onde ia mas devo confessar que até fiquei contente por sair dali embora o preço fosse alto.
Mas vou repetir-te com o «parvo que fui» pois era preferível estar ali do que a Guiné.
Um abraço
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