1. Em mensagem datada de 19 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) enviou-nos um poema de sua autoria a que deu o expressivo título:
Não sou nada, não sou ninguém
Aqui no alto das minhas recordações
Aqui do alto da minha serra
Aqui do alto de onde as recordações têm outro sabor
Eu sempre soube o amanhã
Eu sempre soube que todos os amanhãs são passos para o fim
Eu sempre soube que nada é eterno
Eu sempre soube que mesmo os amanhãs passos gigantescos para o futuro, são igualmente passos para o fim
Eu já andei muitos passos
Eu já me sinto cansado de tanto descer
Eu já estou num patamar em que tenho mais passado do que futuro
Eu sei que passo mais tempo a recordar do que a sonhar
Eu sei que já posso dizer com um sorriso, que não sou ninguém, não sou nada
porque eu sei que lutarei até ao fim, até para lá do fim
Eu sei que posso dizer que a minha terra está muito longe
Eu sei que posso dizer que a terra onde vivo não é a minha
Eu sei que não conheço as pedras das calçadas
Eu sei que não conheço as gentes que se cruzam comigo
Eu sei que vivi sempre em terras que não eram as minhas
Mas eu vou voltar à minha serra, nem que seja só por um dia, pelos caminhos de ontem de muitos ontens
As serras algarvias são diferentes das outras
São mais pequenas
Chove pouco, cai neve uma vez por século
Mas têm uma luz única
A paisagem é deslumbrante
O Sol incide naquela extensão enorme de Oceano
Naquela estrada marítima, naquele caminho marítimo
Refletindo-se nas dezenas de barcos que a cruzam constantemente
No muito ontem
Já tocado pela história, fico horas ali tentando imaginar os grandes Portugueses do passado
Os seus grandiosos feitos
Como seriam surpreendentes aqueles novos pedaços de Portugal
Coisas deslumbrantes e arrebatadoras com certeza
Muito maiores do que a história
Não a história maior do que eles
E desejava mesmo um dia poder lá ir
Extasiar na sua grandeza física, mas muito mais na sua grandeza humana
O tempo foi passando e eu fui esquecendo mais, mas sempre tocado
Sempre imaginando os feitos naquelas terras, as suas grandezas
E um dia quase sem perceber apareci dentro de um barco, o Niassa
Daquele barco naquele Atlântico eu olhei a minha serra com saudade
Chego à Guiné e a desilusão é muito grande
Eu chego mesmo a pensar que estou em 1400
Interior comigo, encontro os de 1963 a quem vamos render
Eles falam connosco, tentam nos dizer o máximo
Cada palavra que nos dizem, é uma afirmação de que aquilo, esteve, continua a estar igual
Quase dois longos anos se passam
E um dia aparecem outros para nos render
E nós temos para dizer o mesmo, nada
Naqueles primeiros anos deram-se muitos tiros
Limparam-se muitas estradas
Fez-se muitos golpes de mãos, trabalhou-se duro e com sacrifício
Resultados!
Em cada rendição estava sempre tudo igual, para não dizer pior
Mais triste me sinto hoje no meu emaranhado de recordações
Quanto mais penso, mais confirmo a inutilidade
E como posso dizer sou nada
Não sou ninguém
Ernesto Duarte
____________
Nota do editor:
Vd. último poste da série de 17 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11104: Blogpoesia (321): Não à filha-de-putice-da-vida, camarada! (Luís Graça)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
Interessante expressão:
"Em cada rendição estava sempre tudo igual, para não dizer pior"
Ernesto, meu amigo, gostei deste teu poema-desabafo mas não quero que o leves à letra para os teus tempos de hoje onde "não sou nada, não sou ninguém" só pode ser uma força de retórica no que te diz diretamente respeito.
É que quem escreve assim só pode ser ALGUÉM!
Um grande abraço do
Manuel Joaquim
Ernesto, adorei o poema, só não concordo com o título!...Qual nada, qual ninguém!... Eu sei que os poetas, algarvios ou não, têm liberdades criativos que não são permitidas aos outros... Um abração. Luis
Grande Ernesto, que bem versejas. Afinfa-lhe mais que, tens aqui um leitor e sobre o que dizes do "nada e ninguém", isso é o que dizes, mas nós não deixaremos que assim seja. Somos o que quisermos, como fomos o que quiseram, mas sobrevivemos e aqui estamos dispostos para a luta. Não foi Manhau que nos destruiu, não foi Mansabá, nem o K3. Animo rapazão e prá frente é que é o caminho.Abraço do
Veríssimo Ferreira
Caro Ernesto
Um desabafo!
Tristeza, revolta, mas bem escrito.
De facto 'um homem só, não vale nada', isto em termos de mais-valia aparente para a efectivação da 'mudança', mas 'muitos homens sós' são decisivos.
É com eles que é preciso contar. Com vários, com muitos 'homens sós'.
Cada parte do todo é importante e, afinal, decisiva.
Abraço
Hélder S.
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