1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Dezembro de 2012:
Queridos amigos,
Enquanto escrevia este texto assaltou-me à memória uma conversa havida em Bissau, nos finais de Novembro de 2010, com Chico Bá, um dirigente histórico do PAIGC, ele admitia sem qualquer rebuço que tinha chegado a hora da nova república reerguer a sua História sem omissões nem preconceitos, as estátuas deviam voltar ao seu lugar, tal como a memória dos edifícios. E falou-se de Honório Pereira Barreto, a quem a Guiné-Bissau deve o recorte das suas fronteiras e a acérrima defesa do território face a cobiças francesa e britânica, num tempo adverso em que os políticos portugueses, de um modo geral, nem sabiam onde ficava a Guiné.
Faz todo o sentido recuperar a ação política e a devoção de um homem que dizia abertamente “Apoio sempre com todas as minhas forças tudo quanto tende a conceder a dignidade de homens à gente da minha cor”.
Um abraço do
Mário
Honório Pereira Barreto, português da Guiné
Beja Santos
Em 1973, a Agência Geral do Ultramar dava à estampa na mesma edição de dois textos, um do tenente-coronel Joaquim Duarte Silva e outro do comandante Teixeira da Mota, uma conferência que o estudioso proferiu na Sociedade de Geografia de Lisboa a propósito do primeiro centenário da morte de Honório Pereira Barreto.
O tenente-coronel Duarte Silva enquadra a ação de Honório Pereira Barreto no contexto do século XIX, quando a constituição liberal se referia a este território falando em duas capitanias-mores, Cacheu e Bissau. Muito antes da ocupação efetiva, foi um século de hostilidades em que se verteu muito sangue de parte a parte, houve insubordinações da tropa e as luta políticas que ensanguentaram Portugal repercutiram-se em discórdias e ódios na Guiné, então chamada Senegâmbia portuguesa.
Barreto era filho de um cabo-verdiano e de D. Rosa de Carvalho Alvarenga de Ziguinchor. Foi educado em Portugal e quando seu pai morreu, tinha ele 16 anos, regressou à Guiné para assumir a gerência da casa comercial, no Cacheu. É aqui que começa a sua carreira, como provedor do concelho. O brigadeiro Pereira Marinho, governador-geral de Cabo Verde, nomeou-o governador-interino da Guiné, cargo em que se conservou mais de dois anos, entre 1837 e 1839. Neste período, Barreto teve que atender às violações perpetradas pelos franceses na região de Casamansa de que irá resultar o esbulho de uma vasta região até ao Cabo Roxo. Num português primoroso, critica asperamente o que se passa entre políticos portugueses: “Desde o dia em que li o discurso de um senhor deputado, cujo nome me não lembra (porque não merece ser lembrado pelos habitantes destas Possessões), em que dizia que as Câmaras não se deviam ocupar do negócio de Casamansa, por ser um nome bárbaro, e que não vi os ministros levantarem-se como uma só pessoa para combater tais expressões, desde esse dia fiquei persuadido que os estrangeiros podiam, quando quisessem, roubar as nossas possessões; e que os habitantes de Ziguinchor, sendo-lhes impossível sustentar a concorrência nos mercados gentios, ver-se-iam obrigados a abandonar o presídio, que têm defendido com o seu sangue e dinheiro”. Esta indiferença, em rigor, não era absoluta, Alexandre Herculano viria a terreiro verberar quanto à legitimidade de Portugal sobre aquelas paragens. Mas perdeu-se aquela fração de território por indiferença dos políticos portugueses.
Enquanto isto se passa, Barreto vai a Bolama ratificar a soberania portuguesa naquela ilha, por tratado vai adquirindo mais terras, estabelece acordo com o régulo de Bissau para que este preste vassalagem e reconheça a soberania portuguesa, compra o ilhéu do rei e denuncia os abusos praticados pelos ingleses em Bolama. Barreto voltará a ser governador da Guiné muitos anos depois e morrerá no exercício deste cargo, em 1859. Muitos anos antes, em 1843, publicará um interessante opúsculo, numa tentativa de sensibilizar as autoridades portuguesas para a triste situação que se vive na Guiné, “Memória sobre o estado atual da Senegâmbia Portuguesa, causas da sua decadência e meios de a fazer prosperar”. É um texto duríssimo, arrasador, mostra como não há governo, a Guiné vive no caos, as leis não vigoram, os vigários têm comportamentos imorais, a tropa é um bando de homens indisciplinados. O historiador Cristiano Barcelos irá prestar-lhe comovente homenagem: “Perdeu o país o vulto mais importante desta colónia, e que conquistou para a Coroa grandes territórios no rio Casamansa, mansa e pacificamente; a ele se deve a nossa influência entre os Beafadas, no rio Grande de Bolola, onde estabelecemos a primeira colónia, e entre os Bijagós, que confirmaram a nossa soberania à ilha de Bolama”.
A conferência proferida por Teixeira da Mota é uma peça de rara beleza e grande apuro descritivo. Começa por referir o sonho restauracionista do império francês nestas paragens e da rivalidade com a Grã-Bretanha a propósito da Gâmbia, fala de relatos de um náufrago francês que percorre a região da então Guiné portuguesa onde é patente a afabilidade dos povos. É nesse contexto que o estudioso insere a ação de Barreto logo como provedor do Cacheu, tinha ele 21 anos, ele foi a Bolor ratificar, em nome da rainha, a cedência desse território a Portugal, em 183, era um ponto estratégico para se fazer a comunicação entre o rio Cacheu e o rio Casamansa, pela exposição de Teixeira da Mota fica bem claro como Barreto era resoluto e determinado nas suas intervenções, acordos, tratados e aquisições, por todo o território, viajava incansavelmente paralisando no embrião tumultos e lutas e dissuadindo os assaltos estrangeiros. Igualmente Teixeira da Mota chama a atenção para a importância do opúsculo dedicado à Senegâmbia Portuguesa, prova do seu arreigado patriotismo, Barreto disse verdades que nem punhos: “A má qualidade da gente que da Europa vem para estas Possessões, é uma das causas do atraso da civilização delas. Degredados por crimes infames e homens da mais baixa classe do povo, e que apenas aqui chegados passam a ser notáveis e até oficiais, não podem introduzir bons costumes; antes pelo contrário, adotam os de cá, porque favorecem sua imoralidade. Um ou outro que em Portugal recebe uma educação decente e que as circunstâncias trazem a estas possessões, nada podem fazer”.
A ocupação portuguesa da Guiné graças a Honório Barreto é evidenciada no texto de Teixeira da Mota que em desenho eloquente mostra o que eram as povoações e territórios ocupados antes dele, quais as povoações e territórios adquiridos pela sua ação e por ocupação efetiva. Por exemplo, "em 1854 obtém para Portugal o território Felupe de Eguel. Por morte do governador de então, de novo assume o governo interino e irá governar a Guiné até falecer. Em 1856 bateu o gentio de Cacanda, nas imediações de Cacheu. Por então fez um tratado de paz e comércio com os balantas de Naga, que de há muitos anos não tinham relações com os portugueses. No ano seguinte, em 1857, constando que os franceses pretendiam instalar-se mais para o Sul, cedeu a Portugal o território de Varela, que os Felupes haviam dado a seu pai. Em 1858, adquire para Portugal terrenos no Biombo, ilhéu de Mantampa (perto da foz do Mansoa) e ainda a foz do rio Brame. A malha da ocupação portuguesa vai-se assim adensando, mercê da sua atividade e do seu enorme prestígio entre todas as populações locais”. Barreto multiplicou-se em iniciativas que depois não encontraram continuidade: deu muita atenção à educação dos filhos dos régulos, levantou novas igrejas e exigiu a presença de missionários, desdobrou-se em cuidados com a assistência sanitária, com o arranjo, limpeza e urbanização das povoações. Mesmo quando não governava, a sua presença era requerida para servir de medianeiro em qualquer tipo de conflitos. Morre no momento crucial em que os ingleses se voltam a apoderar de Bolama. Era um homem de fina inteligência, travesso e astuto. Há um episódio que dele se conta que vale a pena recordar.
Barreto foi procurado por um insolente comandante inglês que lhe queria comunicar que Bolama pertencia à Inglaterra. Barreto tinha observado com o seu óculo que o seu oficial se dirigia para a casa do Governo de chambre e chapéu de palha, para o meter a ridículo. Barreto recebeu-o em camisa e chinelos no patamar da escada. O oficial perguntou pelo governador e Barreto identificou-se. O oficial desculpou-se, vinham assim vestido por motivo de calor, Barreto disse que estava assim vestido por motivo idêntico. Quando o inglês lhe pediu para falar sobre o que ali o levava, Barreto fez-lhe ver que só se podia tratar tal assunto entre um oficial e um governador, não podia ser com ambos vestidos de tal indumentária. “Então volto fardado de oficial da Marinha de Guerra britânica”, replicou o inglês. “E eu recebê-lo-ei em audiência e com as honras devidas como autoridade portuguesa”, redarguiu Barreto.
É para mim incompreensível como as autoridades da Guiné-Bissau ainda não repararam o dano que praticam com a sua história não reconhecendo em Barreto um dos pais do Estado, continuam apegados a ideias pré-concebidas de nacionalismo arcaico ou de clichês sobre a escravatura ou colaboracionismo com as autoridades coloniais. Barreto considerava-se português, era um produto do seu tempo, revelou-se extremamente dedicado à criação do território da Guiné e não foi por devaneio que aos 33 anos o agraciaram com o grau de cavaleiro da Ordem da Torre e Espada. A Guiné-Bissau tem que sentir orgulho na honestidade e dignidade de Barreto, o africano que deu fronteiras à Guiné-Bissau.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 8 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11361: Notas de leitura (470): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (5) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Diz Mário Beja Santos:
"É para mim incompreensível como as autoridades da Guiné-Bissau ainda não repararam o dano que praticam com a sua história não reconhecendo em Barreto um dos pais do Estado, continuam apegados a ideias pré-concebidas de nacionalismo arcaico ou de clichês sobre a escravatura ou colaboracionismo com as autoridades coloniais."
Não é nada incompreensível, a compreensão está dada pelo MBS, logo a seguir:
"continuam apegados a ideias pré-concebidas de nacionalismo arcaico ou de clichês sobre a escravatura ou colaboracionismo com as autoridades coloniais."
É isto mesmo.
A Guiné só se pode pôr de pé quando, reconhecendo todos os esbulhos a que foi submetida, liquidar a má-fé, a ignorância,os complexos de colonizado, os fantasmas do seu passado.
Bem hajas, MBSantos.
António Graça de Abreu
Às vezes ficamos, os "ex-colon" como eu, que muitos guineenses têm pouco orgulho no país que herdaram, e estão ansiosos por apagar este país do mapa.
E tanto trabalho que tantos guineenses e portugueses tiveram definir essas fronteiras!
O Largo onde estava a estátua de Honório Barreto chama-se praça "Ché Guevara".
Sinceramente não compreendo como Luís Cabral, primeiro presidente da Guiné, e todos os antigos dirigentes do PAIGC, arranjaram tantas confusões, para eles e para o seu país.
Enviar um comentário