Vigésimo segundo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.
Nós, que nascemos na Península Ibérica, portanto descendentes de fenícios, cartagineses, sarracenos da bretanha e talvez vikingues, éramos aventureiros, tão aventureiros que fomos para uma guerra a milhares de quilómetros das nossas vilas e aldeias, mas nem que essa experiência de guerra não servisse para mais nada, ajudou na vida de um futuro emigrante, pois nos anos sessenta e setenta do século passado, a vida de um emigrante, era uma vida de aventura, de alguma coragem, de sobrevivência e de uma força interior, um pouco fora do normal.
Era uma vida muito parecida com a que vivemos na guerra da então província da Guiné, só com a diferença de que não estávamos sujeitos aos tiros e às emboscadas.
O emigrante fazia de tudo, improvisava, nunca estava doente, se estivesse, dizia que não, se isso fosse pôr em causa o seu posto de trabalho. Se houvesse horas extraordinárias, trabalhava, um ou dois turnos seguidos, e não trabalhava três, porque era proibido, tudo isto, com o mínimo de alimentação. Não compreendia o idioma, mas por gestos e com alguns mínimos erros, fazia todo o tipo de trabalho, o importante era ver alguém fazer o trabalho antes, depois já ninguém o parava.
Contam-se dezenas de histórias de emigrantes, que na ânsia de trabalhar, e sem a mínima instrução, e perante uma possível oferta de emprego, diziam que sabiam de pintura, de mecânica, arranjar relógios, assentar tijolos, conduzir camiões e escavadoras, pilotar barcos e aviões, soldar, etc. Eram electricistas, cozinheiros, enfim, só não diziam que voavam, porque não tinham asas. Tudo isto, era na ânsia de trabalharem e ganharem dinheiro, não com a intenção de prejudicarem alguém, a não ser eles mesmos.
O emigrante, nos anos sessenta e setenta do século passado, que conseguia sair de Portugal e atravessar o Atlântico, era porque queria vencer na vida. Normalmente a sua falta de instrução escolar era compensada com a sua força física e moral. Nesses tempos, o emigrante, salvo raras excepções, era uma pessoa com o mínimo de escola, com alguma visão de prosperidade, espírito aventureiro, geralmente novo e com alguma saúde física e moral, desejoso de ter algo a que pudesse chamar seu.
Quando um emigrante abandonava o seu País, o seu lugarejo, deixava de ver as pessoas que lhe eram queridas e com quem tinha convivido, deixava de beber a água da sua fonte, deixava de ver a paisagem, que só com a ausência da mesma é que começava a notar, o maravilhoso que tinha deixado para trás. Era quase como quando chegámos à Guiné, quase tudo era diferente, mas falávamos a nossa língua e lá nos íamos compreendendo, mas num país estrangeiro era um pouco diferente, em princípio não compreendíamos a linguagem, nessa altura, começava a sangrar por dentro, ficava triste e chorava perante qualquer contacto com algo que lhe mostrasse a sua Pátria. A palavra saudade começava a ter um significado muito importante, nessa altura tinha que ser muito forte, moral e fisicamente.
Os primeiros anos eram terríveis, o idioma, os costumes, o clima e alguma discriminação, eram quase insuportáveis. Demorava alguns anos até tornar-se um natural habitante do País que escolhera para emigrar. Nesse período de tempo, se não tinha algum suporte humano, motivação interior e alguma sorte nos seus contactos, o emigrante não resistia e a sua maior alegria era arranjar dinheiro para comprar um bilhete de passagem para regressar definitivamente ao seu País.
Dada a sua pouca instrução escolar, tinha que se sujeitar aos trabalhos mais pesados e sujos, enfim, tinham que fazer aquilo que os naturais não queriam fazer. Se a fase dos três ou quatro anos passasse, iríamos ter um emigrante com algum sucesso. Os filhos iriam estudar, pois queriam dar-lhe aquilo que eles próprios não tiveram, geralmente construíam casa no seu País de origem, iriam
ver essa casa nas férias, mas definitivamente nunca regressariam, pelo menos os que tivessem atravessado o Atlântico.
O combatente que despendeu dois anos na guerra do então Ultramar Português, teve menos dificuldade em tornar-se emigrante, as dificuldades então vividas em cenário de guerra, foram quase como um treino para a emigração, pois quando chegou a outro país, todas as dificuldades de adaptação se tornaram mais fáceis de resolver, já que vinha com um certo traquejo, vinha vivido, e se passasse um ou dois dias sem comer, pouca diferença lhe fazia. Qualquer trabalho lhe servia, logo que lhe pagassem, fazia, adaptava-se, era humilde, procurava sempre fazer sempre o seu melhor, a sua técnica por vezes, era a força física e as primeiras palavras que aprendia, eram para dizer: “sim, não tem problemas, eu faço”.
Tony Borie,
Julho de 2013
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Nota do editor
Último poste da série de 23 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11862: Bom ou mau tempo na bolanha (21): O medo na guerra (Toni Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Caro Tony
Interessante este 'fresco' sobre a emigração.
Parece-me 'bem esgalhado' e, naturalmente, fazes bem a propósito a 'ligação' entre a capacidade de sofrimento e de superação das dificuldades que foram encontrando nas 'experiências africanas', particularmente na Guiné, de boa parte desses emigrantes.
Já agora, de passagem, parece-me que esse 'estado de espírito' plasmado na frase final de “sim, não tem problemas, eu faço”, é que está a faltar por aqui e agora.
Só que não me parece também que se consiga assim de repente reganhar esses espírito, pois 'os novos' não tiveram treino para ganhar calo para as tais 'superações' e a confiança nos líderes é, justificadamente, bastante baixa.
Abraço
Hélder S.
"Só não diziam que voavam, porque não tinham asas". Tudo isto, porque nesse tempo não havia red bull.
Honoravel Tony um abraço e muita saude para todos nós.
PS.Para quem gostar de lêr Historia de vidas visetem este sitio.
http://tonisaborie.wordpress.com/
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