Vigésimo terceiro episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.
A Multinacional onde o Tony exercia a sua profissão, vendia o seu produto para algumas agências do governo americano, como tal, tinha um contrato onde lhe era imposto que aceitasse alguns presos de delito comum de uma cadeia estatal que havia nas redondezas. Seguindo algumas normas de segurança, vinha um carro celular com os presos pela manhã, recolhendo-os à tarde, eram homens que estavam em final de cumprir as penas a que estavam sujeitos e se encontravam numa fase de análise, era quase como uma experiência de começo de vida, pois assim ambientavam-se melhor a conviver com a normal população quando acabassem de cumprir as suas penas, e fossem colocados em total liberdade.
O “Mississippi”, era um desses homens a quem a sorte não protegeu lá muito enquanto jovem. Trabalhou com o Tony nos primeiros tempos quando começou na multinacional, mais tarde, dado o seu bom comportamento, ficou como empregado, portanto, colega de trabalho do Tony. Era afro-americano e quase como todos os afro-americanos, naquele tempo, tinham orgulho em dizer que os seus bisavós tinham vindo de África, do litoral deste continente, quem sabe se da região de Bissau, Mansoa, Mansabá, Olossato, ou até mesmo Bissorã, portanto naquele tempo quando chegaram ao continente americano foram escravos, alguns até explicavam ao pormenor que o seu bisavô, foi escravo na plantação com o nome tal, e foi vendido duas vezes, pois era muito valente e todos o queriam ter naquelas plantações de tabaco, de algodão, de cana de açúcar ou de outra qualquer coisa, no estado do Mississippi. Ele próprio tinha algumas marcas, no peito, no braço e uma
outra ao lado, um pouco abaixo da orelha esquerda, com que os pais o marcaram quando nasceu, ele orgulhava-se de mostrar essas marcas, eram desenhos na pele, parecidos com os que o Tony via frequentemente na Guiné, quando o seu nome de guerra era Cifra, e estava ao serviço do exército de Portugal.
Nasceu e cresceu, numas terras, por onde passava um comboio, ao lado do rio Mississippi, que os seus pais não sabiam a quem pertenciam, simplesmente nasceu lá, com mais três irmãos e seis irmãs. Aprendeu a nadar no rio Mississippi e não tinha receio de cobras, nem de “alligatores”, uma espécie de crocodilos, pelo contrário, caçava-os o comia-os.
Um dia, seguindo o exemplo de muitos jovens na sua situação, pois era normal naquela época, e querendo fugir da fome e da miséria que levava, entra, juntamente com outro irmão mais velho, com a roupa que traziam vestida, pela calada da noite, numa carruagem dum comboio de mercadorias que por lá passava. Vieram parar ao Estado de Nova Jersey, mas muitos iam parar ao estado de Illinois, principalmente à cidade de Chicago. Outros ficavam em Detroit, no Estado de Michigan, ou outros com indústria, onde lhes diziam que havia muito trabalho. Juntou-se com o irmão, à comunidade afro-americana, que vivia nos subúrbios da cidade, tiveram algumas dificuldades no princípio, com a adaptação a um estado mais industrializado. Habituado a viver numa aldeia isolada na beira do rio, não aguentou o impacto com a população de uma grande cidade, sem dar por nada, estava inserido no crime, na droga e na prostituição. Muitas vezes dizia ao Tony que o mais difícil foi assaltar o
primeiro estabelecimento de bebidas, depois tudo foi normal, até a polícia o encontrar por mais do que uma vez no local e na hora errados. Foi preso e cumpriu o seu tempo de punição, agora era um homem livre.
Era alto, com corpo de um atleta e forca física um pouco fora do normal, mas o coração era de uma boa pessoa e obediente, quase de uma criança, compreendia o bem e o mal, pedia desculpa, se sem querer insultava alguém, talvez pelo tempo que passou na prisão, com receio de que alguém o acusasse de novo, às vezes até era obediente demais.
Este homem passou a ser amigo do Tony, todos os dias se viam, pois trabalhavam juntos. Nas festas, que por vezes havia em casa do Tony, o “Mississippi” estava presente com a família e o mesmo acontecia, quando qualquer evento se realizava em sua casa.
Certo dia, pela manhã, o Tony liderava um projecto de instalação de um novo sistema para extrair o ar quente dos fornos de fundição de metais, no telhado de determinado edifício, na multinacional. Ao norte, do lado de lá do rio, lá longe, para os lados de Nova Iorque, surge uma enorme nuvem de fumo, logo o avisaram pelo rádio de comunicação interna, que o Tony sempre trazia consigo, para
saírem daquela zona de trabalho e regressar imediatamente ao local onde era normal se reunirem pela manhã.
Nesse local, ficaram a saber de todos os ataques que o solo americano estava a sofrer nesse momento. O “Mississippi” olha para o Tony, abraça-o e vendo o Tony limpando algumas lágrimas, diz, com os seus olhos bondosos:
- Tony, the war begins in the world today, everything will be different from now on!
Tomando a liberdade de traduzir, ele dizia mais ou menos isto:
- Tony, a guerra no mundo, começa hoje, vai ser tudo diferente a partir de agora!
Os seus bisavós eram escravos, tinham vindo da costa de África, ele sabia do que falava.
Tony Borie,
Julho de 2013.
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Nota do editor
Último poste da série de30 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11885: Bom ou mau tempo na bolanha (22): O típico emigrante do século passado (Toni Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
Interessante ouvir a opinião de um africano sobre o 11/9 no sítio e na hora certa.
Será que os avós do Mississipe teriam pedido b'leia em Cacheu?
São experiências interessantíssimas de um emigrante tuga.
Mas aposto que o amigo Toni ainda não ouviu a opinião de nenhum autóctone sobre o 11/9.
Aposto, mas gostava de perder a aposta.
Cumprimentos
Caro Tony
Não paras de surpreender com a tua capacidade de observação e de fazeres sistematicamente a ligação a tudo o que te sucedeu com o teu passado e experiência guineense.
E, também valha a verdade, parece até que as 'coisas' vão ter contigo. Ou então tens muito mais capacidade para 'ler' os sinais que muitos de nós. Continua a enriquecer-nos com as tuas experiências que, eu pelo menos, agradeço.
Abraço
Hélder S.
Caro Tony,
Neste país Americano, sem nunca darmos um passo à retaguarda, estamos sempre aprendedo com o nosso passado. É a grande América que aprendemos a respeitar.
O desafio do António Rosinha é pertinente e desde já posso acrescentar que ele irá perder a aposta.
O Melting Pot Americano é uma caixinha de surpresas, onde dezenas de culturas se misturam e se respeitam, contribuido cada uma à sua maneira para a grandeza desta nação Americana. O Hélder, bom perspicaz, também soube ler "esses sinais".
Abraço,
José Câmara
Olá companheiros.
Obrigado pelos simpáticos comentários.
Todos vocês, tal como o "Mississippi", sabem do que falam, e claro que ouvi comentários sobre o 9/11, de muitos "autóctones", de outros emigrantes de outros países que compõem este "Melting Pote Americano", como diz o companheiro José Câmara, comentários esses, uns certos, outros não muito certos, outros assim assim, dependendo das ideias de cada um que habitam estes país onde felizmente as pessoas se podem expressar, e que elegeu um presidente afro-americano, que em outro país, principalmente na europa, eu pessoalmente entendo que seria impossível.
Um abraço do tamanho do mundo ao Hélder, ao António Rosinha e ao vizinho José Câmara.
Tony Borie.
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