1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Julho de 2013:
Queridos amigos,
Não é só um livro corajoso pela denúncia dos crimes e da gente envolvida no narcotráfico guineense. É uma prosa palpitante em que vamos percebendo as conivências dos bandos com os militares, os paramilitares e até o aparelho judicial.
Está aqui, preto no branco, a praga da corrupção que disforma a vida social e económica de todo um povo, a mancha da corrupção seduz e atemoriza, assistimos à ascensão dos bem-sucedidos no crime.
Um personagem de grande recorte, DJ Palmas, é usado como a voz da denúncia e o apelo a que os guineenses deixem de ter medo da onda de criminalidade de que são vítimas mas também participantes.
Recomendo vivamente a sua leitura.
Um abraço do
Mário
Maré Branca em Bulínia: um romance que ficará para a história
Beja Santos
“Maré Branca em Bulínia”, por Manuel da Costa, Editorial Minerva, 2013, é uma das grandes surpresas das letras guineenses deste ano. O seu autor é um engenheiro agrónomo e mecânico da eletricidade e instrumentos de aviões. Em 2004, foi nomeado Chefe de Repartição Agrícola da Divisão de Serviços de Produção do Estado-Maior general das Forças Armadas. Este romance é uma assombrosa e inesperada denúncia do narcotráfico na Guiné, das máfias constituídas para a sua exploração e não menos surpreendente teia de cumplicidades de todos os escalões de todos os órgãos de soberania. Com indesmentível coragem, fica-se a saber que o livro gozou do alto patrocínio do Presidente da República de Transição, Manuel Serifo Nhamajo, e teve o apoio da União Nacional de Artistas e Escritores da Guiné-Bissau. O autor é detentor de vários prémios literários e preside atualmente à ONG NÔ TCHON.
Bulínia é metáfora de Bissau e o autor diz no prólogo: “É minha escolha partilhar com toda gente o que penso e um pouco do que sei sobre o narcotráfico em Bulínia. Sei que, ao fazê-lo, estarei a pôr a minha vida em risco mas não tenho medo. Para que, de uma vez por todas, se tenha consciência da magnitude do narcotráfico neste país, diz-se aqui quem são os verdadeiros responsáveis pela introdução desta atividade criminosa. Como se diz, de boca em boca, ninguém tem dúvida de que são os políticos corruptos e os empresários ávidos pela riqueza que, aproveitando-se do clima de desordem reinante nos quartéis e nas esquadras, usam militares e paramilitares, numa cumplicidade nunca vista, para lhes dar proteção e garantir segurança”.
Tudo começa quando um pescador deitou as redes ao mar, com o auxílio do filho, e começaram a aparecer pacotes, ao princípio pensavam que se tratava de adubo, no dia seguinte muitíssimos outros pacotes deram novamente à costa, a notícia correu logo de boca em boca e toda a gente no povoado colheu e guardou toneladas dos ditos pacotes, julgava-os fertilizantes.
A notícia chegou à capital da droga, foi pronta a conclusão, tratava-se de cocaína que se vendia por 7 milhões de francos CFA o quilo a colombianos, venezuelanos, mexicanos, costa-riquenhos e nigerianos. Um jovem muito esperto apresentou-se como sobrinho do pescador e mostrou-se interessado em comprar o adubo. Saiu-lhe a sorte grande, comprou um saco de 50 quilos por 40 mil francos CFA. A vida de Marcelino (assim se chamava o jovem) iria mudar. Foi até ao Bairro dos Veteranos da Revolução e entendeu-se com o sargento Busnasum que conhecia um gang de traficantes colombianos. Começa a promoção social de Marcelino e de sua mulher, Zinha. Aos poucos, Marcelino vai-se apercebendo da dimensão do narcotráfico em Bulínia, estão envolvidos comandantes militares o Super-ministro, comandos navais, deputados de oposição, polícias, judiciária, máfias. Marcelino compra carros, compra casas, a mulher torna-se empresária, tudo graças ao adubo do mar. Toda aquela droga parte ou para a Europa ou para o Senegal, Mali e Nigéria.
Marcelino virá a descobrir que esta droga é descarregada por avionetas ou por barcos. Recorrendo a nomes arrevesados, o autor dá conta da dimensão da tragédia: “Voltando aos aviões, era mais um voo do Grupo Hipopótamo dirigido pelo respeitado deputado do partido da oposição. Porque havia três grupos de traficantes: o Grupo Hipopótamo, o Grupo Águia, o mais famoso de todos, liderado pelo Super-ministro Matchu Dunu e o grupo Kassissa, gerido pelo empresário Aladje Sanhá Sanhá”. Fica a saber como se transporta a mercadoria mal é descarregada em discretos aeroportos, e dá-nos conta de outros envolvimentos: “Quanto à exportação da droga para a Europa, fazia-se com a cumplicidade de agências transportadoras ou companhias aéreas, pessoal das alfândegas, despachantes e agentes portuários ou com meios próprios dos narcotraficantes. Porque muitas vezes a droga seguia dissimulada nas bagagens dos passageiros ou na mercadoria exportada em contentores e nas pastas diplomáticas dos franco-diplomatas”.
Presume-se sem elevado grau de certeza que a droga fez a sua entrada em 1980, ou um pouco antes. Os barões da droga passaram a agir mais livremente depois das eleições presidenciais de 2003. Aliás, o caldo de cultura estava bem fermentado com toda a gente mal paga ávida por ter meios para satisfazer as necessidades elementares. Com a livre circulação de pessoas e bens abriu-se a porta à droga. O autor faz entrar novos protagonistas, um grupo de jovens que faziam parte da tertúlia NÔ KA NA KALA, uma verdadeira tribuna de opinião, ali se discorre em termos plurais sobre as atuações dos traficantes, como a droga faz mal à juventude e é o rastilho do banditismo, há ali naquela tribuna quem associe a droga a certas bondades como o desenvolvimento da ciência e das novas tecnologias.
Os narcotraficantes são bem visíveis: usam roupa de marca, telemóveis de topo de gama, as melhores viaturas todo o terreno, as suas casas são palácios, aparentemente nada há a fazer, uma importante fração do povo parece estar a favor do infame negócio que faz de Bulínia um pequeno país do continente africano uma rota incontornável dos negócios da droga. Os gangues recorrem a bons advogados e pactuam entre si, partilham espaços, todos os tiroteios e mortes dão nas vistas, estabelecem códigos de conduta. Há mesmo governantes que recorrem ao dinheiro da droga para pagarem aos funcionários públicos. Há membros do Governo que participam diretamente no negócio, basta ver os seus carros de luxo, as suas quintas, a esmerada educação que dão aos filhos. O autor usa uma figura emblemática de aparente virtude DJ Palmas para nos dar a imagem pragmática de um jovem sem meios que vai gradualmente dando sinais de riqueza sem questionar a sua proveniência. A impunidade alastra, como se escreve: “Os pequenos parlamentares chegaram à conclusão que o alto grau de corrupção que o país vivia criava condições propícias para que a impunidade fosse autorizada, porque os juízes eram constantemente corrompidos e não fazia justiça ou fingiam que a faziam. Exatamente por isso é que o Estado perdera autoridade e não conseguia mais pôr ordem no país. Essa falta de autoridade criara a desobediência na família. Os pais não se entendiam com os filhos e ninguém conseguia pôr ordem em sua casa. O nome de Bulínia estava na boca do mundo. No estrangeiro, os cidadãos bulínios começaram a ser perseguidos e presos por tráfico de droga”. Até que um dia DJ Palmas faz a confissão dos crimes cometidos, é um dos momentos mais admiráveis deste inesperado romance de Manuel da Costa.
No epílogo, e retomando a autoridade do Estado, o autor diz que esta “só pode ser restabelecida quando existir um Governo com gente idónea e trabalhadora. Por isso vale a pena dizer a toda a gente que o homem tem um véu de ignorância no rosto mas procurar persistentemente o futuro. DJ Palmas mostrou ao mundo quem são os narcotraficantes, passando a bola ao Governo para que a justiça seja feita”. O glossário é extremamente útil dado que o romance de Manuel da Costa goza dos melhores predicados da chamada literatura luso-guineense.
Por estar facilmente disponível, recomenda-se a todos a leitura deste livro de denúncia do mundo do narcotráfico e das alianças perversas que consegue concitar.
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Nota do editor
Último poste da série de 18 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12311: Notas de leitura (535): "Pequenas Histórias de Guerra", por Carlos Alexandre Morais e "Spínola o anti-general", por Eduardo Freitas da Costa (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Este livro já é pós revolução, a última.
A par da droga há a incapacidade lusa.
Ramos Horta tem que ter muita sabedoria e ainda tem que arranjar tempo para qualquer dia ir «salvar» Moçambique.
A luta continua, não é Beja Santos?
Cumprimentos
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