FIM DOS LOBOS EM BRUNHOSO
Na Guiné, para pena minha, não encontrei a fauna selvagem que imaginava, fruto da minha leitura de livros e revistas sobre África. Os únicos animais que vi em abundância na floresta foram os macacos-cães que costumavam andar em grandes bandos e faziam uma chinfrineira dos diabos.
Recordo-me que nos primeiros dias, só ao ouvir o barulho, sem os avistar, me senti confuso a pensar na quantidade de cães que lá haveria, pois nunca tinha ouvido ladrar tanto.
Com o tempo descobri ainda outras raças de macacos mais pequenos.
Além dos macacos, só vi um dia, aliás viram quase todos os militares que estavam no quartel de Buba: oito javalis a cerca de 500 metros, na outra margem do rio Grande Buba, alguns tropas pegaram nas G3 e fizeram umas rajadas para o grupo e não mataram nenhum. Sem nunca as ter visto, sei que havia muitas gazelas, porque em Buba um caçador nativo vendia dessa carne em abundância para o rancho da companhia. Ainda hoje estou enfastiado de tanta carne de gazela.
O homem nasce em determinada região e é moldado nesse barro e nesse ambiente onde habita e cresce. O mapa geográfico de cada um de nós desdobra-se a partir da nossa terra, seja grande ou pequena. É lá que vamos buscar ânimo para todas as nossas viagens e descobertas.
O laboratório animal, humano, social, etc. donde parte todo o nosso conhecimento emotivo e intelectual, todo o nosso espanto perante os mistérios da vida, todas as nossas interrogações mais banais ou metafísicas é essa primeira terra que para cada um de nos é o centro do universo.
Brunhoso, uma pequena aldeia nos confins de Trás-Os-Montes tem para mim essa importância desmedida que tem a terra de cada um de vós. Por analogia com a sua flora, já falei neste blogue da flora da Guiné. Hoje camaradas peço permissão para falar da fauna selvagem da minha terra, sobretudo do lobo, esse rei morto, já que a restante são alguns exemplares de caça cada vez menos significativos.
Brunhoso - Foto: Brunhoso Mogadouto, com a devida vénia
"Quando os Lobos Uivam" é o nome dum livro de que eu gosto particularmente, logo à partida pela beleza e ressonância do título. Um título que por vezes me surge no pensamento a propósito de tudo ou de nada, como por vezes surgem palavras soltas ou o refrão de alguma canção em voga.
O livro é já um clássico da literatura portuguesa, da autoria de Aquilino Ribeiro, esse mago da Beira Alta que deu voz àquelas serranias e retratou a miséria e a dignidade das suas gentes.
Aquilino Ribeiro [foto à direita], um irmão do transmontano Miguel Torga que criou uma epopeia com o rio Douro e os montes, como pano de fundo, para falar do drama daquela gente esforçada em procurar sobreviver e criar trigo e vinho no meio de montes de tojo, estevas, granito, xisto e outras pedras.
Quando era muito jovem, ainda menino, recordo-me dos medos próprios da idade. Sobretudo a noite, a mãe de todos os medos, ao cobrir tudo de negro e de sombras. Electricidade não havia, portanto depois do pôr-do-sol a aldeia e tudo o que se conseguia avistar em redor era um jogo de sombras mais ou menos carregado, dependente do luar ou da luz das estrelas. Em noites de frio, chuva e vento, ouvi muitas vezes o uivar dos lobos nos montes e campos circunvizinhos da aldeia, e o ladrar dos cães em resposta, tudo isso misturado ao assobiar do vento e ao barulho da chuva sobre os telhados. Sinfonia da terra, que acabou porque hoje faltam os lobos com o seu canto arrastado que parecia um lamento.
Todos os povos antigos, africanos, asiáticos ou americanos, tinham e ainda têm em muitos casos, animais selvagens com que se identificavam, que festejavam e por quem tinham muito respeito e alguma adoração, por muitas e diferentes aptidões e características, agilidade, força, manha, velocidade, inteligência instintiva, solidariedade de grupo.
Os exemplos são muitos, o leão, a cobra, o tigre, o crocodilo, o elefante, a águia, etc.
Os povos europeus também terão tido os seus animais selvagens de eleição e provavelmente alguns estarão até retratados nas pinturas rupestres que abundam pelas suas grutas e rochas. Sou tentado a identificar o lobo, por algum conhecimento e proximidade que ainda tive da sua vida selvagem na aldeia, como o animal tutelar dos povos antigos que habitaram o território da região onde nasci e talvez de toda a Lusitânia montanhosa.
Lobo - Foto: Animais e Atitudes, com a devida vénia
O padre Fontes [foto à esquerda], quando fala nos deuses do Larouco não sei se inclui o lobo nesse rol. Os últimos lobos, verdadeiramente selvagens de que guardo memória, terão existido nos campos e florestas da minha aldeia há aproximadamente 50 anos. Um deles foi barbaramente morto num vale da aldeia, com paus e pedras cercado por 50 ou mais naturais da terra que andavam a apanhar a azeitona. Recordo que a morte desse lobo deu muito brado na terra e foi festejado com o seu corpo a ser passeado por todas as ruas, como se tratasse dum troféu de guerra. Provavelmente seria o chefe da matilha, que vivia na área territorial da aldeia, porque no espaço de pouco mais de um ano mataram mais três ou quatro provavelmente desorientados com a morte do chefe, e os lobos acabaram na aldeia.
Nunca compreendi muito bem a ferocidade desses homens, meus conterrâneos, em relação aos lobos, já que eles, apesar de muitas crenças em contrário, sempre respeitaram as vidas humanas. Desde tenra idade os seus filhos saíam para ajudar nas tarefas do campo, sós ou acompanhados, sem qualquer perigo de serem atacados. Os lobos matavam cabras e ovelhas para se alimentarem. Eram tempos de pouca fartura e nenhum tipo de alimentação, sobretudo sendo carne, se podia perder.
Talvez já há mais de 100 anos os seus antepassados tinham acabado com as gazelas, cabras do mato e javalis, alimentação natural dos lobos. Mas entre homens e animais não há lugar à justiça, já entre homens também não há muita. Sei que eram tempos difíceis para as gentes da terra. Terrenos agrícolas pobres e divididos de acordo com as heranças e não com as necessidades, não conseguiam garantir a alimentação e subsistência de uma população em permanente explosão demográfica, porque os casais podiam ter dificuldade em garantir a alimentação da família, mas para procriar ainda tinham forças e o resultado via-se no elevado número de filhos.
A solução tão antiga, como actual, foi sempre a emigração. Segundo consta até já terá sido instituída actualmente como método de governação. Ora acontece que nos princípios da década de 60, do século passado, o Brasil, destino habitual de muitas famílias nas décadas anteriores, já não oferecia boas perspectivas de trabalho. Já não havia "cartas de chamada" dos familiares do Brasil.
Dos últimos a tentar esse destino terá sido o tio António Neto. Era um homem, não muito pobre, dado que possuía alguns bens, que trabalhava com a mulher e as filhas quase sem necessidade de trabalhar para outros. Para isso terá contribuído também o facto de já estar no Brasil a filha mais velha, que para lá tinha ido ainda menina, com familiares.
Um dia o tio Neto vendeu todos os bens, em praça pública, no adro da igreja e comprou as passagens para essa longa viagem. No dia aprazado apanhou o comboio, com a mulher e duas filhas, rumo a Lisboa, onde embarcariam num navio rumo ao Brasil. Porém chegados ao Porto, ele não quis prosseguir viagem. Saudades da aldeia, da horta de Lamas, dos olivais das Picotas e do Cachão, da burra, da junta de mulas? Não se sabe ao certo. Certo e sabido, facto histórico da aldeia, é que ele se dirigiu à bilheteira da estação de S. Bento e disse:
- Quero quatro bilhetes para a Estação.
De dentro o funcionário perguntou:
- Estação, qual estação?
- A Estação, caraistacosa, não conhece a Estação, onde se leva o trigo o celeiro?
Não se sabe bem como, não consta nos anais da aldeia, mas o funcionário acabou por lhe vender os quatro bilhetes para a estação de Mogadouro. Chegado a Brunhoso, os conterrâneos acabaram todos por lhe devolver os bens que tinham comprado pelo valor que tinham pago.
A saga da emigração para o Brasil acabou com o tio António Neto, também conhecido pelo "Caraistacosa".
A meia dúzia de anos que mediou entre o fim da emigração para o Brasil e a "fuga em massa", por montes e vales através da Península Ibérica para França, terá sido um período de mais fome e raiva que, entre outras causas, também terá contribuído para o extermínio dos lobos na terra.
Dois ou três anos antes seguia eu por um caminho rústico em cima dum carro de bois e vi, a cerca de 50 metros, três lobos a atravessar o caminho. Olharam para mim e para os bois e continuaram calmamente a sua caminhada. Para mim foi um momento de espanto e surpresa. Já tinha ouvido muitas vezes o seu uivar mas nunca tinha visto nenhum. Pela vida fora conservei sempre essa imagem, como se duma aparição se tratasse.
Eu, nada católico e pouco religioso, tenho santos da minha devoção, pela sua bondade, humildade, inteligência e outros atributos. São eles: S. João, S. Francisco e Santo António. Tenho pensado se o que eu vi seriam três lobos ou estes três santos, que na sua calma iam a cantar os salmos do rei David.
Tenho um grande respeito e admiração pelo lobo. Já existem poucos lobos em Portugal, em Trás-Os-Montes julgo que só na serra de Montesinho. Em cada serra de Portugal devia haver uma estátua em sua memória para recordar este caçador altivo, insubmisso e inteligente.
Um abraço a todos os camaradas
Francisco Baptista
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Nota do editor
Último poste da série de 1 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12661: Os nossos seres, saberes e lazeres (65): Passagens da sua vida - 7000 milhas através dos Estados Unidos da América (9) (Tony Borié)
9 comentários:
Parabéns, Francisco, pela tua grande sensibilidade socioecológica e antropológica... O homem é que é o lobo do homem...
Mal de nós quando perdermos o "pensamento selvagem", isto é, quando nos afastarmos irremediável e irreversivelmente da natureza...
Ainda tiveste a sorte de ter, na tua infância, uma contacto íntímo com a natureza, não domesticada... Os nossos filhos, nascidos na cidade grande, não são capazes de imaginar o que é isso de viver sem luz elétrica, sem carro, sem frigorífico, sem televisão, sem internet, sem hipermercados, sem vem voos "low cost", sem globalização...
Francisco:
Sem dúvida que devíamos aprender... com os lobos...
(...) "Para a sociobiologia, o conflito está inscrito na dicotomia egoísmo genético/altruismo genético. Por exemplo, a selecção de parentesco pode ser definida como a selecção genética resultante de um ou mais indivíduos favorecerem ou desfavorecerem a sobrevivência ou a reprodução de parentes (além dos descendentes directos) que possuem idênticos genes por herança comum.
Segundo Maynard-Smith (cit. por Graça, 1995b), a coabitação entre congéneres não seria muitas vezes mais do que um modus vivendi entre indivíduos concorrentes. Ou para utilizar a linguagem de Hawks (1989), as máquinas de sobrevivência, da mesma espécie ou de espécies diferentes, estão em permanente competição entre si. Mas contrariamente ao que uma interpretação apressada da teoria do gene egoísta poderia fazer supor, o assassínio e o canibalismo não são tão frequentes quanto isso, na natureza .
De facto, e contrariamente à representação de senso comum, a observação dos etólogos não permite concluir que a luta pela vida seja uma forma extrema que levaria os membros de uma espécie a conflitos disruptivos e sangrentos.
A etologia (a ciência que estuda o comportamento animal) pôs em evidência a existência de comportamentos ritualizados de inibição entre os membros de uma espécie, permitindo controlar as pulsões agressivas individuais e deste modo assegurar o bem da espécie (Lorenz, 1979). Por exemplo, a competição entre os cervídeos pela posse das fêmeas não assenta necessariamente no desenvolvimento e utilização de armas letais.
(...) A selecção natural pode ter favorecido o aparecimento de armas que depois se tornaram obsoletas ou inúteis. Os fósseis do extinto veado gigante (Megaloceros giganteus) , que viveu na Europa durante a época glaciar (...), revelam que as suas hastes podiam ter uma envergadura que chegava aos três metros. Pensa-se que a sua extinção se deve ao facto de a vantagem sexual das hastes (na competição com outros machos pela posse das fêmeas) ter sido ultrapassada pela sua desvantagem em termos de selecção natural: com as mudanças climatéricas e ambientais e com a consequente escassez de alimentos, passou a ter um custo elevado encontrar recursos para a substituição (anual) de um tão complexo e pesado arsenal de combate, as hastes (MacFarland, 1993. 114).
Pode perguntar-se por que é que os indivíduos rivais da mesma espécie não se matam uns aos outros sempre que surge uma oportunidade para isso. A resposta genérica é que a agressão tem custos e benefícios que é preciso contabilizar.
Para a teoria dos jogos, trata-se de uma repartição estratégica dos investimentos de cada um: quando se convence ou se apercebe da sua inferioridade física, o macho mais fraco (por exemplo, entre os cervídeos ou os canídeos) bate em retirada, em vez de persistir num combate que à partida está perdido para ele; o macho dominante, por seu turno, não tem interesse em envolver-se num combate mortal quando o seu adversário dá claros sinais de vencido.
Por exemplo, o cão (ou o lobo) quando vencido por um congénere, oferece-lhe o pescoço. Este comportamento ritualizado — mais esbatido entre a espécie do Homo sapiens sapiens , nomeadamente nas situações de guerra moderna em que já não há praticamente contacto face a face com o inimigo — evita assim uma série de mortes inúteis.
A agressão não pode, por isso, ser vista como o contrário de comportamentos altruístas com o amor mas como um dos elementos fundamentais do reportório da comunicação animal." (...)
(Excerto)
In: Graça, L.; Graça, J. (20149 - O conflito nas equipas e serviços de saúde. Lisboa: Departamento de Ciências Sociais em Saúde. Escola Nacional de Saúde Pública. Universidade Nova de Lisboa. 2014. (Textos, T 1258, 66 pp.).
Caro amigo Francisco
Um texto muito bem elaborado, com os assuntos muito bem tratados, como de resto sempre fazes, mas aquela fotografia do vale do nosso Sabor com as suas oliveiras, que dizem que dão o melhor azeite do mundo,enche-me as medidas.
Um abraço
Manuel Carvalho
Caro camarada francisco Baptista
Gostei.
Gostei da prosa, da narrativa, do enquadramento, das considerações.
Das referências relativas às relações entre os povos e os animais das suas regiões.
Dos seus 'eudeusamentos' ou dos seus 'medos'.
É, de facto, uma relação difícil entre o chamado desenvolvimento (será?) e a coexistência com o meio natural.
Quando não se acautelam esses factores (e é tão frequente, desde que o sacrossanto dinheiro se sobreponha), os desequilíbrios vão aparecer e depois, às vezes, muitas vezes, de repente, ficamos 'surpreendidos' com os desmandos da Natureza....
Abraço
Hélder S.
Sou minhoto, mas casado com transmontana, dos sete costados.
Claro que gosto muito do Minho, verde, choroso nos seus ribeiros e fontes, caldeado de muitas cores pelo outono. No entanto amo as fragas, as giestas ou até os simples cardos. E das gentes nem falo. Por isso satisfez-me, em pleno, ler a prosa aqui descrita, com tal pormenor e sentido de vida.
Fico contente e espero mais crónicas. Certo?
Caro amigo Francisco Baptista
Gostei muito do teu texto, recheado de informações e reflexões. Nele revelas sensibilidade por valores fundamentais: O respeito pela Natureza e pela Vida. Obrigado pela partilha.
Como tu, também tenho origem numa aldeia rural, que apesar de distante da tua e com grandes diferenças geográficas, tinha simbologias, mitologias e tradições, com muito em comum.
Também relembrei a expressão que já tinha esquecido desde o tempo de menino, quando os mais velhos respeitavam as crianças, não proferindo palavrões na sua presença, suavizando o tal, com o "caraistacosa". Onde esses tempos já vão!
Quanto à fauna da Guiné, fui mais afortunado nos meus encontros; Para além da abundante macacada, encontrei gazelas (e algumas bem de perto) javalis e cabras do mato ( que cheguei a caçar) búfalo (ou algo semelhante, porque ao longe), muitas galinhas do mato, rolas, perdizes, pombos etc. E muita bicharada rasteira. Só não podia era com os minúsculos voadores. Desses matei ao milhares, tal como o outro de Famalicão.
Um grande abraço
JLFernandes
Caro Francisco:
Tenho a grande felicidade de conhecer a beleza da tua região e ter experimentado já algumas práticas agrícolas nos concelhos vizinhos de Moncorvo e Alfândega.É um Portugal muito singular, quer no coberto arbóreo e arbustivo que aromatiza o ambiente quer nalgumas das espécies animais.E que dizer do porte das suas gentes, hospitaleiros,respeitadores e
apegados ao trabalho ?
Pois é, está aqui um texto rico e fiel, um quadro bem elucidativo, da relação duríssima do
transmontano com os seus irmãos lobos. Não é um quadro franciscano, mas é um quadro real onde não falta a luta pelo pão para a prole numerosa e a solução dramática da emigração.
Parabéns Francisco.
Caro Francisco:
O comentário anterior é da minha autoria que, por lapso, não assinei.
Um abraço
carvalho de Mampatá
Amigos e camaradas:
Muito obrigado a todos pelos vossos comentários simpáticos.
Um agradecimento especial ao camarada Carlos Vinhal que me surpreende sempre pela composição e ilustração dos textos.
Ao Luís Graça por ser tão assertivo nos seus comentários. Sei que entrei um pouco em matérias do Professor e recebi uma lição de borla.
Luís muitos de nós fomos ricos porque eramos pobres, porque a felicidde não está no ter, a felicidade está no ser. Falei bem Professor?
Já agora por favor, reomenda-me um livro, não muito cientifico, adequado à minha idade e conhecimentos,da tua área.Sendo um curioso em sociologia nunca li um livro sobre o assunto.
Um abraço a todos
Franciso Baptista
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