sexta-feira, 11 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P12967: Estórias avulsas (78): O meu amigo cigano Zé Beiroto (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 7 de Abril de 2014:

Estava em Buba há pouco tempo quando recebi um aerograma do Zé Beiroto, o filho mais velho da Raquel cigana, onde me comunicava que tal como eu se encontrava em comissão na Guiné e pedia se eu lhe poderia arranjar um bom lugar para passar melhor o tempo por lá. Respondi-lhe que como amigo dele, desejava-lhe uma boa estadia mas que nada poderia fazer para a melhorar pois eu pouco mandava e não tinha amigos influentes.

O Zé, mais velho 3 anos do que eu, teria ido como refratário para a tropa, situação muito comum aos da sua etnia.
Não sabia ler nem escrever, portanto o aerograma terá sido escrito por um camarada a seu pedido. Não sei como terá conseguido o meu SPM. Na altura isso não me preocupou muito. Hoje penso que terá sido através da mãe dele, a Raquel cigana.

A Raquel era uma mulher robusta e larga, que pedinchava pelas portas mais do que todas as ciganas. Tanto entre adultos como entre jovens ela despertava pouca simpatia.
A Raquel parecia daquelas pessoas que não se conformando com a sua má sorte têm inveja e quase ódio às pessoas melhor instaladas na vida. Fosse porque deixasse transparecer isso ou por tanto a verem a pedir de porta em porta,  a garotada mandava-lhe ditos pouco agradáveis a uma distância conveniente para não serem agredidos. Este era o mais conhecido: "Quem me dera uma canhona morta para lhe tirar a pele comia-lhe a chicha toda e dava-lhe os ossos à Raquel".

Ia muitas vezes pedir à minha casa uma esmolinha, por amor de Deus. Recordo-me de pedir muitas vezes azeite para temperar o fiolho. A minha mãe, contra a vontade de alguns de casa, dava-lhe sempre alguma coisa. Tal uma como a outra tinham muitos filhos e isso devia mexer com a sua bondade e o seu instinto maternal.

Vista parcial de Brunhoso
Com a devida vénia a http://www.bragancanet.pt/brunhoso/

Nesse tempo Brunhoso era uma aldeia densamente povoada com muitos habitantes por casas de habitação. A acrescer a isso havia ainda muitos ciganos que não tendo residência fixa, passavam a maior parte do ano na aldeia em instalações improvisadas. Essas instalações eram alguns palheiros ou curraladas no inverno, que os lavradores lhes cediam. Já no verão preferiam instalar-se ao ar livre, no Pereiro, um terreno baldio perto do povo, com muitos olmos debaixo dos quais se abrigavam à noite e de dia nas horas de mais calor.
O olmo grande, onde a cegonha tinha o ninho, talvez o maior olmo da terra, dava abrigo a várias famílias. 

Nesse tempo os ciganos pelo seu modo de vida preguiçoso, a sua pedinchice e alguns roubos sobretudo nas hortas, eram expulsos, por vezes mesmo escorraçados da maior parte das aldeias. Em Brunhoso eles eram aceites e por isso muitos consideravam-na como sua. Havia outras aldeias, raras, onde eles se instalavam provisoriamente pois como povo errante não gostavam de estar sempre no mesmo sitio.
Há uma tendência entre muitos homens de abusarem do seu sentido critico para julgar os seus semelhantes. Entre os meus conterrâneos esse sentido critico devia estar muito esbatido ou então era o seu sentido de humanidade que era muito grande para aceitarem não só os seus iguais mas também os "outros", os que tinham hábitos e tradições tão diferentes que por vezes chocavam com as suas.

O povo de Brunhoso embora ordeiro e trabalhador devia sentir uma certa atração pela liberdade e despreocupação com que aquele povo de maltrapilhos vagabundeava pelo mundo vivendo ao ritmo da natureza mais selvagem, segundo o aconchego que as estações do ano podiam dar, de preferência mais perto dela e das estrelas, colhendo as plantas e frutos selvagens que a natureza dava tais como o fiolho, comendo os animais. vacas, ovelhas, porcos etc. que morriam de doença aos aldeões (não ciganos), procurando também a ajuda da população mais caridosa.

Esse tempo de muito trabalho, muita fome, muita gente, muitas festas, feiras e ciganadas em trânsito, era também o tempo da jovem mulher mais esbelta e donairosa, muitas léguas em redor, essa cigana, a mais bela da caravana, que só a evocação do seu nome alimentava sonhos eróticos nos lavradores do nordeste transmontano e sonhos de pesadelo nas suas mulheres. Dela dizia-se que já teria provocado a falência de várias casas de lavradores. Conheci, fui muito amigo dum camarada nosso, soldado noutro TO que depois de ter regressado dessa África longínqua se gabava de ter gozado dos seus favores.
Acho que depois 28 meses de sacrifício, de canseiras e de sustos merecia essa recompensa.

Ciganos
Coma devida vénia ao Blogue A Defesa de Faro

Os marinheiros de Vasco da Gama também tiveram como doce recompensa dessa longa e tormentosa viagem à Índia as ninfas da Ilha dos Amores, tal como nos conta Luís de Camões nos Lusíadas:

Que famintos beijos na floresta, 
E que mimoso choro que soava! 
Que afagos tão suaves, que ira honesta, 
Que em risinhos alegres se tornava 
O que mais passam na manhã e na sesta, 
Que Vénus com prazeres inflamava, 
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo; 
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo 

"Os Lusíadas" 
Canto nono 

Meu grande amigo, a vida é tão curta. como sabemos, cheia de sacrifícios e tristezas é bom que também proporcione por vezes algum prazer.
Seria mais velha que eu quatro ou seis anos. Vi-a algumas vezes e admirei-a pelo seu porte altivo, elegância e beleza . Eu e o Zé sempre fomos amigos talvez tenhamos herdado essa amizade das nossas mães.

Contrariamente aos da sua etnia, mostrava ser bastante ambicioso, trabalhando um pouco mais do que os outros e sendo também mais activo noutras actividades noturnas ou clandestinas. Casou com uma aldeã, contra a tradição do seu povo e penso que ao fazer o registo do casamento foi "apanhado" para cumprir o serviço militar.
Os casamentos entre ciganos eram muito festejados mas não tinham cerimonia civil nem religiosa. Nesse tempo, segundo constava, entre os aldeões, eram realizados pelo método do chapéu ao ar. Se o chapéu caísse com a copa para cima, os noivos ficavam casados, se caísse com copa para baixo ficavam também. Na realidade não havia chapéu, nem cerimónia, havia somente festa maior ou menor, conforme a comida disponível.

Já perto do final da minha comissão e estando já eu na CART 2732 em Mansabá, apareceu-me lá o Zé da Raquel que estava de passagem, para me cumprimentar. Ainda hoje não sei muito bem como conseguiu oportunidade para estar comigo e como sabia sempre onde eu me encontrava. Enfim instinto de andarilho e cigano.

De 1969 a 1973 estivemos na Guiné seis naturais de Brunhoso em comissão. Que eu saiba e recorde não houve outros, nem antes nem depois.  O José Beiroto, ou Zé da Raquel, soldado; o Joaquim Fermento, furriel da CCAÇ 3327, em Bachile e Teixeira Pinto; o Francisco Magalhães, meu primo, alferes da mesma companhia; eu, Francisco Magalhães Baptista para usar também o apelido Magalhães que muito prezo e pelo qual sou primo do outro Francisco já que tínhamos o mesmo avô, também Francisco e logicamente Magalhães; o António Francisco Beiroto, soldado e o José dos Santos Carvalho, soldado.

Com o meu primo e com o Joaquim Fermento cruzei-me uma vez em Bissau, talvez quando eles chegaram à Guiné e eu ia para a CART 2732 em Mansabá, depois da CCAÇ 2616 ter regressado em fim de comissão. O António e o José eram primos do José Beiroto, filhos do António Francisco Gordo, mais conhecido pelo Mudo Cigano, que aos baldões pela terra, morreu recentemente com 98 anos. A mãe chamava-se Isaura dos Anjos Beiroto. O pai embora cigano era muito trabalhador. O casal tinha muitas bocas para alimentar, criaram 13 filhos, e ele sendo mudo não podia dedicar-se ao negócio dos ciganos de compra e venda de burros, cavalos e mulas. Nesse negócio eles eram peritos, conseguindo enganar frequentemente os compradores, vendendo burro velho por burro novo.

A mãe deles era uma mulher humilde e resignada que eu recordo de andar a pedir esmolas pelas portas, quase sempre grávida. O Zé Beiroto morreu de doença há cerca de 30 anos. Paz à sua alma!

Com o desenvolvimento da Espanha no pós-franquismo, os ciganos emigraram a maior parte para lá. Os olmos do Pereiro, e de toda a aldeia, morreram através duma doença que os ventos trouxeram da Europa alguns anos após a sua debandada. Quando morrem os ciganos, muitos familiares trazem os corpos para Portugal para serem sepultados no cemitério de Brunhoso. É a melhor homenagem que podem prestar a essa terra de mulheres e homens ilustres, pobres e ricos que deixaram essa grande herança de solidariedade e tolerância aos seus filhos.

P.S.
Se algum camarada conheceu o José Beiroto ou os primos na Guiné, gostaria que me desse informações sobre as suas vidas por lá.

Um grande abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P12945: Estórias avulsas (77): A história do dia seguinte! (João Alberto Coelho)

3 comentários:

Anónimo disse...

Mais uma maravilhosa história do Francisco Batista com esta originalidade de abordar a presença de ciganos na guerra de África. Interessante é também a relação de alguma convivialidade entre estes nómadas e os sedentários de Brunhoso. Boa gente esta de Brunhoso.

Um abração Francisco
Carvalho de Mampatá

Anónimo disse...



Carvalho meu grande amigo:

Trás-os-montes agradece-te a confiança que continuas a ter nas suas virtualidades e no seu futuro incerto. Como tu conheces bem é uma região de grande beleza natural que não precisa de grandes fotografos ou pintores para lhe dar realce mas precisava de mais respeito da parte dessa cambada que nos governa apostada na sua desertificação e aniquilamento.
Muito obrigado meu irmão da Guiné e meu irmão transmontano pois amas tanto esse reino encantado, que infelizmente hoje parece mais uma Atlântida que se afunda.
Sobre as qualidades e bens autenticos e essenciais de que falavamos há algum tempo nesse grande almoço na Tabanca de Matosinhos direi que temos que remontar à decada de 50, 60 e anteriores porque as grandes migrações antes e após a democracia, a par da difusão dos meios de comunicação alterou tudo, hábitos de vida forma de relacionmentos, qualidade dos produtos, moral, tipo de sociedade.
Passamos de uma sociedade de subsistência para uma sociedade de consumo. Numa sociedade de subsistência tudo é genuino e autêntico, na sociedade de consumo proliferam os vendilhões do templo
e não há um Cristo que consiga correr com eles.
Apesar de tudo ainda há boas gentes e bons produros em Trás-Os-Montes, há aquela paisagem que nos encanta e faz sonhar.
Na última quarta-feira comprei um vinho fino barato e de grande qualidade, com 22 anos de pipa, ao nosso amigo Josema, que eu recomendaria a todos os camaradas para beber na Páscoa. Um produto de grande qualidade de Trás-os-Montes.

Um grande abraço
Francisco Baptista

Anónimo disse...



Esqueci-me de confessar que sendo O Josema um poeta, o vinho fino que me vendeu é um poema de graça e de nostalgia poética. Todos os sentidos comungam da sua qualidade, sente-se a beleza das fragas, do tojo, das urzes, das estevas, vêm-se as arribas do Douro, o serpentear desse grande rio ibérico, a imensidão dos montes e vales desse grande rio ibérico. O sabor alonga-se na imensa paisaigem de montes e vales de Trás-Os-Montes.

Obrigado meu amigoo Josema , faz mais poemas.

Um grande abraço
Francisco Baptista