1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Junho de 2014:
Queridos amigos,
Despertou-me o interesse o Major João Luiz Mendes Paulo escrevera em “Elefante Dundum” acerca do comportamento heróico do 1.º Cabo Duarte Dias Fortunato que tentou proteger o seu comandante de pelotão, Alferes Rodrigues, que ficara cego, resistira sozinho até se esgotarem as munições.
O Major Mendes Paulo foi altamente crítico desta ação, o inimigo aproveitou-se da permanência em Piche durante dois dias de importantes meios de artilharia, preparou-lhe uma emboscada brutal e bem-sucedida. Fortunato conta a sua desfortuna, foi o primeiro prisioneiro depois da Operação Mar Verde, penou mais de três anos e meio até ser resgatado. Um desaparecido em combate que suportou com bravura, antes e depois.
Um abraço do
Mário
Duarte Dias Fortunato:
O primeiro prisioneiro de guerra depois da Operação Mar Verde
Beja Santos
Em “Elefante Dundum”, pelo Major João Luíz Mendes Paulo, edição de autor, Maio de 2006, conta-se a ação “Mabecos”, realizada por forças de artilharia de Canquelifá, Sare Bacar e Piche, no total de doze bocas-de-fogo da mais pesada artilharia existente na Guiné, com a missão de bater fortes concentrações do inimigo, a partir de posições o mais a sul possível, junto ao rio Corubal. O Major Mendes Paulo tece profundas críticas aos preparativos da ação, tomou a decisão de pôr termo à sua briosa carreira militar. Na bibliografia de “Elefante Dundum” refere o artigo “Desaparecido em Combate”, publicado na revista da GNR de abril de 2000. Foi-me facultado o artigo que me parece digno de registo, é uma importante peça histórica. Na altura em que o artigo foi publicado, Duarte Dias Fortunato era Soldado de Infantaria da GNR e prestava serviço no Posto Territorial de Quiaios, na Figueira de Foz.
Escreve Fortunato:
“Quando, no dia 22 de fevereiro de 1971, pelas 13,30 horas, nos preparávamos para sair do quartel de Piche e iniciar a operação Mabecos, ocorreu um acidente com uma granada, na caserna do 1.º GC/CCAV 2749. Como consequência, registou-se um elevado número de baixas. Depois de iniciada a marcha e de termos percorrido alguns quilómetros pelo mato, caímos numa emboscada. O tiroteio era infernal, os projeteis a passarem por todos os lados, as explosões de morteiros e roquetes davam-se mesmo ao pé de nós.
A meu lado caíram vários militares, feridos ou mortos, parecendo-me um deles ser o alferes, comandante do meu grupo. Fiz quanto pude para evitar que mais fossem atingidos ou capturados, sempre na esperança que alguém nos viesse socorrer.
Acabando-se-me as munições, vi que não podia resistir mais e corri em direção a uma viatura blindada, parada debaixo de uma árvore, a cerca de 80 metros do local onde me encontrava. Quando já estava perto da mesma, o inimigo abriu fogo sobre mim e fui obrigado a deitar-me ao chão. Logo de seguida caíram-me em cima, sem que da viatura próxima fizessem fogo para me salvar daquela situação.
Realmente, talvez o não pudessem fazer, pois estavam como eu a ser alvejados, tendo nessa altura rebentado um roquete mesmo na árvore onde se encontrava parada a viatura que eu pretendia alcançar.
Naquele momento, angustiado por ter estado tão perto, agarrado e arrastado pelo mato, percebi que perdera a liberdade e era agora um prisioneiro”.
Começa o seu calvário, leva cronhadas e pontapés até que o comandante do grupo do PAIGC proibiu mais agressões. Aos encontrões e amarrado, atravessou o rio Corubal. Depois de várias horas de caminhada, chegaram a uma base onde foi mandado despir completamente. O Duarte Fortunato pensou que tinha chegado a sua hora. Meia hora depois deram-lhe novamente a farda e mandaram-no vestir. Subiu para um camião e foram para Conacri e metido numa prisão.
Observa:
“A prisão estava parcialmente destruída, situação que resultou da ação da nossa tropa aquando a invasão a Conacri.
Ao entrar na prisão, fui entregue a um indivíduo deficiente de um braço que me levou para uma cela bastante escura, só com uma cama de tábuas, sem colchão e com uma manta velha.
Passados três dias após a minha chegada à prisão, fui confrontado com o primeiro interrogatório. Para o efeito, apareceram três indivíduos de cor branca, cabo-verdianos, muito bem vestidos, que me fizeram diversas perguntas, à maioria das quais eu não respondia: quantos soldados havia em Piche, nomes dos comandantes, em que abrigo estava o canhão sem recuo…
Como não falava, era agredido de todas as maneiras. Os interrogatórios prosseguiram durante seis meses, depois deixaram de me interrogar.
Ao fim de dois anos, começaram a chegar mais prisioneiros: uns capturados no posto de sentinela, outros que saíam do quartel para irem à caça e eram caçados. No final éramos oito.
Um certo dia, mandaram-nos sair da prisão, fomos metidos num camião do PAIGC, ao fim de três dias chegámos a Madina de Boé. Percebemos que estávamos a mudar para um prisão improvisada mas com muita segurança e ali permanecemos alguns meses. Aqui sofremos muito com a nossa aviação, que atacava frequentemente o local. Houve depois uma fuga e os prisioneiros foram deslocados para o lado da fronteira da Guiné Conacri. Quando chegámos a um local, junto de um grande rio, cujo nome nunca soube, ali acampámos. Construíram uma prisão de madeira onde ficámos instalados alguns meses.
Certo dia pela manhã, apareceram alguns guardas com os rádios junto aos ouvidos e gritavam com júbilo “Tuga, tuga, Marcelo caiu. Independência, independência”. Através da rádio demos conta que em Portugal tinha havido um golpe de Estado.
No dia 11 de setembro, entregaram-nos vestuário dizendo-nos que no dia seguinte seguíamos em direção a Bafatá, a fim de sermos entregues por troca com outros prisioneiros. Ao fim de três dias chegámos a Bafatá. Embarcámos de seguida num avião militar, onde recebemos os primeiros cuidados médicos.
Em Lisboa, foi colocada uma carrinha à nossa disposição, um médico e um enfermeiro foi dada a possibilidade de visitar familiares, se os tivéssemos. Eu tinha uma irmã. Chegados ao local, o médico tocou à campainha, perguntou pela minha irmã e disse-lhe que viesse abrir a porta que estava ali o seu irmão Duarte. A minha irmã respondeu-lhe da janela que o irmão Duarte tinha desaparecido da Guiné e que não podia ser verdade.
Quando eu sai da carrinha e lhe disse que viesse cá abaixo abrir a porta, que realmente era eu, a minha irmã já não disse mais nada, tinha desmaiado. Encontrei a minha irmã vestida de luto, assim como mais tarde encontrei a restante família. Fui informado que tinham mandado rezar missas por minha alma. Encontrei também duas filhas maravilhosas. Uma que tinha deixado quando fui para a Guiné e outra que nasceu depois de eu ter sido preso.
Muito mais havia para contar, pois cada dia lá passado foi de fome, sofrimento, morte, vida por um fio e por cá muitas coisas mudaram nos três longos anos e duzentos e dois dias que estive preso. Talvez um dia, quando estiver reformado, recorde mais pormenores e complete devidamente a minha história”.
Para mais informações sobre estes acontecimentos do Piche, o Google fornece algumas pistas. Recomendo a título exemplificativo:
http://sicnoticias.sapo.pt/programas/sobreviventes/2011-10-20-nas-maos-do-p.a.i.g.c;jsessionid=6B099AA515E491D6EE55E3A353485ECC
http://cart3494guine.blogspot.pt/2011/10/p127-guerra-colonial-guine-prisioneiros.html
http://aguerracontinua.blogspot.pt/2011/02/guine-operacao-mabecos-22-de-fevereiro.html
____________
Nota do editor
Último poste da série de 6 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14438: Notas de leitura (700): “Operação Gata Brava": A BD original de António Vassalo Miranda (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
3 comentários:
caros amigos:
Somos surpreendidos quase todos os dias com histórias vividas por ex-camaradas no teatro de operações da Guiné.
Esta está cheia de peripécias e sofrimento e chega a comover. Bravo, Fortunato, merecias que o Estado olhasse para ti como um herói, que o foste de verdade, e se responsabilizasse pelas tuas dificuldades, ajudando-te em tudo o que necessitasses.
A realidade é bem diferente, resta-te a amizade e ajuda dos teus ex-camaradas de guerra. O Estado que te atirou para a guerra abandona-te sem o mínimo pudor.
Caro Fortunato,envio-te um grande abraço. Para ti e para os teus ex-camaradas de Bafatá, que devem ter passado por situações similares.
Manuel Reis
Pelo que li sobre a operação "mabecos"..foi uma verdadeira irresponsabilidade e incompetência de quem a idealizou.
Deslocar meios de artilharia em tão grande quantidade, para além de desguarnecer os quartéis de onde foram deslocados o IN iria saber e só podia dar no que deu.
Nem quero imaginar se tivessem acertado nas "cargas" ..o desastre seria ainda maior.
Louvo a acção dos artilheiros que fizeram fogo debaixo da emboscada..não era fácil colocar os obuses em posição e arriscavam ao fazer tiro directo rebentar com os hidráulicos.
Um grande alfa bravo para o camarada Fortunato e restantes camaradas prisioneiros.
C.Martins
Para o regime abrilista (abrilismo foi e é um regime, Duarte Dias Fortunato, não conta para o censo,
Enviar um comentário