domingo, 5 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14435: Libertando-me (Tony Borié) (11): Tabanca de Luanda, Mansoa, o nosso terreiro

Décimo primeiro episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.



Andávamos por ali, cigarro entre os dedos, a “tabanca de Luanda”, que era ao norte do aquartelamento, pelo menos era assim que lhe chamávamos no nosso tempo, era a nossa “baixa da vila”, a nossa “zona dos cafés”, o “nosso terreiro do adro”, ou seja a nossa zona preferida para passear, mostrar a “roupa lavada”, dar “dois dedos” de conversa, ao “homem grande” ou a uma das suas filhas, comprar “um peso de mancarra”, um “cigarro feito à mão” ou provar a aguardente de palma.

Aquele cheiro já tinha magia, a terra vermelha, o pó, as casas cobertas de colmo, debaixo de enormes árvores de mango, aquela folhagem muito mal tratada em volta, o cão faminto, cheio de insectos, coçando-se nas nossas pernas quando parávamos, procurando algum carinho, aquele “puto”, com o ranho no nariz, vindo junto de nós, metendo logo a mão no nosso bolso, procurando os rebuçados que comprávamos no loja do Libanês, a nossa “namoradinha”, (às vezes, só no pensamento), que também esperava, entre outras coisas pela comida do aquartelamento, enfim, lembranças de um passado da vila de Mansoa, do “nosso aquartelamento”, de uma zona de guerra, que tal como em tudo na nossa vida, também tinha o outro lado, o menos mau.


Naquele tempo, pelo menos por Mansoa, falando nos aspectos da vida militar, nós éramos muito mal alimentados, para o final da comissão já não se suportava o cheiro do arroz e peixe da bolanha, (por isso ainda hoje gostamos de amendoins), ou batatas com atum de conserva, éramos muito mal equipados, muito mal apreciados, não havia o mínimo de facilidades para se ter uma higiene primária, não falando no miserável vencimento, éramos, como muitos dos nossos companheiros dizem, “carne para canhão”, em muitos momentos, o nosso moral estava em declínio, o respeito ia diminuindo para com alguns dos nossos superiores, um sentimento crescente de incertezas ia entrando nos nossos pensamentos, qualquer coisa andava por ali, à deriva, sem qualquer rumo, havia mesmo um sentimento revoltoso com uma forte tendência para se “fazer asneiras”, coisas sem qualquer senso comum, mas tudo isto tinha um nome, o tal nome que nos vai acompanhando, pois fomos e continuamos a ser, combatentes de uma maldita guerra de guerrilha, traiçoeira, que podia fazer mortes em qualquer momento, bastava andar por ali.

Ficámos marcados, um ferro em brasa, sem qualquer tipo de contemplações, deixou a sua marca no nosso corpo, a nossa alma foi baleada, perfurada, depois do que vimos, ouvimos e cheirámos, os nossos sentimentos mais profundos, os princípios de moral que nos foram ensinados em casa e na nossa aldeia, foram violados. Tudo isto, já passado e, agora, sem que nada possamos fazer, continua a acompanhar-nos, pelo menos enquanto por cá andarmos, quer queiramos ou não, vamos transmitindo à nova geração, que por mais que qualquer de nós queira disfarçar, nunca irá conseguir, essa é a verdade.

Tony Borie, Abril de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14414: Libertando-me (Tony Borié) (10): ...E mais os outros todos

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