Décimo primeiro episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Andávamos por ali, cigarro entre os dedos, a “tabanca de
Luanda”, que era ao norte do aquartelamento, pelo menos
era assim que lhe chamávamos no nosso tempo, era a
nossa “baixa da vila”, a nossa “zona dos cafés”, o “nosso
terreiro do adro”, ou seja a nossa zona preferida para
passear, mostrar a “roupa lavada”, dar “dois dedos” de
conversa, ao “homem grande” ou a uma das suas filhas,
comprar “um peso de mancarra”, um “cigarro feito à mão”
ou provar a aguardente de palma.
Aquele cheiro já tinha magia, a terra vermelha, o pó, as
casas cobertas de colmo, debaixo de enormes árvores de
mango, aquela folhagem muito mal tratada em volta, o
cão faminto, cheio de insectos, coçando-se nas nossas
pernas quando parávamos, procurando algum carinho,
aquele “puto”, com o ranho no nariz, vindo junto de
nós, metendo logo a mão no nosso bolso, procurando os
rebuçados que comprávamos no loja do Libanês, a nossa
“namoradinha”, (às vezes, só no pensamento), que
também esperava, entre outras coisas pela comida do
aquartelamento, enfim, lembranças de um passado da vila
de Mansoa, do “nosso aquartelamento”, de uma zona de
guerra, que tal como em tudo na nossa vida, também
tinha o outro lado, o menos mau.
Naquele tempo, pelo menos por Mansoa, falando nos
aspectos da vida militar, nós éramos muito mal
alimentados, para o final da comissão já não se
suportava o cheiro do arroz e peixe da bolanha, (por isso
ainda hoje gostamos de amendoins), ou batatas com
atum de conserva, éramos muito mal equipados, muito
mal apreciados, não havia o mínimo de facilidades para
se ter uma higiene primária, não falando no miserável
vencimento, éramos, como muitos dos nossos
companheiros dizem, “carne para canhão”, em muitos
momentos, o nosso moral estava em declínio, o respeito
ia diminuindo para com alguns dos nossos superiores, um
sentimento crescente de incertezas ia entrando nos
nossos pensamentos, qualquer coisa andava por ali, à
deriva, sem qualquer rumo, havia mesmo um sentimento
revoltoso com uma forte tendência para se “fazer
asneiras”, coisas sem qualquer senso comum, mas tudo
isto tinha um nome, o tal nome que nos vai
acompanhando, pois fomos e continuamos a ser,
combatentes de uma maldita guerra de guerrilha,
traiçoeira, que podia fazer mortes em qualquer momento,
bastava andar por ali.
Ficámos marcados, um ferro em brasa, sem qualquer tipo
de contemplações, deixou a sua marca no nosso corpo, a
nossa alma foi baleada, perfurada, depois do que vimos,
ouvimos e cheirámos, os nossos sentimentos mais
profundos, os princípios de moral que nos foram
ensinados em casa e na nossa aldeia, foram violados.
Tudo isto, já passado e, agora, sem que nada possamos
fazer, continua a acompanhar-nos, pelo menos enquanto
por cá andarmos, quer queiramos ou não, vamos
transmitindo à nova geração, que por mais que qualquer
de nós queira disfarçar, nunca irá conseguir, essa é a
verdade.
Tony Borie, Abril de 2015
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Nota do editor
Último poste da série de 29 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14414: Libertando-me (Tony Borié) (10): ...E mais os outros todos
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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