Sexto episódio da nova série "Atlanticando-me" do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66).
Às armas, às armas,
contra os canhões, lutar... lutar!
Olá companheiros.
Novo ano, oxalá continuemos juntos, pelo menos até às
novas Festas de fim de Ano e, já agora com saúde e
alegria, no meio de todas estas “modernices”. Se tiveram
pachorra, leram a história do Nico, que era Eurico, talvez
seja igual a dezenas de “Manéis, Antónios, Josés e Joões,
que deixaram o seu país, na esperança de uma vida mais
confortável, ou talvez só para ver novos continentes,
novos costumes ou novas pessoas.
Não queremos falar
no novo título, que dá pelo nome de “Atlanticando-me”,
que até nós temos dificuldade em pronunciá-lo, como
quase todos já sabem o nosso preferido era “A Pedra
da...”, mas esse potencial título já tem dono... o Hélder
não o larga, e faz muito bem, pois é muito original e dá
“pano para mangas”!.
Voltamos à guerra, às armas de fogo, à Guiné, a Mansoa,
onde havia uma comunidade de
militares, civis e talvez alguns guerrilheiros onde, para os mais
velhos, não era necessário ter divisas, davam ordens
aos mais novos, era a regra, era a origem das coisas,
cumpria-se e, só depois de cumprir, se “refilava”. O nosso
sargento da messe, que na altura devia andar pelos trinta
e tais, para nós parecia um “velho”, hoje lembramo-nos
que podia ser nosso neto, mas adiante, frequentemente
ordenava-me mais ou menos isto:
- Olha, vê se me limpas e oleias a pistola e a G3, porque
qualquer dia isto já não dispara.
Nós não estávamos muito familiarizados com armas de
fogo, contudo pedíamos ao furriel do pelotão de
morteiros, aquele que andava sempre a fumar um cigarro
feito à mão, que pertencia ao nosso grupo de “fumadores
e bebedores”, que ajudou a construir um cabanal, onde
havia uma mesa feita de barris de vinho vazios, onde
limpavam e davam manutenção ao equipamento de
combate, que depois de limpo andava
por ali a dar tiros, aos pássaros da bolanha ou a qualquer
outra coisa que mexesse e, ainda hoje não sabemos se
esses tiros eram dados para passar a mensagem de que
se estava vivo e se andava por ali, ou se eram tiros de raiva contra
o sistema que nos mandou para África.
Tudo isto bem a propósito de que o nosso Presidente
Obama, limpar algumas lágrimas em frente a um canal
de televisão, lamentando tantos tiros que por aqui são
dados, onde morrem adultos e crianças inocentes, as
suas lágrimas também são nossas, juntamo-nos a ele
nesta luta para acabar com a venda de armas de fogo a
qualquer um que as queira comprar, sem haver uma
identificação rigorosa, seguida de um treino em
estabelecimento apropriado, que devia durar o tempo
suficiente para que no final o instruendo pudesse ser
avaliado por um júri qualificado.
Falámos com o nosso vizinho a respeito de armas de
fogo, ele, que por aqui vive há mais de dez anos, veio de
Nova Iorque com a esposa, andam pela nossa idade,
emocionado disse-nos mais ou menos estas palavras:
- Após meses de exame de consciência, decidimos
comprar um revólver, não foi uma decisão de ânimo leve,
pelo menos os nossos filhos tentaram dissuadir-nos,
mas depois do que vemos e ouvimos na televisão todos
os dias, com actos de violência em todo o lado, ficámos
com a sensação de que deveríamos fazer algo diferente,
não estamos dispostos a esperar que alguém nos
proteja, temos a sensação de que devemos ser nós a
assumir a nossa segurança. Também sabemos que não
somos os únicos a lutar com esta decisão, pois as lojas
de armas em todo o país estão a revelar um aumento nas
suas vendas, entendemos que é um facto triste que as
vendas de armas vão para cima depois de um qualquer
tiro ou ataque terrorista, mas uma coisa é certa, não
temos ilusões, pelo menos nós, que somos seres
humanos, portanto criaturas emocionais, vamos continuar
a ser boas pessoas e bons vizinhos, apesar de possuirmos
uma arma de fogo, contudo não vamos continuar a
ser um alvo fácil, vamos fazer como alguém já disse,
“quando tentarem roubar-te a vida, fala macio e mostra
um cajado dos grandes", pelo menos nós, não nos
queremos sentir num alvo fácil.
Por aqui, em alguns estados, a venda de armas é quase
um ritual normal, quase como ir a um “supermercado”,
comprar, batatas, cebolas, arroz e pão, para consumo
normal de uma vida normal, abastecer-se, embrulhar e
trazer para casa, só com a diferença que devem
preencher um simples formulário, que posteriormente será
entregue ao departamento de segurança da sua área,
entretanto, já saem armados do estabelecimento, dizem-nos
até que armas de fogo, munições e outras partes de
equipamento de combate, são um investimento, compra-se
uns milhares de munições calibre tal, passado um
tempo já valem mais, mesmo na “feira das pulgas”, que é
uma feira de fim de semana, que se realiza na área onde
vivemos, já abriu uma loja de armas de fogo, está sempre
ocupada com potenciais clientes honestos, ou futuros
homicidas, dizem-nos que compram armas para
protecção pessoal, colecção, divertimento de tiro ao alvo,
ou para a caça aos ursos, fazendo de nós pessoas
inocentes, “uns grandes ursos”.
De um modo ou de outro, todos nós sabemos uma coisa
que cada vez se torna mais verdadeira, anda por aí muito
idiota, que não consegue controlar-se e decide largar
toda a sua raiva em pessoas inocentes, usando uma
arma de fogo. Se entrevistarem 10 pessoas que possuem
armas de fogo, pelo menos 6 vão responder que entre
outras coisas é por receio ao terrorismo, palavra muito
frequente entre o nosso vocabulário, enquanto
combatentes, lá nas bolanhas e savanas da então nossa
Guiné.
Antes de terminar, só mais um pequeno pormenor, há por
aqui estados, como por exemplo o Texas, onde possuir
uma arma de fogo é normal, como qualquer cidadão usar
um par de sapatos para protecção dos pés, portanto é
uma sociedade quase armada, mas educada por
gerações, onde se respeitam, pois quando se cruzam
duas pessoas na rua, não vão entrar em conflito, pois
sabem que tanto um como o outro podem estar armados,
portanto é uma sociedade altamente resistente a
qualquer ataque
Tony Borie, Fevereiro de 2016
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Nota do editor
Último poste da série de 7 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15716: Atlanticando-me (Tony Borié) (5): Nunca é tarde (5)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Tony, desenvolves aqui uma ponto de vista interessante, esse das armas de defesa individuais na América.
Mas essas armas em países americanos como aí, Brasil, México, Colômbia, Venezuela, etc. etc. são um risco pior do que aquelas minas anti-pessoal e anti-carro que havia na Guiné e em Angola e Moçambique.
Falam os técnicos de desminagem de campos minados que daqui a 100 anos, ainda vão rebentar minas nos campos de Angola nesta guerra angolana onde entraram americanos, cubanos, sul africanos e russos para substituir a gente.
Tony, esses países armados americanos são mais difíceis de desminar do que os países africanos como Angola.
No Rio conheçi eu ao vivo o que são armas à solta e mais que uma apontadas a mim, e tal como em Angola nos meus treze anos de guerra, onde só por sorte ouvi tiros na carreira de tiro, aprendi que a melhor arma de defesa é estar desarmado.
No meu ponto de vista, (tenho pontos de vista para quase tudo, há 40 anos para cá, antes era novo, não pensava), Tony, o Obama, pelo que leio, tem a mesma opinião que eu, isto é, sem armas.
Ao menos os cow-boys antigos andavam na rua com os revólveres à mostra, o que era pouco grave .
Penso que o Obama tem razão, mas nem sempre quem tem razão, leva a melhor, tal como aconteceu connosco na Guiné e os nossos comandos africanos.
Cumprimentos e manda sempre.
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