domingo, 4 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16444: Manuscrito(s) (Luís Graça) (95): Por aqui passou Mamadu Indjai, o terrível


Por aqui passou
Mamadu Indjai, o terrível



por Luís Graça


E de repente
tudo te é estranho,
o muro que corta, rente,
a brisa da manhã,
a fonte onde ainda ontem
os djubis tomavam banho,
o portentoso poilão aonde ias rezar,
à tua maneira, ao teu irã,
a ponta onde colhias a manga e o abacaxi,
o macaco-cão que chora e que ri…

D
e repente
não sabes donde vens,
não sabes o que és,
aqui de camuflado e de G-3,
nem a verdadeira razão para matar e morrer,
não sabes o que fazes neste lugar,

muito longe da tua terra,
abaixo do Trópico de Câncer,
a 11 graus e tal de latitude norte.

M
al reconheces, pobre periquito,  

os sinais da guerra,
o combate em noite de luar,
o cavalo de frisa esventrado,
os pássaros de morte,
os jagudis no alto da árvore descarnada,
a terra revolta, ensanguentada,
o arame farpado, 

aqui e acolá cortado,
o colmo das moranças, 

carbonizado,
o medo que não se vê mas se pressente, 

num olhar de relance, breve,
sobre a tabanca que quiseram riscar do mapa, 
as cápsulas de 12.7 da metralhadora pesada Degtyarev,
um par de chinelos,
os caracteres chineses dos invólucros, amarelos,
das granadas de RPG…


Um triste cão, vadio e louco, ladra
ao cacimbo fumegante
e o seu latido lancinante
ecoa pela bolanha fora.
A seu lado, a única velha,
que não se foi embora,
com a sua máscara impassível
de séculos de dor,
de seu nome, Satu.

Mais tarde, saberás tu,
saberão de cor,
os jovens pioneiros,
os "blufos", do PAIGC,
que por aqui passou Mamadu Indjai, o terrível,
hoje valoroso,
amanhã insidioso,
combatente da liberdade da pátria,
hoje herói,
amanhã traidor,
que nunca conhecerá a glória nem a honra
do Forte da Amura,
transformado em Panteão Nacional.

Diz-me tu, Satu, mãe e pitonisa,
onde estão as mulheres da tua tabanca,

com os balaios à cabeça
e os seus filhos às costas ?
Onde estão as tuas gentis bajudas,
de mama firme, 

cujo sorriso nos climatizava os nossos pesadelos ?
Onde estão o régulo e os suas valentes milícias ?
Para que lado corre o Rio Corubal
e donde vêm aqueles sons, ambivalentes, de bombolon?


Diz-me tu, homem grande, 
onde fica o Futa Djalon ?
E de que ponto cardeal
sopram os ventos da história, afinal ?


Dizes-me onde fica Meca, meu irmão ?
E, no seu conciliábulo,
os nossos deuses, o meu e o teu,
o que sobre nós decidirão, cinicamente ?


Diz-me onde está o velho cego, 
mandinga,
a quem demos boleia,
que tocava kora
e nos contava a história
de velhos e altivos senhores
agora servos no seu chão ?

P
assei na madrugada
de um final de mês de julho de 1969,
pela tua tabanca, abandonada,
do triste regulado do Corubal,
de que já não guardo o nome,
na memória:

Sinchã qualquer coisa,
Sinchã-a-ferro-e-fogo, 
Afiá ou Candamã ?
Que importa, minha irmã,
o topónimo para a história?!...

V
enho apenas em teu socorro,
meu irmãozinho,
quando as cinzas ainda estão quentes
no forno da tua morança,
da morança que fora também minha…

R
aiva, sim, meu camarada,
Abibo Jau, meu bom gigante,
que serás mais tarde fuzilado em Madina Colhido
com o teu comandante Jamanca,
como eu te compreendo!…
Mas vingança, para quê ?
De guerra em guerra se chega ao nada!



A um espelho partido me estou vendo,
e a mim mesmo me pergunto 

quem sou eu,
triste tuga entre tristes fulas, ai!,
para te dar lições de história ?!


Saberei apenas, 
muito anos depois,
que, julgado e condenado em Conacri,
fuzilaram o Mamadu Indjai,
no Boé, 

que diziam ser região libertada da Guiné…

O
mesmo Mamadu Indjai 
(*),
acrescente-se, 
fero e bravo comandante,
que ferimos gravemente
no decurso da operação Nada Consta,
o mesmo Mamadu Indjai,
que, três anos e meio depois,

chefe das "secretas",
será o Judas de Amílcar Cabral.


Versão 10, Lourinhã, 11  agosto de  2016 (**)

___________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 2 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16441: Notas de leitura (874): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte IX: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (V): Finalmente o regresso a casa, depois do pesadelo do Fiofioli, na margem direita do Rio Corubal... Este homem, hoje professor universitário (?), tem histórias para
contar aos netos...

(...) Comentário de Tabanca Grande [LG]:

(...) Neste tempo /1968/70), no nosso setor L1 (Bambadinca), ao longo da margem direita do Rio Corubal, o PAIGC teria 5 bigrupos (Um bigrupo, eraconstituído por 40/50 guerrilheiros), em cinco zonas: Poidom/Ponta do Inglês/Baio Buruntoni, Ponta Luis Dias, Mina/Fiofioli (2), e Galo Corubal, ou seja entre 200 e 250 homens em armas, mais um 1 grupo de artilharia (morteiro 82, canhão s/r 75 e 82) + 1 grupo especial de bazuqueiros (RGP) (em Mangai). A principal "base" era Mina / Fiofioli, uma mata densa, de floresta-galeria... Não estava ao alcance da artilharia do Xime... Em 1969. o comandante era o Mamadu Indjai.

No meu tempo a mata do Fiofioli era vista como um "mito", infundindo muito respeito às NT... Nos últimos da guerra (e nomeadamente em 1973), o PAIGC retirou forças desta região...

Estranha-se que o médico cubano Amado Alfonso Delgado tenha omitido o importantre revés que foi para o PAIGC a baixa do comandante Mamadu Indjai, gravemente ferido pelas NT no decurso da Op Nada Consta, em agosto de 1969

Vd. poste de 7 de setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6948: A minha CCAÇ 12 (6): Agosto de 1969: As desventuras de Malan Mané e de Mamadu Indjai nas matas do Rio Biesse... (Luís Graça)

Este Mamadu Indjai é o mesmo que fez parte do complô contra Amílcar Cabral em 1973, em Conacri... Será julgado (?) e fuzilado... Era de etnia mandinga.

Temos dez referências no blogue sobre este homem...que pôs o lado meridional do chão fula a ferro e ferro.


(**) Último poste da série > 31 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16432: Manuscrito(s) (Luís Graça) (94): Salvé, minha safada, pequena, bela Helena, hiena, de Bafatá!

7 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Para o historiador guineense Leopoldo Amado e nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, o Mamadu Indjai, "grande comandante" do PAIGC, con provas dadas na luta, teria ligações à PIDE/DGS, razão por que fez parte do grupo que planeou e executou o assassío de Amílcae Cabral. Veja-se aqui um poste dele, na sua página no Facebook, de 27 de setembro de 2014... Aqui vai um excerto, com a devida vénia:


https://www.facebook.com/leopoldo.amado/posts/758713677508185


Assim, relativamente ao excerto em questão, não entendo a perplexidade de uns e a incredulidade de outros, ao exigirem nomes e provas.

Quanto a nomes, darei de seguida apenas alguns exemplos, sobejamente conhecidos, de "grandes comandantes" que colaboraram com a PIDE-DGS, sem que tal constitua novidade nenhuma, na medida em que o assunto é do domínio público em vários livros que versam o assunto, incluindo um dos meus. Assim, é apenas novidade para "O Democrata".
Quanto a provas, lamento sugerir aos que as exigem, que procurem eles próprios perpassar, feliz ou infelizmente, tal como fiz, uns bons milhares de documentos alusivos ao assassínio de Cabral e os submetam a provas de autenticidade, antes de intrinca-los, cruza-los, para só depois os interpretar historicamente.
Voltando ainda a nomes, pergunto:

- Inocêncio Kani (o autor do primeiro disparo contra Cabral) tinha ou não tinha ligações com a PIDE-DGS? Tinha. Era ou não um grande Comandante do PAIGC? Era. Tanto é que comandou grupos de guerrilheiros no Norte, antes de ascender as funções de Comandante da Marinha.

- Mamadú Indjai tinha ou não tinha ligações com a PIDE-DGS? Tinha. Era ou não um grande Comandante do PAIGC? Era. Tanto é que chegou de ser Comandante de grupos que actuavam na área entre Bissorã e Bancolene, antes de ascender as funções de responsável de segurança do Secretariado do PAIGC em Conacri.

- Inácio Soares da Gama, tinha ou não ligações com a PIDE-DGS? Tinha. Era ou não um grande Comandante do PAIGC? Era. Tanto é que era, nem mais nem menos, o Comandante da região Leste. (...)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Leopoldo, viva!

O Mamadu Indjai era comandante do "setor 2" (região do Xime / Xitole) em 1968/69. Espalhou o terror na chao fula, no flanco sul, na época das chuvas, no ano de 1969... Andámos (CCAÇ 12 e outras unidades do setor L1 e do COP 7, mais o BCP 12) atrás dele, até que foi gravemente ferido em agosto de 1969... Foi evacuado para a União Soviética, para tratamento prolongado... O que lhe fizeram, não sei, mas podemos especular... O Inocêncio Kani também era "pró-soviético"... mas o Amílcar Cabral, seguramente que não...

Tu bem sabes como a guerra da Guiné também era parte (uma pequena peça do "puzzle") da estratégia da "Guerra Fria"... Qual era o poder da PIDE/DGS ao lado dos colossos CIA e KGB ?... Mas, enfim, tu é que és um especialista do PAIGC e da história da luta pela independência... Mas eras um "djubi" em 1969...

Um abraço grande... LG

Manuel Luís Lomba disse...

Dos maiores "malefícios" que a PIDE/DGS terá legado à Guiné-Bissau, os mais importantes serão o patriotismo e o seu potencial dos combatentes bissau-guineenses e a imprevidência que propiciará à direcção política do PAIGC fazer da sua pátria um Estado falhado.
Não havendo sido actores nesse palco da formação da Guiné-Bissau da Guiné-Bissau,Leopoldo Amado, a despeito de notável historiador, aborda a sua história desse ciclo a partir de outros. O desgraça pessoal de Amílcar Cabral era intrínseca à própria "natureza contra-natura" do PAIGC. A sua eliminação terá sido gerada e criada não na capital de Bissau, mas na "sua capital" de Conacri, servindo-se da componente "guineense", Osvaldo e Nino Vieira, etc. etc...
Como é que a sua "inteligência" havia confiado a segurança do seu líder carismático a Mamadu Indjai, um patriota e herói - mas mancomunado com a PIDE?...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

(..) Candamã, tabanca fula em autodefesa do regulado do Corubal, é atacada durante mais de duas horas até ao amanhecer do 30 de Julho. Esse brutal ataque (o PAIGC utilizou um bigrupo e armamento pesado) surgiu na sequência do recrudescimento da actividade IN no tradicional triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, após a Op Lança Afiada.

Nesta operação que se realizou, de 8 a 18 de Março último, a nível de agrupamento, estiveram empenhados 1.300 homens (incluindo milícias e carregadores civis), tendo as NT penetrado em santuários do IN, como a mata do Fiofioli.

Embora desarticulado o seu dispositivo na área compreendida entre a linha geral Xime-Mansambo-Xitole e a margem direita do Rio Corubal, o IN não deixaria, no entanto, de desencadear um ou dois meses depois uma série de acções de guerrilha que culminariam com um ataque, em força, ao aquartelamento de Bambadinca, na noite de 28 de Maio de 1969.

Só no subsector de Mansambo, o IN tinha até então montado 2 emboscadas (1 com mina comandada) às NT, flagelado 5 vezes o aquartelamento de Mansambo e atacado em força o destacamento de milícias de Moricanhe (retirado a seguir).

Desta vez (isto é, com o ataque a Candamã, a 30 de Julho), tudo indicava que o IN se tinha instalado no regulado do Corubal, dispondo para o efeito duma cadeia de acampamentos temporários (barracas) que lhe dava ligação às suas bases mais recuadas, junto ao Rio Corubal (Galo Corubal, Mina/Fiofioli, Mangai, Ponta Luís Dias... vd. cartas do Xime, Xitole e Fulacunda). (...)


Vd. poste de 7 DE SETEMBRO DE 2010
Guiné 63/74 - P6948: A minha CCAÇ 12 (6): Agosto de 1969: As desventuras de Malan Mané e de Mamadu Indjai nas matas do Rio Biesse... (Luís Graça)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2010/09/guine-6374-p6948-minha-ccac-12-6-agosto.html

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Depois do ferimento grave de Mamadu Indjai, "operado de urgência na zona 7", o Amílcar Cabral não sabia quem o deveria substituir... O Bobo Keita ofereceu-se, em Boké, para substituir o Mamadu Indai "por 15 dias", por sugestão de Amílcar Cabral...

Acabou por lá ficar nove meses, ou seja, até ao fim do 1º semestre de 1970... A "zona 7 (...) ficava nas regiões de Xime, Bambadinca e Xitole", diz o Boto Keita, nas suas memórias "De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita", de Norberto Tavares de Carvalho, edição de autor, 2011, 303 pp.)... "Era um triângulo onde onde se encontrava uma cambança que permitia passar para o Norte através do rio Geba, via Enxalé"... "Era um lugar difícil" (p. 134)...

... Fico com dúvidas se o Mamadu Indjai chegou a ir tratar-se à URSS...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A fechar o mês (quente) de julho de 1969, é a vez da tabanca em audodefesa de Candamã [, já no limite leste da ZA da unidade de quadrícula de Mansambo, ] conhecer o inferno: a 30, às 3h40, um numeroso grupo IN (80 a 100 elementos, comandados por Mamdu Indjai) ataca a tabanca, até de madrugada, durante 2 horas e 20 minutos, utilizando 2 Canhões s/r, Mort 82, 3 Mort 60, LGFog, Metralhadora Pesada, Pistolas-Metralhadoras e Granadas de Mão Defensivas, causando um 1 ferido grave e 4 feridos feridos às NT e 2 mortos, 3 feridos graves e vários ligeiros à população civil...

Valeu o comportamento heróico dos homens de Mansambo, da CART 2339 - menos de um pelotão (uma secção estava em Afiá)!... Homens que eu conheci e abracei, nessa mesma madrugada, quando a aldeia ainda fumegava, na sequência de incêndio de várias moranças!...

Antº Rosinha disse...

Luís, há dias na televisão assistimos aos argumentos sobre política angolana entre João Soares e o embaixador angolano.
Como da discussão nasce a luz, ficámos a saber que há 2 milhões quinhentos oitenta e cinco mil novecentos e setenta portugueses no limiar da pobreza.
Quem terá ficado feliz com esta explicação terá sido o português"Luaty e os companheiros"
É sempre muito complicado a discussão entre portugueses, principalmente se forem do ultramar.
Luís Graça, a tua tenacidade vai dar frutos um dia.
Já está a dar.