segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19274: Notas de leitura (1129): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (5) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a uma tese audaciosa de que as lutas interétnicas são um dado da longa duração da violência na Guiné-Bissau, estruturaram as relações ao longo de séculos entre os povos da região, antes e depois da colonização.
Num livrinho precioso de um 2.º Sargento, de nome António dos Anjos que viveu na colónia depois da pacificação há um importante levantamento de lutas, a que podemos acrescentar a descida dos Fulas do Futa-Djalon, guerras sem quartel com os Mandingas e Beafadas, o que levou a profundas alterações na ocupação do território da colónia, no último quartel do século XIX. A despeito desta violência interétnica, cresceu a coligação animista face à ocupação colonial, foi o grande caldo de cultura do PAIGC.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: 
O Estado é frágil, as sociedades rurais são a alma da nação (5)

Beja Santos

“Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest, Ohio University Press, 2003, é uma das investigações mais argutas e audaciosas que se publicaram no novo século sobre a Guiné pré-colonial, colonial e pós-colonial. Como se referiu em textos anteriores, o ponto de partida do investigador norte-americano é de que a fragilidade do Estado é um dado permanente daquele território, foram e são as sociedades rurais o esteio económico, social e cultural, sociedades com uma enorme capacidade volitiva para estabelecer acordos de interesse, por motivos de segurança ou de resistência, a despeito da sua autonomia, conseguindo preservar identidade no colonialismo e já na Guiné independente. A partir desta premissa maior, Joshua Forrest vai detetando sinais de que a sociedade civil rural multiétnica guineense assume compromissos de modo a que o poder maior, o do Estado, interfira o menos possível na sua autonomia, nas suas crenças, nos seus modos de comerciar, nas suas hierarquias. Os acontecimentos relacionados com a luta armada são eloquentes, diz o investigador, de que as sociedades rurais, umas cedo apoiaram o projeto do PAIGC, outras movimentaram-se em torno do projeto colonial e outras procuraram manter neutralidade. Mas tudo numa base interétnica, facilitado por um poder colonial frágil e pela pouca importância dada, nesta fase, à presença cabo-verdiana. O autor faz uma leitura de que os outros movimentos de libertação não tiveram qualquer popularidade porque ignoraram os compromissos interétnicos e não valorizaram os conceitos de autonomia das sociedades rurais.

Também para se entender a mobilização camponesa por parte do PAIGC é preciso ter em conta a memória sobre a brutalidade do processo de pacificação. Acresce que nas bases controladas pelo PAIGC, independentemente da intranquilidade das operações e dos bombardeamentos, as populações dispunham de acesso a produtos nos Armazéns do Povo, o que fazia sentir que era possível viver sem as compras feitas pelos representantes comerciais. Faço aqui um comentário de desagrado ao modo como o autor fala das práticas de terror praticadas pelos portugueses durante a luta armada, omitindo despudoradamente as práticas cometidas pelo PAIGC desde o assassínio, a destruição de povoações, o rapto, a colocação de minas nas estradas e as flagelações e emboscadas que, pela sua natureza, não escolhiam brancos ou negros. O PAIGC teve maiores facilidades de recrutamento em regiões de resistência anticolonial, caso dos Balantas, Oincas, Beafadas e Papéis. O investigador também pondera o papel ambivalente dos régulos, e no caso de imposição das autoridades portuguesas deste ou daquele régulo a população local limitou-se a tolerar a escolha dos portugueses, em muitos casos encontrou outras alternativas. Incluindo entre os chefes Fulas e Mandingas, predominantemente ao lado das autoridades portuguesas mantiveram-se compromissos com outras etnias que aceitaram viver nessas tabancas maioritárias de islamizados. A fraqueza do poder dos régulos trouxe imensas faturas que não ficaram esclarecidas depois da independência, inicialmente o PAIGC retirou poder aos régulos mas as populações locais logo reconfiguraram as suas hierarquias autónomas.

O legado pós-colonial aparece hoje bem estudado. Amílcar Cabral sonhara com um partido-Estado, a sua presença seria absoluta e contaria com uma ampla participação popular dada pelos comités de tabanca, em meio rural, e por comités de bairro, em áreas urbanas. Conquistada a independência, o PAIGC mostrou-se progressivamente menos influente, não possuía administração nem quadros políticos que merecessem a confiança absoluta das sociedades rurais. No fim dos anos 1970, a presença política nas sociedades rurais era uma sombra, ficara a memória de execuções públicas daqueles que tinham estado do lado do poder colonial, tudo se processara sem qualquer metodologia de reconciliação, a nova autoridade passou a ser temida sem ser respeitada. Joshua Forrest escalpeliza este sistema de participação e mostra como a identidade étnica se manteve preservada, apareceram novos régulos, reconfiguraram-se hierarquias, apareceram escolas islâmicas privadas, até a nova geração Balanta criou um movimento de combate aos valores sociais tradicionais, o Ki Yang-Yang, em Catió.

Tudo teve consequências entre um poder político autofágico, um partido-Estado que muito cedo abriu fissuras e se entregou a intrigas e corrupção, enfim, um governo fraco e inacessível às sociedades rurais que tiveram que encontrar novos caminhos para a economia agrícola enquanto a clique do partido tinha acesso a financiamentos para criar pontas, as comunidades rurais passaram a vender os seus produtos a comerciantes privados, não tinham confiança nas lojas do Estado, nem nos seus representantes, o comércio informal foi tomando conta de tudo até que nos anos 1980 se começou a passar da estatização para a privatização. Nasceram novos problemas para os quais o Estado não encontrava resposta: criara-se uma administração elefante, ingovernável, sem apetrechos e sem dinheiro para a pagar; sonhara-se com uma industrialização acelerada, tudo acabou em cacos; não se encontrou solução para o problema dos combatentes da liberdade da pátria, houve promessas de cooperativas, mas tudo não passou de promessas e estes combatentes tornaram-se aos poucos numa reserva de descontentamento; e as Forças Armadas foram ganhando relevo e desafetando-se do poder político, contrariando todo o modelo de regulação política instituído por Amílcar Cabral. Gera-se um estado de instabilidade interminável que vai conduzir a um devastador conflito político-militar que segundo Joshua Forrest ditará uma nova vitória para a sociedade rural civil. Será nestas comunidades que os rebeldes capitaneados por Ansumane Mané encontrarão o maior apoio, os velhos combatentes pôr-se-ão ao caminho para escorraçar as tropas estrangeiras. Em jeito de conclusão na análise do poder das populações rurais, o autor recorda que todo o século XX se pautou pela luta anticolonial, pela incapacidade do Estado em poder ter chegado a tais comunidades até que no final do século essas mesmas comunidades rurais repeliram tropas internacionais que se tinham prontificado a ajudar o ditador Nino Vieira. Temos pois um Estado frágil e uma formidável sociedade civil rural.

No capítulo das conclusões, Joshua Forrest faz uma notável apreciação e resumo das suas teses, apresenta-se em oposição aos trabalhos de Peter Karibe Mendy e René Pélissier quanto à natureza da luta étnica face ao poder colonial, ele considera sempre que a luta foi interétnica, sem prejuízo da identidade de cada etnia. A violência do Estado agravou a sua fragilidade, tanto na fase colonial como pós-colonial. E o que se passa nestas sociedades rurais está à vista de todos: refizeram-se regulados, melhorou a convivência interétnica, a ideia de chão marca a identidade de cada um dos cidadãos, as tradições não estão abaladas. O que se passa na Guiné-Bissau, observa o autor é igualmente percetível nas linhagens domésticas de todos os Estados frágeis da África subsariana.

Investigação altamente controversa, bem merecia que investigadores como Carlos Cardoso, Mamadu Jao, Tcherno Djaló, Leopoldo Amado, Julião Soares Sousa, do lado guineense, António Duarte Silva e Eduardo Costa Dias, do lado português, e outros investigadores internacionais, caso de Philip Havik, debatessem esta ousada argumentação onde se põe em confronto uma sociedade rural vibrante de costas voltadas para um Estado frágil.
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Notas do editor

Vd. postes anteriores de:

12 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19187: Notas de leitura (1120): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (1) (Mário Beja Santos)

19 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19207: Notas de leitura (1123): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (2) (Mário Beja Santos)

26 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19234: Notas de leitura (1125): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (3) (Mário Beja Santos)
e
3 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19253: Notas de leitura (1127): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (4) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 7 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19264: Notas de leitura (1128): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (63) (Mário Beja Santos)

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