Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 7 de junho de 2019
Guiné 61/74 - P19869: Notas de leitura (1184): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (9) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Fevereiro de 2019:
Queridos amigos,
Chegou a hora do bardo invocar a primeira perda do BCAV 490, o que nos remete para lembranças dolorosas e poderosos textos em que a literatura de guerra é fértil. A nossa memória esvoaça para aqueles acidentes estúpidos de viaturas, de afogamentos, saltamos para teatros de operações onde o apontador de dilagrama se enganou no cartuxo e só não morreu por acaso, jaz a nossos pés como um Cristo a descer da Cruz. Por acidente ou combate, é uma perda. E decidi-me remexer nessa obra-prima que é o "Nó Cego", de Carlos Vale Ferraz para bater à porta do horror.
Um abraço do
Mário
Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (9)
Beja Santos
“Quando veio do Continente
Quando veio do Continente
trouxe o destino marcado.
A 28 de Agosto
morreu num tronco estampado.
Quem lhe havia de dizer,
quando de lá abalou,
quando seus pais abraçou
que os não tornava a ver.
Neste sítio veio morrer,
numa morte tão de repente.
Deixou pena a muita gente
e à sua família querida.
Trazia a sina já lida,
quando veio do continente.
Conduzindo uma viatura,
no dia 28 a certa hora
saiu da estrada fora
onde teve a desventura.
Ali teve a morte escura
este pobre malfadado.
Em Bissau foi sepultado.
Tão longe da sua terra,
morreu sem lutar na guerra,
trouxe o destino marcado.
A morrer foi o primeiro
cá do nosso Batalhão,
a todos deixou paixão
este amigo e companheiro;
esse soldado solteiro
andava sempre bem disposto.
Sua mãe já não vê o rosto
do filho que tanto amou
porque numa árvore se estampou a 28 de Agosto.
Pois ele vinha a guiar
ao lado um superior.
Foi ele quem viu o condutor
com a morte labutar.
O Furriel não pôde salvar
o rapaz por ele estimado.
Já não mais se pôs ao lado
de António Silva Pereira,
porque na maldita 4.ª-feira
morreu num tronco estampado.”
********************
É por demais sabido que a mina ou emboscada, a troca de tiros numa operação, o descabelado acidente pesam mais na memória, quando é a primeira vez. E a literatura da guerra está pejada destes momentos infaustos, obrigatório é contá-los, fazem parte do narrador, é um dever não o obliterar, na narrativa devem constar todos os ingredientes, a dor própria e a dor alheia, o acabrunhamento que se instala nos circunstantes. E assim se chega a um romance maior, "Nó Cego", por Carlos Vale Ferraz, começa-se por um episódio relacionado com a primeira operação de uma Companhia de Comandos:
“O jovem comandante da Companhia, seco de carnes e de rosto de feições regulares, inspirava confiança, apesar de ser quase da mesma idade dos homens que comandava. Mantinha uma distância de reserva entre si e eles que alguns confundiam com arrogância. Deu as ordens com voz calma, como se estivesse ainda em exercício de preparação e só depois se aproximou do soldado ferido deitado sobre um pano de tenda.
O Pedro, que ele escolhera pessoalmente para número um do primeiro Grupo, era o primeiro ferido da sua Companhia. Um dos pés estava transformado numa massa de formas irregulares onde se misturava o coiro preto da bota com a terra castanha empapada em sangue, e de onde emergiam tendões brancos desligados dos ossos.
À vista deste espectáculo empalideceu. Não conseguiu evitar esse sinal de fraqueza. Sentou-se a observar os gestos do enfermeiro: primeiro, uma injecção de morfina, depois, apertar o garrote para estancar o sangue, de seguida, uma injecção de vitamina K para facilitar a coagulação e, por fim, os movimentos tensos de limpar o melhor possível a pasta avermelhada antes de a envolver num penso.
Depois de acabar o penso que envolvia o que restava do que fora o pé do soldado Pedro, o enfermeiro arrumou a bolsa dos primeiros socorros, enterrou os novelos de algodão ensanguentados, as gazes sujas e as ampolas vazias, para o inimigo não saber que um soldado fora ferido, e preparava-se para se sentar um pouco mais longe.
- Fica aí perto, ele está a recuperar – mandou o capitão ao enfermeiro.
Vindos de muito longe, chegaram ao soldado Pedro a voz e o rosto do capitão. Lentamente começou a ver as folhas brilharem ao sol, a ouvir um zumbido na cabeça. Tentou mexer os dedos das mãos, dobrou as pernas. Parecia estar inteiro. Ele era ribatejano e tinha sido forcado amador. Sentia-se como depois de uma pega de caras: dorido, mas completo, quando muito, com alguma coisa fora do lugar.
- Não me dói, meu capitão, só tenho sede.
- É assim mesmo, vamos mandar vir um helicóptero para a evacuação, vais ver que ficas bom – disse-lhe enquanto lhe dava água.
Só então o Pedro olhou para a extremidade da perna e viu a bola branca a tingir-se de vermelho, as ligaduras ensopadas em sangue. Mas sentia o pé lá em baixo, até podia mexer os dedos!”.
Esta Companhia de Comandos, destinada a ir ao assalto de santuários da Frelimo, viverá horas de horror, aqui se deixa alguns parágrafos dispersos de uma escrita universal sobre os nossos trabalhos africanos, uma lembrança intemporal para as dores que qualquer combatente tem pouca vontade de transmitir:
“Os homens moveram-se sem necessidade de ordens. Ligaram os cabos dos guinchos de reboque ao casco e à torre da autometralhadora para libertarem do interior do blindado o corpo meio esmagado do furriel do Esquadrão de Cavalaria a escorrer sangue e espuma da boca. Desceram-no, desarticulado, da velha lata para os braços do enorme soldado Bento, que pegou nele ao colo como a um menino.
Deitou-o docemente à sombra de um arbusto compondo-lhe os membros. A cara de criança em corpo de gigante do soldado dos Comandos enfrentou a do outro, com a face branca da morte, sem acreditar que já não estivesse vivo. O gigante Bento, que mal cabia na farda camuflada, voltou pelo mesmo caminho na sua passada de urso cansado, com a espingarda, que parecia um brinquedo, pendurada às costas, à espera de o mandarem fazer mais algum serviço.
- O apontador da metralhadora também está morto, esmagado pela torre que saiu dos encaixes. O condutor é que não sei, não se pode passar para o seu lugar – explicou um dos que tentavam enfiar-se dentro da Fox. – Pelo menos os pés devem estar desfeitos…
- Para já é preciso tirar este caixão com rodas daqui para podermos continuar.”
E despedimo-nos com outra água-forte deste notabilíssimo romance, o fim do desventurado Casal Ventoso:
“No rescaldo, ainda com o coração a saltar debaixo da pele os homens correram para ele, para amparar o Casal Ventoso. O capitão, o Cardoso, o Lencastre, o Lino, o Torrão, o Transmissões, chegaram perto do soldado criado no maior barro de lata de Lisboa.
O Lencastre foi o primeiro a levar a mão ao nariz e a engolir um vómito seco, mas os outros também não conseguiram reprimir um gesto de repulsa quando encararam a barriga aberta do Casal Ventoso e viram as volutas azuladas dos intestinos a engrossarem viscosas entre os dedos ensanguentados. O Casal Ventoso espalhava diante deles o que todos temos trazido escondido no nosso interior, e sentiram as pernas fraquejar à vista do repugnante espectáculo das vísceras que nos fazem idênticos aos animais de talho. Agoniaram-se com o cheiro das fezes soltas e escorrerem pelo camuflado roto”.
(continua)
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Notas do editor
Poste anterior de 31 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19844: Notas de leitura (1182): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (8) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 3 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19853: Notas de leitura (1183): "Entre o Paraíso e o Inferno (De Fá a Bissá)", por Abel de Jesus Carreira Rei; edição de autor, 2002 (Mário Beja Santos)
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11 comentários:
Desculpa lá António Graça de Abreu mas excedeste-te. Ofender no blogue, não. Lê quem quer, quem não quer "avança".
Peço-te que te contenhas.
Abraço
Carlos Vinhal
Co-editor
A guerra vem.
A guerra vai.
A terra ...fica.
J.Belo
”Matos Gomes foi um bom combatente nos Comandos em Angola,Moçambique e Guine,entre 1967 e1974”
(Manuel Bernardes)
Foi condecorado com duas medalhas de Cruz de Guerra e com a medalha daTorre e Espada por feitos em combate.
O resto?
Mesmo quando escrito com floreada tinta da China continua a ser o...resto.
J.Belo
As descrições dos ferimentos e esventramentos que lemos aqui, vem-me à lembrança um antigo colega meu na vida civil, que tinha como segunda actividade ser bombeiro voluntário.
Era sempre o primeiro a estar pronto para partir ao chamamento para acudir a acidentes ou alguma desgraça em que houvesse sangue ou doenças.
Só que após o regresso dele ao trabalho, todos tinhamos que assistir à mais elaborada descrição do que acontecia aos ocupantes de um carro que capotava 2 vezes e caia no precipício, ou o que acontecia a um camião que teve o azar de ir contra a cabeça de um motar.
As descrições começavam com a curiosidade geral dos colegas e acabavam com um de nós arrepiado a mandar calar o "orador"
Era sádico aquele maroto.
Rosinha
Eu tive um colega de trabalho, que não era bombeiro, também gostava de contar desgraças arrepiantes, com a particularidade de 'teatrar' a explicação com quedas, mudanças de voz com ruídos de motores e sirenes, empurrões aos presentes e acabava sempre com um 'palavra que é verdade'.
Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz
(evidentemente que a guerra não é brincadeira)
Há muito de patológico nestas pormenorizadas descrições de mortos, feridos e agonizantes, feitas por Carlos Vale Ferraz e outros autores nos seus livros. Como é possível que alguém que viu um ou mais camaradas seus morrerem em condições atrozes, sem que lhes pudesse valer, se possa comprazer em fazer tais descrições?!!!
A näo serem referidas com a maior veracidade ,e detalhe, as situacöes de combate e os seus resultados,como poderäo as novas geracöes (ou outros que as näo enfrentaram) compreender minimamente?
Creio humildemente ser uma pergunta simples.
Um abraco.
J.Belo
PÓIS!!
Não é belo (Belo?), mas é real, é o que por lá aconteceu (a quem aconteceu...)
Se, p. ex., por razões de segurança (pessoal/geral) tiveram que ser deixados braços e pernas em cima de ramos mais altos das árvores depois do rebentamento de fornilhos, não vai o escrevente dizer que tiveram que ser deixadas "flores humanas", ou "pétalas de flores humanas" no alto das árvores.
Quem não goste de ler a realidade, volte aos livros dos tempos do romantismo, quando o escrevedor falava do amador que, ajoelhado, oferecia uma bela (!) flor à amada e lhe beijava apaixonadamente a mão.
Desculpem qualquer coisinha.
Alberto Branquinho
Alberto Branquinho
Imaginemos o livro ter sido escrito por Erich Maria Remarque.
'Que grande poder descritivo do que realmente acontece na guerra', comentaríamos nós.
Mas, neste caso, mesmo tratando-se de um romance, como tal ficção, por o Matos Gomes ter tido experiência de guerra não pode abordar este tema?
Nunca é demais escrever sobre os horrores da guerra.
Valdemar Queiroz
Estamos em época de encontros de antigos combatentes. Todas as semanas se realizam não sei quantos encontros. A malta encontra-se para recordar os (poucos) bons momentos vividos, no meio dos (muitos) maus momentos impostos pela guerra. Quando, durante um tal encontro, alguém se lembra de invocar o nome de um camarada morto ou estropiado (mas ausente) e outro perguntar quem era, pois não se lembra dele, ninguém se põe a descrever pormenorizadamente as condições em que morreu ou ficou gravemente ferido. Apenas respondem que lhe aconteceu "isto e mais aquilo" e logo passam a dizer que ele era um gajo porreiro, contam até algum episódio sobre alguma asneira ou pequena loucura que ele tivesse cometido, fruto da inconsciência dos vinte anos, e rematam afirmando que ele tinha sido um amigalhaço dos bons. Todos concordam, dizendo que «são sempre os melhores que vão à frente», e a conversa muda totalmente de assunto.
A morte ou o ferimento grave de um nosso camarada diante dos nossos olhos aterrados, é um assunto demasiado doloroso para se recordar detalhadamente. Os detalhes ficaram gravados a ferro e fogo na nossa memória até que a morte nos leve também, mas temos pudor em falar deles, quanto mais não seja por respeito para com a vítima. Não nos sentimos confortáveis em remexer numa tal ferida, até ficar uma chaga exposta à curiosidade mórbida de terceiros, num livro ou seja em que suporte for. O livro do Carlos Vale Ferraz é um romance? Pois é, mas ninguém duvida de que ele foi escrito com base em factos reais, vividos pelo próprio autor.
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