segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20263: Notas de leitura (1228): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,

A narrativa de Fernando Fradinho Lopes não se pode confundir com as reportagens que proliferaram no teatro de guerra angolano, logo a partir de 1961. O discurso é inicialmente balizado por um rigor formal, sucedem-se as etapas convencionadas para este tipo de diário, memorial, descrevem-se os antecedentes familiares, a recruta e a especialidade, tudo numa atmosfera de amenidade.
E é nessa mesma amenidade que se parte para Quipedro, ali vive-se uma atmosfera de guerra com florestas cerradas. E dá-se a reviravolta, a CCAÇ 1638 parte para o Leste, ali pratica-se a carnificina, mutila-se e executa-se. São descrições terríficas, como se o horror fosse aceite ao nível da banalidade. É nesta dimensão que o relato de Fradinho Lopes é uma corrente de alta tensão, o ódio anda por ali à solta, entre pretos e brancos.

Um abraço do
Mário


Uma das mais explosivas obras da literatura da guerra colonial:
“O Alferes Eduardo”, por Fernando Fradinho Lopes (2)

Beja Santos

O título escolhido para esta recensão não enferma nada de bombástico. “O Alferes Eduardo”, de Fernando Fradinho Lopes, Círculo de Leitores, 2000, é uma obra arrasadora, no início, a máquina literária parece conduzir-nos para descrições semelhantes a muitas outras, desde a preparação militar e do contexto familiar, até do maravilhamento perante a fauna e a flora, as tensões com a hierarquia, e o muito mais que serve de pano de fundo a uma grande parte da literatura da guerra colonial, por essência.

O autor, que diz suportar-se por notas de diário, parte de Luanda com o seu batalhão, o BCAÇ 1901, a sua companhia fica sediada em Quipedro, onde ele não se sente bem, há patrulhamentos, acidentes, dificílimas colunas de reabastecimento. É destacado para Quixico e regressa a Quipedro. Estamos agora em finais de abril de 1967, o seu pelotão foi destacado para o Lué, leva por missão garantir a integridade da ponte sobre o rio com o mesmo nome e dar proteção aos trabalhadores da fazenda. Constata que os rebeldes se passeiam com grande à-vontade na fazenda.

Então escreve:

“Viviam no Lué centenas de negros trazidos, enganados, do distante Centro de Angola. Haviam-lhes dito que trabalhariam numa zona pacífica. Afinal estavam no meio da guerra, numa das zonas de intervenção militar mais perigosas.

"Era um trabalho escravo, a troco de alguns escudos por dia. Habitavam em miseráveis cubatas e alimentavam-se de fuba e peixe seco, comprados na cantina do patrão. Aí deixavam grande parte do que ganhavam. E regressavam às suas terras tão miseráveis como eram dantes.

"Dizia-se que os fazendeiros do Norte recrutavam os trabalhadores no Centro de Angola através das autoridades administrativas, a troco de dinheiro. Estas, por sua vez, encomendavam os ‘escravos’ aos sobas que estavam sob a sua jurisdição, recebendo os últimos uma insignificante quantia por cabeça”.

Do Lué o seu pelotão regressa a Quipedro e o Alferes Eduardo vai passar férias a Luanda, findas estas embarca para Quipedro, as coisas começam mal pois o comandante de companhia reúne os seus subalternos e lê a nota de repreensão agravada que fora aplicada a Eduardo, pressente-se que há um contexto de rivalidades e de mexerico entre os diferentes alferes. E parte com uma coluna que acompanha a máquina de Engenharia, perto de Nambuangongo rebenta uma emboscada, os feridos graves serão evacuados por avião.

Eduardo é informado que a CCAÇ 1638 irá em breve ser transferida, no início de agosto estão em Luanda de onde vão partir para o Leste, Munhango.

Escreve nas suas notas:  

“Estava perante um meio paisagístico e humano muito diferente daquele que encontrara no Norte de Angola. As florestas tinham uma arborização pouco densa e o terreno era constituído de areia fina. Existiam longas planícies, com chanas ao longo das linhas de água. Munhango, uma pequena povoação sem asfalto nas suas poucas ruas, não tinha semelhança alguma com a região desabitada de Quipedro. Parte da população da vila trabalhava nos Caminhos de Ferro, que eram o motor económico de Munhango”.

Eduardo contraiu malária, doente vai fazer uma descida aos infernos. Numa serração próxima aparece uma senhora retalhada em postas e a casa saqueada. Um negro de Munhango foi apontado como suspeito. Pouco depois será abatido em “patrulhamento”. Começa a melhorar, tem tempo para refletir sobre as contradições da presença portuguesa e o quadro de injustiça que presenceia diariamente.

Outra serração será atacada, mais gente assassinada. “Os terroristas, ao serviço da UNITA, deixaram na serração dois papéis escritos, com o carimbo da organização. Procuravam justificar o massacre invocando o nome de Deus. Alguém com formação religiosa, provavelmente protestante, dirigira a matança”.

Chegam os feridos, todos negros, empregados dos brancos assassinados, feridas horríveis. Sai de Munhango um pelotão com intenção punitiva. Com a saúde recomposta, Eduardo partiu a 28 de agosto para a região de Cangonga.

Os ódios andam à solta:

“Descobri na floresta, a ocidente de Cangonga, uma sanzala ainda habitada. Ao aproximar-se de surpresa, apercebeu-se de que alguns indivíduos se haviam posto em fuga. Teria de investigar aqueles movimentos estranhos.

"Cercou o quimbo e andou de cubata em cubata a observar e a interrogar as pessoas delicadamente. As contradições que ele viu convenceram-no de que a UNITA tinha de facto aquela sanzala sob o seu controlo.

"Com alguns habitantes da sanzala a servirem-lhe de guias involuntários, fez um patrulhamento pela mata, nas proximidades do quimbo. Não encontrou ninguém.

"Ao deixar o local, levou consigo os homens adultos da sanzala. Depois de serem cuidadosamente interrogados no Munhango, regressariam às suas casas onde poderiam continuar a viver em paz, garantiu-lhes o alferes.

"Pelo caminho, alguns militares propuseram insistentemente a Eduardo o fuzilamento dos negros detidos. Mas ele, enojado com aquela sede de sangue, repeliu a proposta”.

Chegados a Munhango, recebem a notícia de que houvera um ataque a uma viatura blindada que seguia à frente do comboio. Eduardo constata que a atividade da UNITA alastrava desmesuradamente, os quatro grupos de combate não tinham descanso. Estamos já em setembro, a CCAÇ 1638 parte para uma operação, vão patrulhar na zona onde a UNITA executava habitualmente os ataques ao caminho-de-ferro, entre Cangonga e Cangumbe.

“Impressionara-o os cento e catorze abrigos que encontrara a dois ou três metros da picada. Provavelmente foram escavados por indivíduos mal treinados e mal armados, talvez vacinados contra as balas dos brancos e convencidos de que morreriam num sítio e nasceriam noutro lugar a seguir”.

A tensão avoluma-se, muita gente foge de Munhango, há execuções, e há também momentos de heroísmo, como ele escreve:

“A serração de Nhonga, situada junto da picada para o Alto Cuíto, a cerca de oitenta quilómetros de Munhango, foi atacada por um grupo de dezenas de homens da UNITA. Era defendida por três rapazes do pelotão de Eduardo: o 1.º Cabo Costa e os Soldados Branco e Rodrigues. Durante toda a noite, resistiram com unhas e dentes. Os atacantes desistiram quando se aproximou o dia, levando consigo as baixas sofridas. Os militares, bem protegidos pelos sacos de areia previamente colocados em redor da serração, escaparam ilesos. Parte para o Alto Cuíto, onde muitas centenas de infelizes, cobertos parcialmente de farrapos, viviam na mais absoluta miséria”.

(continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 18 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20254: Notas de leitura (1227): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (28) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Fernando Ribeiro disse...

Chanas - Vastas extensões de terrenos alagadiços, inundadas de água durante a estação das chuvas. Também chamadas anharas.

Sanzala - Aldeia. Nome geralmente empregado no norte de Angola.

Quimbo - Aldeia, o mesmo que sanzala. Nome geralmente empregado no resto do território angolano.