quarta-feira, 23 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22308: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XI: Op Balanço Final: Assalto a Nhacobá ou o dia mais longo



Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali >  Nhacobá > Operação Balanço Final > Assalto e ocupação da base do PAIGC pela CCav 8351 (Os Tigres do Cumbijã) 


Foto nº 2 >  Guiné > Região de Tombali > Nhacobá > Nhacobá > Operação Balanço Final > Assalto e ocupação da base do PAIGC. Furriéis da CCav 8351,  Azambuja Martins e Costa



 Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Nhacobá > Operação Balanço Final > Assalto e ocupação da base do PAIGC pela CCav 8351 (Os Tigres de Cumbijã) > No lado direito alguns dos recipientes com arroz. Foto de António Murta (vd. poste P14844).

Foto: A. Murta / Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, com a devida vénia



Foto nº 4 > Guiné > Região de Tombali > Nhacobá > Operação Balanço Final > Assalto e ocupação da base do PAIG pela CCav 8351 (Os Tigres do Cumbijâ) > Abrigos subterrâneos do PAIGC > Toto de A. Murta, com a devida vénia


Fot0 nº 5 > Guiné > Região de Tombali > Nhacobá > Operação “Balanço Final” > Assalto e ocupação da base do PAIGC pela CCav 8351 (Os Tigres do Cumbijã)> Sarar as feridas depois do assalto a Nhacobá

Fotos (e legendas): © Joaquim Costa  (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Joaquim Costa, hoje e ontem. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XI (*)

Operação Balanço Final: Assalto a Nhacobá ou o  dia mais longo


Com o aproximar da estrada a Nhacobá, estava chegada a hora de fazer a ocupação desta base do PAIGC (“retribuindo” as duas visitas ao Cumbijã). Embora sem grandes informações, era de prever que Nhacobá fosse um local de grande importância estratégica e logística para o PAIGC já que ficava no corredor de Guilege, também conhecido por “corredor da morte” (corredor de circulação de homens e material para o interior da Guiné)(#).




Fito nº 6 > Guiné > Região de Tombali > Cantanhez > Guileje > Mapa de Guileje (1956) > Escala 1/50 mil > Alguns dos topónimos míticos por onde passava o "corredor de Guileje" ou o "corredor da morte", triangulando entre Guileje, Gandembel / Balana e Nhacobá. Ver também posição relativa de Cumbijã e Colibuía, a sudoeste de Aldeia Formosa.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)



Embora nada nos fosse transmitido (como sempre - ao que parece nem o próprio capitão foi informado), fomos surpreendidos com a chegada ao destacamento de um grupo de comandos africanos, armados até aos dentes com todo o tipo de armas capturadas ao IN (muito mais eficazes e fiáveis que as nossas), que segundo rumores teriam como missão fazer o reconhecimento a Nhacobá antes do assalto final. 

Nada nos foi dito mas constava-se que nada encontraram de relevante. Todo aquele aparato (não disfarçando algum exibicionismo) nos pareceu estranho,  para não dizer caricato. Contudo, depois de uma reunião dos “senhores da guerra”  em Aldeia Formosa, foi lançada a operação de assalto a Nhacobá, de seu nome de código: “Balanço Final” (17-23 de maio de 1973).

Foram mobilizados quase todos os recursos humanos disponíveis na região para o assalto final a Nhacobá, atirando por terra a ideia de que os comandos africanos não tinham encontrado nada de relevante.

Foram mobilizadas para a operação: 

(i) três companhias;

 (ii) uma equipa com duas chaimites (carros de combate anfíbios);

 (iii) dois grupos de combate de uma outra companhia de reserva no Cumbijã~;

(iv) e a artilharia de Cumbijã e Mampatã em alerta máxima. (##)

A minha companhia (CCav 8351 – Os Tigres do Cumbijã) estava incumbida de fazer o assalto (golpe de mão) com a proteção lateral de outras duas.


“De manhã cedinho, levanto do ninho e vou para … Nhacobá...”


Com todo aquele aparato de movimento de tropas em grande azáfama com alguns dos intervenientes, há última hora, a serem acometidos de doença súbita e desconhecida e com os “senhores da guerra” (sempre na retaguarda!) mandando os seus últimos “bitaites” sobre a estratégia a seguir (e a que ninguém ligava), lá avançamos nós, conduzidos por um guia, da nossa confiança e que conhecia muito bem o local. 

Como era habitual, nas operações de alto risco, quase todos os soldados beijavam, à saída, o seu amuleto da sorte: a foto da namorada ou dos pais, um santo devoto, uma folha da Penthouse (a famosa revista pornográfica norte-americana),  do Furriel Martins, e o Furriel Machado o seu inseparável mapa, que guardava num dos bolsos do camuflado, mais perto do coração.




Fot0 nº 7 > Guiné > Região de Tombali > Nhacobá > Operação Balanço Final > Assalto e ocupação da base do PAIGC pela CCav 8351 (Os Tigres do Cumbijã)> O “amuleto” que sempre acompanhava o Furriel Machado em operações no mato, o “Mapa de Operações Pontos de Artilharia”... 

Ao seu lado estávamos mais seguros. Nunca nos sentíamos perdidos na mata e a ajuda da artilharia em situação de emergência era mais precisa e eficaz. Este homem nunca deixava nada ao acaso. Tudo era feito de forma profissional, tal como a sua sofisticada hortinha que plantou em pleno teatro de guerra!



Conforme íamos avançando na direção do objetivo,  a adrenalina ia subindo na mesma proporção já que minguém melhor do que nós sabia o que nos esperava. Dada a nossa experiência feita de vivermos, diariamente, paredes meias com o IN, conhecendo melhor do que ninguém as suas “taras e manias”,   fazíamos tábua rasa das opiniões dos teóricos do “pionés no mapa” (cujo único risco era picarem-se no mesmo) para bem da nossa segurança e ao mesmo tempo para bem da eficácia na concretização do objetivo traçado.

O nosso guia mantinha um grande sangue frio e uma calma desarmante,   reparando nos mais pequenos pormenores que a todos nós escapava: um pequeno ramo de árvore cortado recentemente; pegadas no chão recentes; barulhos de população e de animais ao longe, que nenhum de nós ouvia, etc.

Era fácil medir a tensão do grupo quer através das feições do guia quer do “arrebitar” do bigode do camarada Machado!!!

Quatro grupos de combate em marcha na direção do objetivo em silêncio quase ensurdecedor, ouvindo-se apenas a nossa respiração, cada vez mais acelerada. Caminhavámos como em campo minado, pé ante pé, com concentração absoluta e sempre atentos às feições do guia (...e ao bigode do Machado!).

Pelo caminho já percorrido sabíamos que devíamos estar muito perto do objetivo, o que foi confirmado pelo guia. Uns metros mais à frente já todos nós ouvíamos sons de pessoas em conversas despreocupadas.

Mais uns metros e avistamos uma caçadeira (Simonov) encostada a uma árvore e, logo a seguir, um grupo de homens e alguns mulheres e crianças sentados em amena cavaqueira. Avançamos e surpreendemos todo o grupo, creio que um homem foge a gritar Comando, comando!... Não demos um único tiro, acalmamos as mulheres e as crianças, e montamos segurança.

Estávamos nós a tentar obter de alguns elementos do grupo, obviamente assustados, informações relevantes,  tendo em vista o prosseguimento da operação em segurança, quando irrompe um grande “fogachame” com armas ligeiras e RPG. Como estávamos já bem posicionados, ripostámos,   protegendo aos mesmo tempo os elemento da população.

Passados uns bons minutos, que pareceram uma eternidade, a situação acalmou, as metralhadoras calaram-se, permitindo assim o socorro aos feridos, alguns com alguma gravidade. 

Pela surpresa,  pensámos que o grupo de guerrilheiros de defesa da base do PAIGC, depois da forte reação, se tinham já posto em fuga. Contudo, passados uns 15 minutos,  fomos nós surpreendidos por nova investida, agora mais intensa e organizada,   sobre as nossas posições causando mais uns feridos, alguns com gravidade.

O grupo de guerrilheiros (supomos, em grande número), depois da segunda investida fugiu, uns em direção ao local onde deveriam estar as companhias que faziam a nossa proteção lateral e outros para a grande bolanha,  perto de um rio. Conseguimos ainda avistar vários elementos do grupo, desordenado e desorientado, em fuga através da grande bolanha.

Uma das situações que mais me perturbam, relembrando hoje o assalto a Nhacobá, é o facto de,  ao ver lá ao longe pequenos grupos de guerrilheiros em fuga,   apontar-lhes a minha arma. Não disparei, e alguém me dissr: "A G3 não alcança". 

Este episódio mostra como a guerra nos leva a tomar atitudes completamente irracionais. Contudo, para meu sossego, acredito (quero mesmo acreditar) que nunca teria coragem para disparar naquelas condições.

Terminado o tiroteio, nada aconteceu aos elementos da população e nós tivemos vários feridos, alguns com gravidade.

Pedimos que um dos grupos de combate estacionado em Cumbijã, viesse em apoio levar os elementos da população e os feridos para o destacamento, sendo os mais graves levados, para Aldeia Formosa onde um avião Nordatlas aguardava para eventual evacuação para o hospital de Bissau.

Depois de todas estas diligências e com todas as cautelas lá fomos explorar a zona. 

Acompanhado pelo amigo Martins, juntamente com outros elementos da companhia, avançamos, com cuidados redobrados, para o local de onde fomos atacados. Passada a zona onde encontramos os elementos da população,  ficamos boquiabertos com o que encontramos: muitas moranças, com indícios claros de habitadas até momentos antes com os seus animais a vaguearem ainda em sobressalto; vários silos de barro,  cheios de arroz (estavam ali toneladas de arroz ainda com casca); abrigos subterrâneos; muitos maços de tabaco e fósforos cubanos, bem como cadernos e livros escolares e muitos folhetos de propaganda. 

“Roncos” que muitos de nós guardaram como recordação (eu guardei um maço de tabaco e uma caixa de fósforos que deitei ao lixo, juntamente toda a roupa e tudo que me fizesse lembrar a Guiné num quartel em Lisboa, no regresso a casa).

Este era de facto um posto de “mala-posta", muito importante neste corredor de Guileje, onde os guerrilheiros descansavam e se alimentavam em trânsito para operações militares na região sul. Todo o arroz aqui apreendido dava para alimentar um exército durante vários dias.

O elevado número de moranças, os abrigos subterrâneos, bem camufladas na vegetação, a quantidade de arroz (as suas rações de combate), bem como a grande quantidade de tabaco e material de propaganda, era a confirmação de estarmos perante uma importante base do PAIGC no interior da Guiné. Esta ação foi em rude golpe na logística do PAIGC no abastecimento de parte da zona sul da região.

Estávamos nós já a “debicar” parte da ração de combate,  quando começamos a ouvir rajadas de armas ligeiras e mais tarde sons de HK - encontros de “3.º grau” dos guerrilheiros em fuga com as companhias de proteção lateral e do grupo de chaimites, sofrendo o IN, aqui, danos consideráveis.

A configuração da tabanca, a quantidade de abrigos subterrâneos (bem protegidos contra ataques aéreos e bem camuflados na mata), o volume e tempo de fogo configuram um destacamento do IN muito bem protegido, que só caiu sem grandes baixas do nosso lado pela surpresa e, ao mesmo tempo, presumo, julgarem estarem perante uma operação de grande envergadura com o apoio da aviação e tropa especial (por isso a sua fuga precipitada). 

Era suposto, da parte do IN, que a tropa sediada na zona não reunia as condições para tal assalto, daí os gritos do homem que fugiu a dizer Comandos, comandos!

Este foi um dia (… o mais longo) que me fez lembrar a guerra do Vietname, com todos os ingredientes presentes, nomeadamente: entrar no reduto do IN, desalojá-lo e passar junto dos seus mortos em combate, inexplicavelmente, com naturalidade e indiferença. Visão que hoje muito me perturba e desassossega!

(
Continua)
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Notas do autor:

(#) Este corredor com início na fronteira da Guiné Conacri, atravessando a zona de Guileje (Gandembel) e Nhacobá (Foto nº 6), tinha uma importância vital para o PAIGC, já que por aqui introduzia 70 a 80 % dos abastecimentos de armas, homens, munições e outros, para todo o território da Guiné. Neste corredor muitas vidas se perderam dum lado e do outro do conflito.

Assim se explica a luta sem tréguas dada pelo PAIGC na defesa deste importante corredor e particularmente da sua base em Nhacobá,

Situação semelhante teve lugar em Gandembel de quando a sua ocupação pelas nossas tropas no tempo do antigo governador (Arnaldo Schulz),  acabando por ser abandonado no tempo de Spínola, dado as elevadas perdas humanas. Daí a designação de “corredor da morte”.

(##) NT:  CCaç 3399, 3a/BCaç 4513/72, CCaç 18, CArt 6250/72, CCav 8351/72, 2° Pel Art (10,5 cm), 14° PelArt (14 cm), e 1 Pel/ERec 3431.
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 7 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22261: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte X: a segunda "visita dos vizinhos" (com novo ataque ao arame)

14 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Joaquim, obrigado. A tua narrativa é portentosa. Dá gosto ler-te. Revi-me, uns anos antes em operações no Sector L1 (Bambadinca). E fazes justiça aos nossos guias (em geral, fulas), que deviam ganhar metade de todos sos nossos louvores e condecorações. Sem eles, seríamos um "exército de cegos", guiados pela bússola, a carta e o famoso PCV (posto de comando volante, em DO 27)...

Um dia que possamos fazer uma antologia dos nossos milhares de textos, o teu testemunho, na 1ª pessoa, sobre a Op Balanço Final (17-23 maio 1973) tem que lá figurar, com toda a justiça...

Deves conhecer os livros da CECA (Comissão de Estudo das Campanhas de África)... Vê o que os "senhores coronéis" escreveram sobre a Op Balanço Final: meia dúzia de linhas secas, telegráficas... Onde está o teu/nosso "sangue, suor e lágrimas"?...

Aqui fica um excerto,

Abraço, fica bem. Luís
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CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015), pág. 304:


(...) Operação "Balanço Final" - 17 a 23Mai

Com a finalidade de ocupar Nhacobá, S2, em que intervieram forças das CCaç 3399, 3a/BCaç 4513/72, CCaç 18, CArt 6250/72, CCav 8351/72, 2° Pel Art (10,5 cm), 14° PelArt (14 cm), e 1 Pel/ERec 3431, quando se deslocavam no itinerário Cumbijã-Nhacobá, tiveram 2 contactos com o inimigo de que resultaram 7 mortos para este e 1 morto, 5 feridos graves e 9 ligeiros para as NT. Foram apreendidas ao inimigo 1 esautom "Simonov", 3 eautom "Kalashnikov", 1 esp "Mauser", l lgfog "RPG-7" e 1 gran de lgfog "RPG-7", além de material diverso.

Três dias depois pelas 09H50 as nossas forças foram emboscadas por um grupo ln na região próxima de Guileje. As NT sofreram 1 morto, 1 ferido grave e 2 ligeiros. O inimigo sofreu baixas prováveis. (...)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Joaquim, não sei muito bem a quem atribuir os "créditos fotográficos", com exceção das fotos do António Murta. As outras são todas tuas ? Do Vasco da Gama ? De outras camaradas ?... Para evitar suscetibilidades, é preferível fazer a atribuição caso a caso...

Temos que defender a nossa documentação fotográfica, dando o seu a seu dono. Tem havido, por outro lado, utilizações abusivas das nossas fotos não sõ na Net como na comunicação social...

S9mos a favor do "open acess", portanto da partilha da informação e conhecimento, mas com regras e "fair play".

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O trabalho da CECA . Comissão de Estudo das Campanhas de África é globalmente meritório. Foi um trabalho "ciclópico", de formiguinha, de recolha e síntese de centenas de quilómetros de documentos...

Mas não pode substituir, muito menos ignorar ou desprezo, o "vivido" da guerra, sob a forma dos depoimentos, testemunhos e demais versões dos combatentes... E que estão aqui, noutros blogue, noutras páginas da Net... Bem como na literatura já pulicada (biohgrafia, ensaio, romance, poesia, etc.) e na "literatura cinzenta"... Muitos de nós nunca iremos ter oportundiade de publicar, som chancela editorial, os nossos "escritos" sobre a guerra da Guiné, de Angola, de Moçambique, etc. E muitas "memórias" vão morrer connosco...

Do lado do PAIGC, a situação é ainda muito pior...Vão ficar apenas as "lendas", daqui a 50/100 anos... Ou nem isso. Nhacobá ? Onde era isso ?... Alguém, se vai importar, em Portugal ou na Guiné-Bissau ? Os netos e os bisnetos do Spínola ou do Amílcar Cabral vão lá querer sabido de Nhacobá e do "corredor da morte"...



Tabanca Grande Luís Graça disse...

O Spínola não teve filhos ?!...Logo não poderá ter netos nem bisnetos... Mas é em sentido figurado, que eu falo... Amílcar Cabral e Spínola tinham uma "certa ideia" para a Guiné... E nem tenho dúvidas que os dois "amaram aquela terra", cada um à sua maneira... O Amílcar Cabral tinha uma vantagem: nasceu lá...O que não quer dizer tudo...

Jose Luis Santos disse...

Uma narrativa que me transporta para aquele dia, do qual me lembro.
Fazia parte da CCS do Bcaç 4513 e fui destacado para o Cumbijã durante a operação para auxiliar nas comunicações Cripto.
O som longinquo das armas e rebentamentos era audivel no aquartelamento, era arrepiante e angustia de saber como estavam os nossos camaradas dava cabo dos nervos.

Grande abraço para todos.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A dupla Miguel Araújo / Mário Zambujo não conheceram Nhacobá nem o "corredor da morte", nem Guileje, nem Gadamael, nem Guidaje, nem a Ponta do Inglês, nem o Fiofioli, nem Madina / Belel e outros topónimos excêntricos do nosso serôdio império colonial... E ainda bem: que Deus, Alá, Jeová e todos os bons irãs os protejam... Porque se não, a letra (e a música) do Pico do 7 era outra:

O pica do 7 (letra e música: Miguel Araújo | criação: Mário Zambujo)

De manhã cedinho eu salto do ninho
E vou pra paragem
De bandolete à espera do 7 mas não pela viagem
Eu bem que não queria
Mas um certo dia eu vi-o passar
E o meu peito céptico, por um pica de eléctrico
Voltou a sonhar

A cada repique, que soa do clique
Daquele alicate
Num modo frenético, o peito céptico toca a rebate
Se o trem descarrila o povo refila
E eu fico num sino
Pois um mero trajeto no meu caso concreto
É já o destino

Refrão

Ninguém acredita no estado em que fica
O meu coração
Quando o 7 me apanha
Até acho que a senha me salta da mão
Pois na carreira desta vida vã
Mais nada me dá a pica que o pica do sete me dá

Que triste fadário e que itinerário tão infeliz
Cruzar meu horário
Com o dum funcionário de um trem da carris
Se eu lhe perguntasse
Se tem livre passe pró peito de alguém
Vá-se lá saber
Talvez eu lhe oblitere o peito também

Refrão (...)

Fonte:

https://www.letras.mus.br/antonio-zambujo/pica-do-7/ (com a devida vénia...)

antonio graca de abreu disse...

Testemunho impecável, verdadeiro, factual, honesto.
Não nos venham mais contar estórias da carochinha pendurada na tralha esquerdista, tipo Fernando Rosas, Miguel Cardina,o coimbrão, passarão do Mondego, de nome Boaventura Sousa Santos, às vezes tambvém Mário Beja Santos. Não nos venham mais falar, na fase final da guerra, da superioridade militar do PAIGC, das Nossas Tropas que já não saíam dos aquartelamentos, da aviação que já não voava, etc.

Abraço,

António Graça de Abreu

Valdemar Silva disse...

Costa, ao ler este teu testemunho da tomada de assalto duma base/tabanca do IN, até parece que estávamos lá na operação.
Esta tua descrição e outra do Luís Lomba em Cufar são testemunhos directos e a cores da guerra da Guiné. Digo a cores por até nos parecer estar a ver toda a envolvência camuflados/terreno.
Embora me faça uma certa confusão haver um acampamento/tabanca do IN com aquelas casas, mesmo nas nossas barbas, e principalmente deixarem-se surpreender pelo desenrolar da operação das NT sendo quase apanhados à mão.
Provavelmente por aquela zona ter sido (já chegou de corredor da morte) abandonada estrategicamente pela nossa presença no terreno, o IN estar mais "à balda" e, talvez, agora mais focado em atingir a nossa aviação com misseis.
Analisando a evolução das NT no terreno:
Em 1971
29210 militares
5808 da tropa local
Em 1972
24036 militares
5921 da tropa local
Em 1973
32035 militares
6425 da tropa local
Quer dizer que a guerra precisou de mais gente mesmo tendo sido adotada a estratégica de abandono de extensas zonas do território.
E seria mais uns mesinhos para "aquilo acabar" e nunca aconteceria nada parecido como a entrada das tropas vietname do norte em Saigão.
(aquilo é que foram ....previsões só depois do jogo acabar)

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Manuel Luís Lomba disse...

Parabéns, Joaquim Costa. A tua narrativa na primeira pessoa do "Assalto a "Nacobá" é um monumento histórico da Guerra da Guiné - será a melhor que jamais li no nosso blogue.
Abraço
Manuel Luís Lomba

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Joaquim, são deliciosos alguns dos teus apontamentos que no "teu livro", a publciar em papel (e eu já me ofereci para escrever o prefácio ou o pósfácio...), acho que podes e deves desenvolver... Cito por exemplo este excerto:

(...) "Como era habitual, nas operações de alto risco, quase todos os soldados beijavam, à saída, o seu amuleto da sorte: a foto da namorada ou dos pais, um santo devoto, uma folha da Penthouse (, a famosa revista pornográfica norte-americana), do Furriel Martins, e o Furriel Machado o seu inseparável mapa, que guardava num dos bolsos do camuflado, mais perto do coração. (...)

Talvez por pudor, ou autocensura, temos falado ou muito pouco dos nossos "amuletos", das nossas práticas e crenças para lidar com o medo em teatro de guerra... São ubiversais: os guerrilheiros do PAIGC (como como os meus soldados, da CCAÇ 12) tinham o corpo coberto de "amuletos", "mezinhos" (em crioulo da Guiné-Bissau, medicamento, amuleto; em Cabo Verde, cálice de grogue)...

Mas ainda bem que nos vieste lembrar a prática do teu tempo (e que era já um sinal dos tempos): havia combatentes nossos que revestiam o peito com "posters" da famosa "Penthouse" que era mais ousada do que a "Playboy" e que a realidade era de origem inglesa, remontando a sua criação ao ano de 1965...

Joaquim Costa disse...

Meu caro Luís, é uma honra (prefácio ou posfácio, tu escolhes). Estás contratado. Na altura própria falaremos. Contudo, vamos ter calma! Até entrar para o blogue a minha escrita resumia-se a memórias descritivas de projetos de infraestruturas elétricas, e, ofícios e relatórios na qualidade de Diretor de um Agrupamento de Escolas!!!

Valdemar, como é habitual nos teus comentários, sempre oportuno e assertivo. Eu no próprio post me questiono. Julgo que para além dos aspetos que referes o fator decisivo foi a surpresa. Eu comandada na altura um pelotão, que era o que ia na frente da coluna apeada e só soube da operação na noite anterior. Eu punha as mãos no fogo pelos nossos guias e elementos nativos do pelotão de Artilharia mas sempre me intrigou o facto de as flagelações atingirem em pleno o perímetro do destacamento. Só possível com informações precisas sobre a correção do tiro (de dentro do destacamento? De algum elemento do PAIGC, em cima de uma palmeira, junto do destacamento, como sugere num post o A. Murta?)

Meu caro António Graça de Abreu, Muito obrigado pelas simpáticas palavras. Vindo de alguém com o lastro de vida que já pude constatar neste nosso blogue, é uma responsabilidade. Contudo lembro o que escrevi no início desta minha agradável aventura no Blogue:

“Não pretendo com estas minhas memórias questionar, analisar ou julgar, pretendo apenas e tão só ---------------- narrar, de uma forma ligeira (nunca aligeirada), aspetos da vida de um grupo de militares na guerra colonial, ainda hoje (mal contada) não contada.
Aqui procurei, com objetividade, narrar os acontecimentos sem os contaminar com narrativas auto elogiosas ou de patriotismos serôdio.---------------
Limitei-me a contar ocorrências e vivências, evitando juízos de valor precipitados, não fugindo ao objetivo inicial de apenas contar histórias.”
Ao camarada Manuel Luís Lomba. As tuas simpáticas palavras, vindas de alguém que é uma referencia deste blogue, e não só, são para mim de uma grande responsabilidade. Muito obrigado
Ao camarada José Luís Santos, o meu obrigado pelos cuidados. Na altura a vossa presença, ainda muito periquitos, causava-nos alguma preocupação. Não obstante numa posição de retaguarda foram atirados às feras na altura mais critica como foi o assalto a Nhacobá. Por ontem e por hoje obrigado

Um abraço a todos os “comentadeiros” e a todos os “bloguistas”
Muita saúde e vamos todos há segunda dose…

Joaquim Costa

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

A leitura do texto do amigo Joaquim Costa é muito empolgante, todavia carece de datas (pelo menos eu nao vi), facto que dificulta a contextualizaçao da operaçao. A antiga tabanca de Nhacoba devia ser uma especie de ante-camara para a zona de Unal que fazia parte do corredor de Guiledje e era controlada pelos guerrilheiros e onde, segundo os relatos do A. Murta nos Postes por ele publicados em 2015 (Caderno de memorias de A. Murta), as operaçoes militares nunca tinham conseguido chegar (ao Unal) por varias razoes. Provavelmente as operaçoes aqui referidas por A. Murta seriam posteriores ao assalto de Nhacoba aqui relatado por Joaquim Costa.

No seu P15139 de 22 de Setembro 2015 diz ele:

"Das minhas memórias:

2 de Setembro de 1973 – (domingo) – Notas de Nhala; Nova incursão ao Unal; Estou “apanhado”

“Ontem à noite, desde as 22h30 e até hoje às 7 da manhã, ouviram-se ao longe rebentamentos poderosos de que não conseguimos saber a origem”.

Pelo leio agora na História da Unidade do BCAÇ 4513, calculo que esses rebentamentos fossem provenientes dos nossos obuses a partir de Buba ou Cumbijã ou de ambos, a bater a zona da nova operação para o Unal. A História da Unidade não refere batimentos de zona, mas refere o movimento de tropas para Buba no dia 1, à semelhança dos preparativos da operação falhada “Ousadia Satânica”. Esta chamar-se-ia “Lance Pertinente” e tinha o mesmo objectivo: chegar ao Unal, (e dar treino operacional às tropas do BCAÇ 4516). Tal como a operação anterior, envolveu grande número de tropas, quer do BCAÇ 4516, 4513, CART 6250, CCAV 8351, enfim, tal como a anterior fracassou pelos mesmos motivos: tudo inundado, rios intransponíveis, chuvas constantes e intensas, falta de trilhos e de guias, fora a grande distância a percorrer, como refere a H. da U."

Pelo que gostaria que o amigo Joaquim fizesse um pequeno esforço de memoria para introduzir as datas de inicio e fim da operaçao de modo a dar ao texto maior consistencia factual.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Anónimo disse...

E ainda, através das notas do Caderno de memórias do A. Murta, sabemos que pouco depois da sua reocupação, Nhacobá será abandonada, apesar do apelo da população que não queria abandonar a sua Tabanca. Talvez o Joaquim Costa nos possa dizer como ressentiram esta decisão de retirada (mais uma retirada estratégica?) depois dos enormes sacrifícios da sua conquista e ocupação.

Cherno Baldé

Anónimo disse...

Seja bem vindo amigo Cherno

Se tens acompanhado os meus post verificas que desvalorizo: datas, patentes e de certa forma o nome dos protagonistas. Interessa-me a história em si, toda a sua envolvência bem como os comportamentos dos protagonistas em situações extremas. Também só escrevo o que vi e no que participei, por vezes de forma colateral.

Contudo aqui vai o meu esforço para dar resposta às tuas interrogações

A operação “Balanço Final realizou-se no mês de Maio de 1973 e teve a duração de 7 dias; Dia 17 entrada em Nhacobá como descrevo no post; fomos aqui pernoitando com dois grupos de combate alternadamente; a 19 dois grupos de combate do qual se incluía o meu sofre uma emboscada com consequência dramáticas (1 soldado morto, um Alferes gravemente ferido e vários feridos ligeiros) que será objeto do meu próximo post; as máquinas de engenharia entram em Nhacobá preparando o terreno para toda a companhia aí se instalar definitivamente o que acontece a 23. Nesse mesma noite, já com as tendas a serem montadas, inopinadamente recebemos ordem para abandonar Nhacobá e regressar a Cumbijã numa caminhada noturna (que também será objeto dos meus próximos posts

Quanto à referencia que fazes de a população não querer abandonar a tabanca não faz sentido uma vez que com a nossa entrada em17 de Maio 73 por razões óbvias, nunca a tabanca foi ocupada por população. Creio que só foi ocupada muito depois do 25 de Abril de 1974, numa altura em que já tinha-mos abandonado Cumbijã a caminho de casa.


Quanto à Operação “Lance Pertinente” que visava atingir o UNAL, a partir de Buba, onde participou um grupo de combate da minha companhia ( CCAÇ do BCAÇ 4516, mais 1 GR COMB da 2ª CCAÇ/4513; 1 GR COMB da 3ª CCAÇ/4513; 1 GR COMB da CART 6250; 1 GR COMB da CCAV 8351). teve lugar nos dias 1,2 e 3 de Setembro de 1973. O objetivo não foi atingido pela dificuldade em transpor o terreno nesta época, chuvas constantes e intensivas, falta de trilhos e ausência de guias e a enorme distância a percorrer.
Tenho um conhecimento muito vago destas tentativas de chegar ao UNAL já que estava a gozar o meu período de férias em Portugal.
Um abraço fraterno
Joaquim Costa