Tempo de recordar
Guerra Colonial, O Calvário de Uma Geração - 1
Cumpre-se hoje, 17/04/2022, exatamente meio século sobre o dia mais triste da minha vida. Foi no leste da Guiné, numa manhã de sol inclemente, num sítio chamado Quirafo. Éramos vinte, em duas viaturas. Uma emboscada. Um numeroso grupo inimigo que nos metralha com canhões, lança-rockets e metralhadoras. Num minuto, pouco mais, morrem-nos doze homens e seis ficam feridos, alguns dos quais com muita gravidade. Na noite que se segue à tragédia, puxo do meu bloco de notas e escrevo:
Vinte e duas horas. Do dia mais triste da minha vida. Aqui, na desoladora messe de oficiais e sargentos, apenas eu. Nem o responsável pelo bar ficou. Todos recolheram à solidão dos abrigos, possivelmente para meditar. Lá fora, um silêncio de morte. Um silêncio estranho e sepulcral, de que faz parte este maldito e cadenciado martelar que tende a rebentar-me os tímpanos e o sistema nervoso. Já o não suporto mais. Corro para a porta, a fechá-la. E não posso evitar um fugidio olhar. Um fugidio olhar suficiente para que sinta o coração esfrangalhar-se-me e este terrível nó seco na garganta, que me comprime a alma: o cangalheiro, rodeado de urnas por todo o lado, trabalha. Sereno. Indiferente.
Aturdido, encosto a porta com todo o cuidado e venho de novo sentar-me. Sinto-me cansado. Abatido. Gostava de fechar os olhos e adormecer. Mas, não consigo. A certa altura, parece-me ouvir um assobiar baixinho… Mas, o que é isto?!... Apuro o ouvido, e não, não é. Parece mais alguém que trauteia qualquer coisa, uma cantilena qualquer… Volto a correr para a porta, agora intrigado e enraivecido.
Nada. Só o silêncio. E o cangalheiro. Que prossegue no seu trabalho, taque-taque, taque-taque. Com a mesma serenidade. A mesma indiferença.
E o sentimento de revolta apodera-se de mim com mais intensidade. Sinto vontade de lhe cair em cima. De o agredir. De lhe dar dois socos.
Mas, contenho-me. Volto covardemente para o meu canto, como um cão lazarento com o rabo entre as pernas, e ponho-me a pensar. A tentar refletir sobre o que se passa comigo e com a cena macabra que me envolve. E vêm-me à cabeça as lágrimas, os abraços e os lenços brancos das despedidas em Lisboa, lá no cais das não sei quantas. Meu Deus, e os pais?!... Que será dos pobres pais, coitados, quando souberem da triste nova?!... Eles que, cada dia, antes da deita, caem de joelhos aos pés do Cristo, da Virgem, do Anjo da Guarda e de todos os santos protetores e mais alguns, a pedirem a salvação dos seus filhinhos?!... Era tão bom, tão alegre, tão cheio de vida…
É isso que vos espera, camaradas, lá no outro lado do mundo: o choro, o lamento, a recordação.
E nós, por cá… Nós, por cá, todos bem graças a Deus. Beijinhos para os manos, tios e priminhos. Cumprimentos aos vizinhos e amigos. Adeus, até ao meu regresso.
Saltinho, 17 de Abril de 1972
Mário Migueis
"António Ferreira", 1.º Cabo TRMS, morto durante a emboscado do Quirafo
Homenagem do nosso camarada Mário Migueis
Acrílico: © Mário Migueis da Silva (2010).
Todos os direitos reservados
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Picada de Quirafo > Fevereiro de 2005 > Restos da GMC da CCAÇ 3490 (Saltinho, 1972/74), que transportava um grupo de combate reforçado, comandado pelo Alf Mil Armandino, e que sofreu uma das mais terríveis emboscadas de que houve memória na guerra da Guiné (1963/74)...
Foram utilizados LGFog e Canhão s/r. Houve 11 militares mortos, 1 desaparecido... Houve ainda 5 milícias mortos mais um número indeterminado de baixas, entre os civis, afectos à construção da picada Quirafo-Foz do Cantoro. A brutal violência da emboscada ainda era visível, em Fevereiro de 2005, mais de três décadas, nas imagens dramáticas obtidas pelo Paulo Santiago e seu filho João, na viagem de todas as emoções que eles fizeram à Guiné-Bissau.
Fotos: © Paulo e João Santiago (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: LG]
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Nota do editor
Último poste da série de 27 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23038: Efemérides (363): Há meio século, nestes dias 26 e 27 de Fevereiro, sábado e domingo, foi levada a cabo a Operação Juventude V na zona Caboiana/Churo (Ramiro Jesus, ex-Fur Mil Cmd, 35.ª CComandos, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73)
7 comentários:
Caros camaradas
Um relato/desabafo pungente.
Ainda dói, ao ler.
Passaram 50 anos e parece que foi ontem, pelo menos para aqueles que por lá estiveram.
Abraços
Hélder Sousa
Que estejam em paz. Foi um dia negro para o 3872
Não a tenho a certeza, mas penso que este "relato / desabafo pungente" (como escreve o Hélder Sousa com toda a propriedade) é inédito no nosso blogue.
Não me lembro de o ter lido, mas posso confirmar se está por aí algures. Vou pesquisar. Em todo o caso, não importa, deve ser lido e relido. É um grande documento humano sobre o "mal absoluto" que é a guerra, que foi aquela guerra, de um lado e do outro.
Mário, já não temos, ao fim de 18 anos de blogue (com mais de 23 mil postes e 100 mil comentários) a mesma capacidade de reação, a mesma sensibilidade, a mesma emotividade à flor da pele... Mas eu gostava de ver este teu poste com dezenas e dezenas de comentários. Para mais hoje é domingo de Páscoa e, velhos gulosos, andamos a comer as amêndoas de há dois anos atrás, já há dois anos que não havia festa das famílias, e foguetes, e compasso pascal e beijinhos e abraços por causa da maldita pandemia... E ainda por cima há, esta noite, o derbi lisboeta...Mas, se puderem, comentem, camaradas!
Um grande abraço fraterno, Mário, sei dar valor à tua dor e compreender a tua revolta. Luís
Mário Migueis
"Guerra Colonial, o Calvário de uma Geração"
Grande descrição, arrepiante e que os mais novos que nós nunca se esqueçam.
E mais uma emboscada: 'Houve 11 militares mortos, 1 desaparecido... Houve ainda 5 milícias mortos mais um número indeterminado de baixas, entre os civis......'
Foi assim a merda da guerra na Guiné.
Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz
Um relato arrepiante, duma guerra que alguém classificou de “baixa intensidade”!!!
Joaquim Costa
Repito o que já está escrito atrás.
É arrepiante esta narração, os mais novos, o poder politico, antes e depois, não querem saber disto para nada, só se fossem actores da tragédia.
Esta guerra, para quem a viveu com mais ou menos intensidade, nunca vai ser objecto de nenhuma condecoração.
Temos outro tipo de gentes para condecorar e lembrar, dizem eles, estes já passaram à história.
Não sei mais que comentar, uma tragédia destas, numa selva de África, sem condições nenhumas, humanas e materiais, logística, comando forte!
Que Deus os mantenham artificialmente vivos, lá no Olimpo.
É difícil comentar estas coisas, não somos de ferro nem de aço.
Paz às suas almas,
Virgilio Teixeira
Olá Camaradas
A "ressurreição" do Baptista foi algo de épico, quer depois da independência, quer alguns anos depois (o que ainda foi pior). Poderá então, este assunto ser, não direi encerrado, (nunca o estará) mas "arquivado" na nossa memória e poderá ser consultado pelos "mestrados" e "doutorados".
Um Ab.
António J. P. Costa
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