sábado, 2 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26108: In Memoriam (516): Regina Gouveia (1945-†2024), Amiga Grã Tabanqueira, esposa do nosso camarada Fernando Gouveia

IN MEMORIAM

Regina Gouveia (1945 - †2024)

A notícia do falecimento da nossa amiga Regina Gouveia, esposa do nosso camarada Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec Inf do CMD AGR 2957 - Bafatá, 1968/1970), ocorrida há cerca de três semanas, apanhou de surpresa os editores do blogue. A infausta notícia foi confirmada pelo José Teixeira e pelo António Pimentel, amigos próximos do casal Gouveia. 

Regina Gouveia, formada em Fisico-Químicas e Mestre em Supervisão, era professora aposentada do ensino secundário e autora de diversas obras literárias, algumas delas dedicadas aos mais pequenos.

Tem 15 referências no nosso blogue onde começou a colaborar no já longínquo ano de 2009. Acompanhando o seu marido, esteve presente nesse mesmo ano no IV Encontro Nacional da Tertúlia em Ortigosa.

Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real > 20 de Junho de 2009 > IV Encontro Nacional do nosso blogue > Regina e Fernando Gouveia. 

O nosso editor Luís Graça publicou no P4615 um pequeno resumo sobre Regina Gouveia que abaixo se reproduz:

(i) Nasceu em 1945 (em Santo André, Estado de S. Paulo, Brasil, onde vivei até aos dois anos de idade);

(ii) Passou a sua infância e adolescência no Nordeste Transmontano, em Portugal, de onde tem raízes pelo lado paterno;

(iii) casada com Fernando Gouveia, arquitecto, aposentado da CM Porto; acompanhou o marido, em Bafatá, durante a sua comissão militar (1968/70);

(iv) É Licenciada em Físico-Químicas (Universidade do Porto) e Mestre em Supervisão (Universidade de Aveiro).

(v) Professora do Ensino Secundário, aposentada, dedicou muito do seu tempo à formação de professores (foi orientadora de estágios durante 22 anos);

(vi) Colaborou com o Ensino Superior, nomeadamente com o Departamento de Física da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

(vii) Actualmente lecciona na Universidade Popular do Porto e colabora, a título voluntário, com a Biblioteca Almeida Garrett no Porto, divulgando a ciência e a poesia, junto dos mais pequenos.

(viii) Em 2005, no âmbito do Ano Internacional da Física, foi agraciada com a comenda da Ordem da Instrução Pública e premiada com o prémio Rómulo de Carvalho.

(ix) É autora do livro de didáctica Se eu não fosse professora de Física. Algumas reflexões sobre práticas lectivas e do livro de ficção Estórias com sabor a Nordeste.

(x) No âmbito da poesia, tem poemas dispersos em algumas publicações,além de prémios; é autora de dois livros de poesia Reflexões e Interferências e Magnetismo Terrestre;

(xi) António Gedeão (pseudónimo lietrário de Rómulo de Carvalho) é um dos seus poetas favoritos. Recorde-se que é o autor do célebre poema Pedra Filosofial (Eles não sabem que o sonho /é uma constante da vida...), transformado em canção de contestação, na voz de Manuel Freire, e nas vozes de alguns de nós,em Bambadinca (1969/71)...

(xii) Em 2006, publicou o seu primeiro livro para crianças: Era uma vez… ciência e poesia no reino da fantasia...

Duas fotos da jovem Regina Gouveia em Bafatá durante a sua permanência naquela localidade guineense onde o marido cumpria a sua comissão de serviço.


Em jeito de homenagem, aqui deixamos três poemas, ao acaso, de Regina Gouveia, o primeiro, uma memória da Guiné e das pessoas de quem ainda se lembrava; o segundo, talvez um grito de protesto pelas desigualdades de uma sociedade de consumo onde alguns têm tudo e outros não têm nada; o terceiro, dedicado ao cais, aquele muro que desde tempos imemoriais viu partir portugueses para a guerra e para a emigração. Todo o cais é uma saudade de pedra, na palavra de Fernando Pessoa.


Telejornal

Vejo o Telejornal no canal dois.
A apresentadora fala da BSE, de clonagem, do Kosovo
e, logo depois, de um acidente no Cais do Sodré e da instabilidade na Guiné.
E eu empreendo no tempo uma viagem...
O Braima, a Binta, o Adrião, onde andarão neste momento?
Conheci-os em Bafatá, há muito tempo, iam buscar o cume no fim da refeição.
Recordo os seus olhos vivos de crianças, pele negra, dentes alvos, sem igual,
os passos apressados quando o vento anunciava em breve um temporal.
Eu era aluna e eles mestres do crioulo de que mal guardo lembranças.
Das mulheres, recordo as suas vestes, fossem mulheres grandes ou bajudas
no tronco, eram em geral desnudas,
presos na cinta panos coloridos que, de compridos, chegavam quase ao chão.
Algumas eram de tal modo belas que pareciam extraídas de telas.
Recordo, servindo-me o café, o Infali com aquele seu olhar tão doce e triste,
talvez o ar mais triste que eu já vi. Será que o café ainda existe?
Recordo aquele condutor, o Mamadu, mostrando com orgulho o seu menino.
Que terá feito deles o destino?
Recordo os passeios na estrada do Gabu, os mangueiros, os troncos de poilão,
a mesquita, o mercado, a sensação de paz que tudo irradiava,
apesar do obus de Piche que atroava, apesar da maldição da guerra
cujo espectro por cima pairava.
Recordo ainda o cheiro e a cor da terra,
o Colufe e o Geba sinuosos onde canoas esguias deslizavam,
recordo macaquitos numerosos que entre os ramos das árvores saltavam
enquanto que lagartos, preguiçosos, ao sol, pelos caminhos se espraiavam
e uma miríade de insectos buliçosos ao nosso redor sempre volteavam.
Recordo o batuque daquele casamento.
Na foto ficou bem impresso o momento em que o dançarino fazia um mortal
numa fantástica expressão corporal.
Foi lá na Ponte Nova, naquela tabanca onde de azul se coloriam panos
que as mulheres usavam em volta da anca e que desciam quase até ao chão.
Tudo isto se passou há muitos anos.
A apresentadora fala agora em danos causados por uma longa estiagem
e mostra uma desértica paisagem.
Eu regresso da minha viagem e tento organizar o pensamento.
O telejornal está quase no final. Deve seguir-se a previsão do tempo.




Pai Natal

Pai Natal, acabo de perceber que não és imparcial
A alguns meninos deste tudo e a outros não deste nada
Será que perdeste a morada, não estava a tundra gelada,
ou estava a rena cansada?
No Natal que logo vem, pensa bem pois não pode ser assim.
Ou dás presentes a todos ou não os dás a ninguém. Nem a mim.


Regina Gouveia em Ciência para meninos em poemas pequeninos



Cais

Na janela, a cortina rendada.
Através dela, navios que demandam o cais,
outros que partem.
Lenços brancos acenam da amurada
outros respondem acenando de terra.
Entre uns e outros, oceano e guerra.
Navego no navio da memória
delida pelo tempo, esse cavalo alado.
Na janela, cada dia mais puída a cortina rendada.
Através dela já não vislumbro
o inexistente cais, outrora imaginado.

Do livro “Entre margens", editado em 2013


********************

E assim nos despedimos da nossa amiga Regina Gouveia.

Ao Fernando Gouveia, seus filhos, netos e demais família, deixamos o nosso mais profundo pesar.

_____________

Nota do editor

Último post da série de 24 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26075: In Memoriam (515): Marco Paulo (1945-2024): "Nosso cabo, não, meu Alferes, sou o Marco Paulo" (.... nome artístico de João Simão da Silva, nascido em Mourão, ex-1º cabo escriturário, QG/CCFAG, Amura, Bissau, 1967/69)

12 comentários:

Anónimo disse...

Daqui aproveito o nosso blog para manifestar ao Gouveia a minha tristeza pelos momentos que atravessa. Um grande abraço.

Carvalho de Mampatá

ana oliveira disse...

Nestes dias de Outono em que a folhas, por ironia, ganham cores de flores e caem, para acrescentar a este ambiente sinistro que se espalhou por todo o Mundo, a minha alma ficou mais triste também com as mortes, que têm acontecido nos últimos meses de muitos amigos, alguns conterrâneos, outros parentes e conterrâneos ( a aldeia de Brunhoso vai morrendo mais com eles), e três grandes amigos . Uma amiga, Regina Gouveia se chamava, senhora distinta e culta, poetisa , com muita sensibilidade, que num último gesto de amor e altruísmo, legou o seu corpo ao Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. No final de um texto, publicado no facebook, dei destaque , à morte desta amiga transmontana, parada a aldeia fica do outro lado do Sabor, a um tiro de canhão da minha aldeia. Estimei -a e admirei-a também pelo seu porte elegante e pela sua hospitalidade e universal, que partilhava com o Fernando Gouveia ,o seu marido. Ele por uma chamada telefónica , que lhe fiz sem nos conhecermos, à seis anos, para lhe comprar um livro, já editou vários, convidei-me para sua casa, para me orientar para editar um livro meu, sem recorrer a editoras, . Ele prontificou-se logo a ajudar-me nessa tarefa, para dispor e formatar os meus textos no computador já que eu era quase ignorante nessa matéria. Durante meses frequentei a casa deles , semanalmente muitas vezes, onde tive a ajuda do Fernando e por vezes também da Regina. Senti-me em Trás-os-Montes, em minha casa, ou em casa de familiares ou amigos próximos, foi um tempo muito agradável.
Francisco Baptista

Anónimo disse...

A Regina e o Fernando foram comigo à China, em 2014, em viagem que organizei. Excelentes amigos, descansa em paz, Regina.

António J. P. Costa disse...

Não a reconheci na rua de Gabu Sara. Era uma miudita!. Depois, nos encontros era uma senhora que eu tinha de respeitar, ter juízo e o portar-me bem ao pé dela. Um beijo dos grandes. Um Ab. ao Fernando.

António J. P. Costa disse...

Não foi no Gabu foi em Bafatá!

ManuelLluís Lomba disse...

Os meus pêsames ao camarada Fernando Gouveia

Anónimo disse...

Antes de editar o meu livro, pedi à Regina para me deixar transcrever um poema dela, no seu início. Ela gentilmente disse-me que escolhesse o que quisesse. Escolhi este , que retrata bem, o clima de extremos, os trabalhos duros, a alma das gente, que sofria em silêncio e desolação e a grande fuga dessa terra amada e pobre .
"Eram tempos agrestes, quando da azeitona ou da amêndoa a apanha, Era o vento cieiro que vinha de Espanha, uma brisa fresca, cortante, gelada, que gretava a pele já de si curtida, era a soalheira que encardia o rosto no ateado Agosto. Eram tempos agrestes, de fugas para a França e de passadores, de silêncios pesados, de densos suores, que iam desgastando dia a dia a vida, qual roupa delida já de tanto usada. Eram tempos agrestes grávidos de sol de frio e de nada"
Regina grande poeta e grande professora, que até depois de morta, quisestes continuar a dar lições aos jovens.
Até sempre mínha amiga, tu não morreste.
Francisco Baptista

José Martins disse...

Condolências à família.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Só soubemos, na sexta feira passada, da triste notícia da morte, ainda recente, da Regina dos Anjos Sousa Gouveia (1945-2024), por dois camaradas da Tabanca de Matosinhos, o José Teixeira e o António Pimentel (este particularmente amigo do casal).,

Já estava editado e publicado um primeiro de 3 postes sobre a Regina Gouveia e as suas memórias de Bafatá, em 1969, quando lá passou dois períodos de férias com o marido, o Fernando.

Acabámos por suspender o poste e adiar a sua publicação, a pedido da família que, umas horas depois, acabou por aceitar a nossa sugestão de fazer um curto "In Memoriam", em homenagem à Regina, nossa grã-tabanqueira. Queríamos com isso ajudar também a mitigar a dor do nosso amigo e camarada, o arquiteto Fernando Gouveia, bem como a dos seus filhos e netos.

Sabíamos, pelas suas publicações anteriortes, que o Fernando e a Regina tinham as mais completas (e felizes) memórias da Bafatá do nosso tempo (finais dos anos 60) (em texto e fotos publicadas no blogue e no livro "A Guerra Vista de Bafatá").

O Fernando Gouveia, ex-alf mil Pel Rec Inf, CmdAgr 2957 (Bafatá, 1968/70), é membro da Tabanca Grande desde 9/4/2009. Tem cerca de 180 referências no nosso blogue, e é autor de notáveis séries, antológicas, como "A Guerra Vista de Bafatá" e "Roteiro de Bafatá, a doce, tranquila e bela princesa do Geba"...

A Regina, professora, reformada, havia entrado na mesma época, em 30/6/2009. E era uma das raras mulheres que acompanharam os maridos, na guerra, fora de Bissau, integrando, ao mesmo tempo, a nossa Tabanca Grande. (Um caso único, se a memória não nos falha, mas também são poucas as mulheres, nossas tabanqueiras.)

Na altura, em 1969, ela era professora e aproveitava as férias escolares para se juntar ao marido em Bafatá (esteve lá em dois períodos, em verão e no natal de 1969; havia casado na metrópole com o Fernando, quando este veio, pela segunda vez, de férias, em março / abril de 1969).

Escritora, com vários livros publicados, a Regina (que conheceu em Monte Real, em 2024, por ocasião do nosso IV Encontro Nacional) ra uma pessoa de grande sensibilidade estética e sociocultural.

Mesmo ainda sem saber da notícia da sua despedida da Terra da Alegria, estávamos a a reeditar três postes, pensando que era mais do que justo e já era tempo de recordar, aqui, algumas das suas memórias de Bafatá (publicadas pela primeira vez em 2010) agora a publicar, com revisão do texto e melhoria da ilustração fotográfica.

E vamos fazê-lo, daqui a mais uns tempos, se o Fernando e os filhos não se opuserem. É também a nossa forma singela e solidária de homenagear um grande ser humano, para mais mulher de um antigo combatente, que nos honrou com a sua presença sob o nosso mágico, simbólico, acolhedor, gregário e fraterno poilão.

Descanse em paz, Regina. E vela pelos teus e por nós. Luís.

Bafatá: álbum de memória

Francisco Baptista disse...

O anonimo a que se refere o gmail , pede desculpa, julgo que a merece, pois no final dos textos identificou-se.

Anónimo disse...

Abraço, Caro Fernando Gouveia. V. Briote

Hélder Valério disse...

Fiquei consternado pela notícia. Habituei-me a considerar e a respeitar, tanto a Regina como o Fernando, até porque estive à conversa com eles num dos nossos Encontros. Mulher de respeito, corajosa, sensível, conforme os textos comprovam. Nada me fazia prever esta situação. Só posso desejar que descanse em paz e que o Fernando aceite os meus pêsames.
Hélder Sousa