Queridos amigos,
Temos vindo a encontrar ao longo dos anos bem curiosos diagnósticos de situação em termos de higiene e saúde pública, recordo os irrepreensíveis e minuciosos relatos do Dr. Damasceno Isaac da Costa. Encontra-se agora neste ano de 1894 este precioso documento assinado pelo chefe do serviço de saúde, que conhece in loco as situações e quando não as conhece baseia-se nos relatórios dos respetivos delegados de saúde. Acresce dizer que este ano de 1894 revela-se politicamente um tanto inócuo, vão aparecer uns atos de submissão, aparentemente a ilha de Bissau entrou em acalmia, praticamente não se fala em sublevações na região de Geba nem em Cacheu. A economia não está risonha, o reinado do rei D. Carlos iniciou-se numa situação financeira crítica, o dinheiro escasseia e há políticos em Lisboa que até sonham com a criação de uma empresa majestática para a Guiné, que evite despesas ao Estado.
Um abraço do
Mário
A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, de janeiro a agosto de 1894 (20)
Mário Beja Santos
Folheando os boletins deste ano, compete dizer em primeiro lugar ao leitor que a publicação está em muitíssimo mau estado, o boletim devia vir dobrado para o continente, não só está partido como o papel é muito frágil para desfazer-se. Da leitura feita entre janeiro a agosto, regista-se certa sensaboria, há muitos despachos e muitas entradas e saídas, excecionalmente aparecem autos de submissão após rebeliões, pelo que tomei a decisão de me centrar numa matéria que se revela rica, dada a qualidade dos relatórios sobre o serviço de saúde na Guiné. É chefe deste serviço César Gomes Barbosa, que escreve na perfeição. Após nos apresentar o hospital e a farmácia central de Bolama e o depósito de medicamentos, resolve fazer uma apresentação de Bolama, é um olhar muito interessante:
“O solo de toda a ilha é argilo-silicioso e argilo-ferruginoso, formando uma planície baixa coberta de vegetação, sem florestas, nem bosques, e rodeada à beira-mar por arvoredo (tarrafo) cujos troncos ficam mergulhados em água salgada do rio. Não existe nesta ilha animais selvagens. Corre apenas haver a onça e o lobo. O interior dela tem aqui e acolá espalhadas umas pequenas tabancas, de Brames, Fulas, Mandigas, Papéis e Manjacos que agricultam os terrenos a seu modo de batata, milho, feijão, milhinho e algum arroz, géneros de que se servem para a sua alimentação e mancarra que vendem em troca, a maior parte das vezes a partir de europeus tais como aguardente, pólvora, tabaco, artigos de vestuário.
As praias que limitam a povoação constituem os maiores e mais nocivos pântanos de toda a ilha e a elas se devem, decerto, grande parte da insalubridade desta capital. São praias que em parte do dia oferecem uma superfície extensa à exalação maremática e em que o Sol ardente ativa quotidianamente, fornecendo o calor para a decomposição das matérias orgânicas de germinação ou cultura dos micróbios.”
O autor volta-se agora para o quadro da saúde pública, irá falar do quinino:
“É o sulfato de quinina em doses nunca inferiores a 800 centigramas, mas que ascendem a 2, 3, 4 e 5 gramas diárias, o medicamento por excelência. Nunca atingi a dose de 4 gramas de sulfato de quinina na minha clínica. Durante o acesso febril de uma intermitente simples quotidiana terçã, quartã, etc. que muitas vezes se complica de embaraço gástrico ou intestinais, é seguida a prática racional de administrar evacuantes, vomitórios ou purgantes, conforme a complicação, sem se administrar a quinina. Após os efeitos de qualquer dos evacuantes sobrevém uma calma relativa que se aproveita para provocar a transpiração que pouco tarde. É no intervalo das pirexias (febres), que se administra o quinino. Esta regra, porém, não pode ser tomada como constante. O médico é muitas vezes obrigado a determinar o uso de sal químico durante o acesso febril. Esperar os intervalos das pirexias seria muitas vezes a condenação do doente. O médico é muitas das vezes obrigado a determinar o uso do sal químico durante o acesso febril, como antitérmico, quando a elevação da temperatura é grande e prolongada. (…) A minha prática de 8 anos em localidades paludosas leva-me a admitir e a usar com frequência a quinina durante o acesso febril. Deste uso tenho apenas que me felicitar. Nas febres intermitentes a temperatura axilar é muitas vezes elevada a 41 e 41,5 sem que, após ela, o doente ligue a menor importância ao que o doente sofreu. Estas febres assim deterioram facilmente o organismo e produzem com poucas repetições a anemia palustre, quando o paciente menos a espera.”
Faz seguidamente uma exposição sobre as formas gravíssimas de paludismo com a morte de todos os doentes, começa pela febre perniciosa a que se segue a febre biliosa hemoglobinúrica; apresenta o quadro das situações mais frequentes de doenças que levam à hospitalização: a diarreia, a disenteria, a doença do sono, as ténias, as ascárides lombricoides e as doenças de pele, as úlceras e a varíola. Continuando, faz uma síntese da higiene e polícia sanitária:
“De Bolama, Bissau, Geba e Buba, falo com conhecimento pessoal; de Cacheu e Farim apenas farei as referências dos delegados de saúde. Higiene tem sido uma palavra mais ou menos respeitada ou ridicularizada na Guiné, consoante a ilustração da câmara e das comissões principais. É certo que todas delas falam porque têm um pelouro de higiene, não é menos certo que cada vereador é um higienista especial, quando lhe incumbe os cuidados do pelouro relativo. Não supunham os vereadores das câmaras municipais da Guiné que esta especialidade lhes pertence. O que noto aqui observei-o durante 7 anos em Cabo Verde.”
Continuamos a falar do relatório do serviço de saúde da Guiné português durante o ano de 1891 publicado no Boletim Official ao longo de 1894. César Gomes Barbosa envereda agora por amplas descrições do Estado de lugares da Guiné. Começa por Cacheu.
Após localizar Cacheu, diz o seguinte:
“De janeiro a julho servem-se os habitantes de Cacheu da água colhida em dois poços abertos nos pântanos do Sul, de junho a dezembro a água é colhida em duas fontes que existem à entrada do mato e são a Inglesa e a Salanca. São estas águas, a meu ver, de má qualidade, não se devendo nunca servir de poços abertos dos pântanos e devendo usar-se com os cuidados precisos as que se colhem nas fontes Inglesa e da Salanca, fazendo filtrar ou melhor, ferver e arejar. Nesta vila manifestam-se todas as formas de paludismo, desde a mais ligeira até às febres remitentes, biliosa e perniciosa, o que confirma o meu juízo de pouco salubre. O solo de Cacheu é argiloso, com mistura de sílica. Desta natureza do terreno se compreende já a sua insalubridade, cercado de pântanos, salgados e doces abastecidas de água de má qualidade num espaço cercado de paliçada, esta vila não me merece o conceito de mais salubre que a povoação de Bolama.
De Cacheu e Farim, que não conheço ainda e que são banhados pelo rio de S. Domingos apenas repito o que tem sido dito. O cemitério de Cacheu é como o descrevem os delegados de saúde, uma porção de terreno ao Sul da vila, sem resguardo, cita numa pequena elevação do solo a que fica subjacente o pântano em que se encontram os poços de água que os habitantes da água fazem uso.
Manifestam os delegados de saúde o receio que as águas dos poços possam vir inquinada de produtos de decomposição cadavérica, não me parece justificado este receio perante a dar-se de que há muito em Cacheu deveria experimentar estes funestos resultados.
O cemitério não deve continuar no local onde hoje se fazem os internamentos, por ser a área muito pequena e estar muito próximo da praça. Convém que se termine aí com a inumação e que se construa um cemitério em local mais afastado.”
E o chefe do serviço de saúde irá seguidamente falar de Farim, Bolama e Geba.
Forte de Cacheu, finais do seculo XIX
Soldados da Companhia de Caçadores 508 com prisioneiros, na Guiné-Bissau, durante a Guerra Colonial. Fotografia retirada do site Lugar do Real, com a devida véniaMarginal de Bissau. Ao fundo: a corveta NRP Honório Barreto, ao serviço da Marinha Portuguesa. Este tipo de embarcações atuou em missões de soberania e apoio de fogo nas águas de Angola, Guiné, Moçambique e Cabo Verde. Imagem retirar do Lugar do Real, com a devida vénia
Ponte-cais do Pidjiquiiti Correia e Leça, cerca de 1890
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 22 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26413: Historiografia da presença portuguesa em África (461): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, de 1892 para 1893 (19) (Mário Beja Santos)
3 comentários:
A segunda fotografia é inédita e difícil de perceber tratando-se de prisioneiros, mais parece uma “coluna” de tráfico de escravos. Valdemar Queiroz, de smartphone
Estas leituras que nos traz Beja Santos dizem bem da perda de tempo que era "colonizar" escravizar", "pacificar", explorar aquele arquipélago, que a custo os franceses nos "cederam".
Vejamos as explorações de lana-caprina de riquezas naturais.
Riquezas naturais que era a grande motivação colonial de Inglaterra França Alemanha e Bélgica, com a divisão em Berlim em 1880 de toda a África.
Ora, nesta altura, época de D. Carlos, não tinhamos nem gente, nem empresas nem CUF nem economia para explorar mancarra.
Nesta altura já os outros só viam ouro em todas as colónias, e em Angola nem Moçambique não se conhecia nem uma miligrama do dito cujo.
Nem geologos tinhamos para escolher uma colónia com ouro.
Só mancarra!
Inédita Sim.
Tráfego de escravos?
Nesta época não era politicamente correcto
Virgílio Teixeira
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