1. Mensagem do nosso camarada Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351, Os Tigres de Cumbijã, Cumbijã, 1972/74, enviada em 28 de Novembro de 2009:
BANALIDADES DA FOZ DO MONDEGO- VIII
AS “LICENCIATURAS” DOS TIGRES DO CUMBIJÃ
Tratado com “paninhos de renda” pela menina Adelaide, a minha mãe, que me deixou repentinamente, nos idos anos oitenta, antes mesmo de completar setenta anos de idade, vivi uma infância sem o mínimo sobressalto, pois para além dos miminhos que só as nossas mães sabem oferecer, tinha nela uma bela guarda-costas, pois impedia que as asneiras mais graves do Vasquito, quase diárias, chegassem ao conhecimento do pai Vasco, que no seu avantajado físico, metia um medo do caraças…
Um belo dia este vosso amigo ficou doente, penso que com uma gripe forte, mas já alertara a sua mãezinha, que postal com uma “falta de disciplina”, daquelas que a secretaria do liceu enviava ao encarregado de educação, escritas num vermelho ainda mais vivo que as camisolas do meu querido Glorioso, e que dizia respeito a uma expulsão de uma qualquer aula por uma qualquer coisa que eu havia feito, vinha a caminho e estava prestes a chegar. É desta que eu não escondo o postal seu malandro, ameaçava a minha mãe, mas os seus lindos olhos traíam de imediato as palavras e eu, repimpadamente, estava pronto para a próxima.
O meu pai saía para o trabalho pelas oito e meia, regressava por volta da uma para o almoço, o “sacana” do correio chegava pelas dez e meia, portanto tudo controlado. Nesse dia em que a gripe não me deixara levantar e em que deitado “estudava” uma qualquer disciplina, com uma revista do Condor ou do Cisco Kid entre as páginas do livro, aí pelas onze da manhã violentas pancadas, ainda hoje as ouço, de martelo na porta do meu quarto tiraram-me daquela modorra que a caminha nos proporciona.
Entre o assustado e o aterrorizado, senti logo que o pior acontecera.
O sr. Vasco havia esquecido qualquer coisa em casa onde regressara a buscar, julgo que documentos para uma escritura, e, galo dos galos, o carteiro havia-lhe entregue a correspondência e lá vinha a terceira “falta de disciplina” à mesma cadeira que me deixava o ano tapado.
Não consegui mexer-me e só passado um intervalo de segurança, quando as pancadas desferidas na porta pararam e o grito lançado pelo vozeirão do meu pai, de “bandido” se escoara havia mais de cinco minutos, me levantei e pé ante pé, abri a porta do meu quarto, espreitei e pasme-se, o meu pai havia pregado, sim pregado com pregos e martelo na porta do meu quarto, a “encomenda” que recebera do liceu.
Ao ler o texto sobre as escolas de Aldeia Formosa e Nhala do nosso camarada Amaro, recordei-me que lições bem aprendidas não se esquecem, até mais, fornecem-nos argumentos para solucionar problemas difíceis.
O Vasquito, já Cap. Gama na Guiné, comandava uma companhia de operacionais que após 3 ou 4 meses de calma relativa em Aldeia Formosa, foi viver em barracas de lona para o Cumbijã.
Entre os embrulhanços matinais na protecção à estrada e as festarolas que o P.A.I.G.C. nos proporcionava ao cair da tarde no nosso “aquartelamento”, com duas visitas ao arame, tínhamos de amassar blocos, cortar troncos de palmeira, abrir valas tudo isto à unha, ajudados durante algum tempo pela engenharia, quando a estrada chegou ao Cumbijã em direcção a Nhacobá e as máquinas descansavam ao lado das nossas tendas por detrás de montes de terra que elas próprias abriam para passar as noites…
Mas, nem só de trabalho físico viviam os Tigres. Havia trabalho intelectual a desenvolver e não me refiro à leitura da Bola ou à prática obrigatória do inglês que o meu querido camarada furriel Azambuja Martins nos proporcionava quando recebia a famosa revista PENTHOUSE que era “lida” avidamente por toda a companhia.
Refiro-me sim às aulas para quem não tinha a quarta classe. Tínhamos de arranjar tempo para dar o exame da quarta a todos os nossos companheiros, pois só com essa licenciatura, tinham direito a serem funcionários públicos (alguns camaradas vieram a ingressar na G.N.R.) e a tirar a carta de condução, que era o sonho de quase todos .As férias de muitos camaradas eram passadas em Bissau a estudar o código e a fazer o exame que lhes permitisse mostrar, até à exaustão a sua licença de condução, como se de qualquer diploma “internacional” se tratasse.
Vejam lá, nas condições em que vivíamos, a vontade e o entusiasmo dos nossos alunos e também dos mestres-escola que comigo iam colaborando.
Enfim, o tempo foi passando e o exame da quarta classe marcado.
Inicialmente esteve para ser feito em Aldeia Formosa, mas eu não aceitei alegando não importa agora o quê!
O exame tem de ser obrigatoriamente no Cumbijã!
As horríveis condições em que vivíamos, as imensas flagelações com que os turras nos brindavam, o facto de não termos sequer população, aquele ponto que alguns sempre aumentam quando contam a história de uma emboscada, o facto de os camaradas que nos ajudavam na protecção à estrada regressarem a Mampatá ou a Aldeia no final do dia e os Tigres terem de permanecer todos os dias naquele buraco, davam ao Cumbijã um estatuto de local “não grato”. Era um ponto a favor dos examinandos…
Chegou, proveniente de Bissau e devidamente escoltado por elementos de uma Companhia de Aldeia Formosa, onde havia aterrado pela manhã, o senhor examinador, penso que um furriel, de patente.
Se na escrita se conseguiu distrair o examinador e ajudar os Tigres candidatos ao diploma, a prova oral estava a correr mal sobretudo a dois deles, ao Armando e ao Martins. Aquilo estava a dar para o torto e o examinador insistia, insistia, de uma forma perigosa. Foi então que a lição “barulhenta” do meu pai me veio à memória e abandonando a “sala de exames” prevenindo só os mais próximos do que ia acontecer, dei ordem para que os meus três obuses disparassem em simultâneo para baterem a zona…
Imaginem ouvidos virgens de Bissau ao ouvir aquele estardalhaço!
Porra, até os alunos se atiraram para debaixo das mesas…
É verdade camaradas, todos os Tigres do Cumbijã foram aprovados, só não me recordo do grau de distinção atribuído…
Se fosse hoje, outro galo cantaria e de lá para cá, dada a rapidez da evolução da técnica, dos métodos de estudo e da qualidade dos mestres examinadores, não seriam necessárias três obusadas; bastaria um simples e silencioso fax enviado a qualquer dia da semana, incluindo um domingo, do Cumbijã para Bissau e tudo estaria “nos conformes”, com a aprovação dos meninos do Cumbijã que, honra lhes seja feita, nunca ocultaram a face perante os muitos perigos que enfrentaram, ao contrário de outros…
Desculpas para o examinador, para os turras se alguma obusada lhes acertou e parabéns aos meus licenciados do Cumbijã, alguns dos quais ainda convivem nos almoços da nossa querida Companhia de Cavalaria 8351.
Vasco Augusto Rodrigues da Gama
Cap Mil da CCAV 8351
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em: