1. Mensagem de José Corceiro (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), com data de 15 de Fevereiro de 2010:Caros camaradas, Luís Graça, Carlos Vinhal, J. Magalhães.
É com simpatia e agrado que apresento esta simples dissertação, do nada que privei com o Sarg Cipriano, para “Postar” se assim o entenderem.
Apresento os meus agradecimentos.
Um Abraço
José Corceiro
RECORDAÇÕES DO SARGENTO CIPRIANO
Não vou fazer grande dissertação nem eloquência e elogios, porque não privei muito, nem fiz parte da esfera dos amigos íntimos do 2.º Sargento Cipriano Mendes Pereira, que era o enfermeiro quando eu fui para a CCAÇ 5. Não me sinto habilitado para ajuizar méritos, capacidades e valores da pessoa em causa, e a análise final que faria, seria em função da empatia, ou não, existente entre nós. Era de etnia Manjaco, natural de Empada, Guiné.
Tinha com ele um relacionamento cordial, óptimo, de duas pessoas civilizadas que algumas vezes foi para além do restritamente militar. Houve algumas confidências de índole privada de parte a parte, coisas de ocasião e é essa a razão que me apraz contar aqui alguns dos episódios que com ele vivenciei. Era pessoa que aparentava ser afável, de acesso fácil, expandia-se em riso com facilidade e contagiava a todos os que o rodeavam, com a sua hilaridade cativante. Mesmo nos momentos mais tensos, notava-se nele um semblante leve. No seu rosto, descortinava-se um meio sorriso enigmático, do género do manifesto no quadro do Leonardo da Vinci (em Mona Lisa).
Atenda-se, quando me refiro ao Sargento Cipriano e digo
com ar de gozação, não é em sentido depreciativo, mas conexo com humor e intuito de inflamar boa disposição aos que o circundam.
Quando o Sargento Cipriano me perguntou o meu nome, na primeira operação que fiz com ele para o mato, ainda estou a ver no seu rosto, o ar de gozo estampado no sorriso, realçado com a alvura dos dentes, contrastando com a cor púrpura da pele, consequência do diálogo havido!
- Como se chama o nosso militar? - Perguntou-me ele.
Eu respondi: - O meu nome é José Manuel Corceiro.
Ele em tom de gozação disse: - Ah! É da família do aviador?
Eu retorqui: - Não sou Couceiro, mas sim Corceiro, descendente do Corsário Francis Drake, Chefe dos Piratas dos Mares.
Ele respondeu em tom cordial, mas com golfada de riso: - Vai ter dificuldade em andar em terra?
Eu respondi: - Espero fazer uma boa rodagem, calma e tranquila…
Quando havia Operação para o mato, habitualmente o pessoal de enfermagem ficava junto, ou próximo, do pessoal de Transmissões, quando acampava para passar a noite, ou para descansar e comer a bucha, numa parte central do acampamento, muito próximo do Comandante da Operação. Sempre que a Operação era a nível de Companhia, mais de dois Pelotões a sair para o mato em simultâneo, por norma, (houve época que era regra), além do Cabo Enfermeiro ia o Sargento Enfermeiro. Nestas ocasiões, ficávamos próximos e às vezes falava-se um pouco de tudo, vulgaridades e ele gostava de conversar comigo.
Como em tempos já disse, o meu problema e principal inimigo na Guiné, foi a alimentação. Houve alturas que passei maus momentos. Recordo uns dias difíceis em que tudo o que comia ou bebia, vomitava imediatamente. Calor abrasador, estava com febre, não conseguia digerir nem os líquidos que bebia, tinha conhecimentos das consequências que poderiam advir deste meu estado de saúde, mais aflitiva se tornava a minha preocupação, pois estava a progredir para desidratação e podia evoluir e entrar em estado de choque. Não retinha os líquidos que ingeria, com a agravante que perdia os que expelia, nos vómitos e transpiração. Os sintomas eram evidentes: Anúria (falta de urina), fraqueza geral, dores de cabeça, perda de equilíbrio, taquicardia (ritmo cardíaco acelerado, o volume de sangue diminui no organismo por falta de água, o ritmo cardíaco tem que aumentar). Já me tinham administrado duas injecções, mas não era a mesinha adequada ao meu estado. Não podia assistir impávido ao desenrolar da situação, tinha que agir enquanto podia. Levantei-me da cama, no abrigo onde dormia e a cambalear consegui arranjar forças e fui falar com o Sargento Cipriano. Na altura, ainda não existia o espaço que se passou a chamar
Posto Clínico, havia simplesmente uma tabanca normal dentro do aquartelamento, onde eram atendidos os doentes, estavam os medicamentos e utensílios de saúde. Havia horários de atendimento.
O Sargento Cipriano, quando me viu chegar ao “
posto clínico”, dirige-se a mim com ar de gozo e diz-me: - Oh! Já temos homem, já temos aqui garanhão!
Eu respondi: - Meu Sargento, não goze comigo por favor, que eu estou muito mal, a continuar assim fico é raquítico, se não for pior, estou completamente exausto e debilitado, já dois dias que tudo o que como ou bebo vomito logo de seguida, o caso é sério estou-me a depauperar, tem que me arranjar um suplemento vitamínico, para me revigorar e fortalecer e parar estes vómitos, porque estou a ficar desnutrido e se não melhorar imediatamente, tem que me administrar soro, ou evacuar-me, pois eu sinto-me a definhar e estou a entrar em estado de desidratação. Agora, para agravar o quadro clínico, há pouco estive a vomitar, tossi e expeli sangue, desconfio que é hemoptise!
Quando eu disse a palavra hemoptise, olhou para mim de olhos arregalados e disse-me: - O que sabe o nosso Cabo sobre hemoptise? Aqui as decisões, quem as toma, em relação aos doentes, sou eu, não me venha para aqui a inventar casos!?
Eu disse-lhe: - Meu Sargento, não estou a inventar nada, tudo o que eu disse é a realidade, acho que o devo alertar para a minha sintomatologia, pois o meu quadro clínico é preocupante e o meu Sargento como responsável da área, deve agir em conformidade e não por em causa a minha palavra. Quanto a hemoptise, é um quadro clínico em que o doente expele sangue na expectoração quando tosse, proveniente das vias respiratórias, portanto é sangue normal e limpo, que é diferente do procedente do trato digestivo, onde os sucos gástricos através das enzimas actuam alterando a sua textura e aspecto.
Tivemos uma longa conversa de total abertura, onde falamos diversas coisas e o chamei à razão e lhe fiz ver, que eu não era a ovelha com ronha, nem ranhosa, que andava a ensaiar um golpe de teatro para ser evacuado, como eu me tinha já apercebido que pensavam. Muito longe da minha pessoa tal intenção, eu o que queria era saúde e força para executar a missão na qual estava incumbido, porque sou uma pessoa íntegra e leal.
Deu-me mais uma injecção, (não vi rótulo mas devia ser da família dos psicofármacos aos quais eu era adverso, fiquei logo com sonolência) deu-me um xarope, antiasténico (combater a fadiga, complexo vitamínico) e uma carteira de 10 unidades de Librium 5, que não tomei nenhum, achava que poderia haver um pouco de ansiedade, mas não era caso para me encharcar em comprimidos. O meu mal era fome. Passou-me uma baixa por três dias e disse-me para lá ir no dia seguinte.
No dia seguinte, o ritmo cardíaco estava um pouco melhor, vómitos diminuíram, as melhoras eram poucas, mas já era estimulante.
Lá fui novamente ao Sargento Cipriano, esteve-me a ver a tensão arterial, disse-me que estava bem melhor e que o meu mal era falta de cerveja. Aproveitei e pedi-lhe umas injecções de complexo B, (B1 B12).
Ele respondeu-me: - Querem lá ver o nosso Cabo só quer é dar trabalho ao pessoal de saúde!
Eu disse-lhe: - Trabalho não dou nenhum, porque eu mesmo aplico as injecções e tenho seringa e agulha só me falta meio para esterilizar.
Ele olhou para mim, com ar incrédulo, com sorriso malandro, que lhe era peculiar, (que alguns interpretavam como cínico) algo desconfiado e diz: - Essa agora, pago para ver sentado no camarote...!
Eu respondi-lhe: - O pagamento é tão só disponibilizar o material, que eu faço o resto.
Os objectos clínicos, eram esterilizados num tacho com água, que se punha a ferver nas antigas máquinas a petróleo. Tinha o material esterilizado, preparei a injecção e apliquei-a à vista dele e expliquei que só dava no glúteo direito. Tivemos ali mais uma grande conversa.
Acabou por me oferecer duas caixas de inox, próprias para andar com seringa e agulha esterilizadas, uma caixa com seringa de 5ml e a outra de 10ml, com duas agulhas cada. Foi um gesto de reconhecimento e gentileza da parte dele, e ainda hoje tenho esse material, só por valor estimativo, pois nunca o usei. Uma das caixas deve ser exclusivo militar, pois nunca vi à venda em lojas de material clínico.
Acedeu, a receitar-me 12 injecções B1 B12 (umas encarnadinhas). E mais, autorizou, sem ter autorizado (ficava entre nós) que quando quisesse, discretamente, logo que houvesse muito movimento de civis, no “
posto clínico”, podia ir dar uma ajuda sempre que estivesse disponível. Era um trabalho que muito me estimulava e para o qual me sentia potenciado. Por essa razão, fui sempre muito ligado ao pessoal de saúde, cada um em sua época, “Tó Mané”, Soares e Diniz que teve a infelicidade da mina lhe ceifar a juventude. Um destes dias falo do Diniz. A partir deste dia, não sei porquê, o Sargento Cipriano passou a tratar-me sempre por senhor Corceiro e não nosso cabo, como costumava, a moda ia pegando.
Em Canjadude, o Sargento Cipriano, era o responsável pela área da saúde, quer dos militares, quer dos civis. Tinha paralelamente incumbências no campo do ensino. Atendendo aos parcos recursos de que dispunha, quer a nível de material escolar, quer instalações e até formação para leccionar, agravados pelos limites de disponibilidade de tempo, que outras tarefas lhe absorviam, (até abriu um “
bazarzinho” na Tabanca, com artigos variados para vender aos civis) fazia na docência o que podia. As crianças ainda eram algumas, estive mais duma vez na escola durante a aula e dezenas de vezes, em momentos de lazer, pois podia-se entrar livremente, que não havia porta a obstruir a passagem. Para mim, a noção que ficou, é que o aproveitamento era mínimo, pois era um ensino descontinuado num meio de total analfabetismo, mas é de enaltecer o esforço e disponibilidade do Sargento Cipriano. Eram crianças humildes e submissas e o pouco que aprendessem, era sempre benéfico, ainda que merecessem muito mais.
O Sargento Cipriano tinha morança em Nova Lamego, onde vivia a esposa com os dois filhos. Era frequente, quando havia coluna de abastecimento de Canjadude, que eram amiudadas, ele ir ver a família. Numa coluna que fiz, a Nova Lamego, ao passar numa rua encontrei-me acidentalmente com ele e a esposa, que me foi apresentada, junto à residência deles. A senhora vi-a mais uma vez, ou duas, com os dois filhos.
Enquanto estive na Guiné, os meus pais mandavam-me mensalmente duas encomendas, quando não eram três, cada uma com o peso a rondar 5Kg, ao abrigo dum acordo entre Ministério do Ultramar e os CTT, que obedecia a determinados quesitos, que agora não lembro. O conteúdo das encomendas, era sempre muito uniforme, 2 ou 3 queijos, uns chouriços, umas carnes enlatadas Espanholas e às vezes uns bolos. Os chouriços e os queijos, tinham que ir muito bem besuntados com azeite e pimentão e acondicionados dentro de caixa, senão ganhavam logo bolor. Numa das vezes, que estava a petiscar na cantina com camaradas esses pitéus que tinha recebido dos meus pais, passou o Sargento Cipriano, fiz questão que provasse o queijo. Ele provou e disse que era divinal. Pudera, era queijo da Serra da Estrela. Ao receber nova encomenda, reservei um queijo e dei-o ao Sargento Cipriano, para provar com a família. Tínha-me ficado uma “
china” no sapato, pelo gesto lindo que teve em me dar as duas caixinhas de inox com as seringas, ainda que o valor material não fosse muito, era a acção em si e eu quis agradecer.
Passados uns dias, o Sargento Cipriano pediu-me para lhe tirar umas fotos, mas a intenção dele era outra. Levou-me ao depósito de bebidas e disse-me que escolhesse duas garrafas de whisky, que me queria dar uma por ele, outra pela esposa, que tinha ficado muito reconhecida pelo queijo. É lógico, que por muito que ele insistisse, não escolhi nenhuma garrafa. Mas passados dois ou três dias, ele vem com um embrulho e eu tive que aceitar, eram duas garrafas de whisky, uma Dimple, (garrafa triangular) e outra Monks (garrafa cerâmica) que ainda hoje tenho intactas juntamente com outras.
O Sargento Cipriano deixou a CCAÇ 5, deu outro rumo à vida e foi substituído por um Furriel Enfermeiro metropolitano, não tenho data precisa, mas creio ter sido meados 1970. No dia 15 para 16 de Novembro de 1970, Nova Lamego foi atacado pelo IN, o Sargento Cipriano estava na sua morança, no momento do ataque (não lembro se na altura ele fazia parte do Batalhão Militar de Nova Lamego, mas creio que não, embora pertencesse ao Exército), e durante o flagelo, que foi intenso, houve muitos mortos e feridos. O Sargento Cipriano, refugiou-se para se proteger com a família no quintal da morança, numa estrutura de madeira que tinha debaixo duma árvore, presumo que era uma mangueira. Uma “
roquetada” traiçoeira e certeira, caiu na árvore, ceifando a vida ao Sargento Cipriano e à mulher que morreram abraçados um ao outro; morreu também um dos filhos. Isto, tenho eu nos meus registos, mas há nuances de imprecisão (eu só conheci dois filhos, se um morreu, só pode ter ficado um, já me disseram que há dois filhos vivos. Será que tinha três filhos e eu só conhecia dois?). Nesta fatídica noite, eu não estava em Nova Lamego, mas estava lá sim um Pelotão da CCAÇ 5, que já uns meses largos era frequente haver rotatividade nos pelotões a deslocarem-se para outros destacamentos, nomeadamente Nova Lamego. Já quando da Operação Mar Verde, um Pelotão da CCAÇ 5, que eram nativos, esteve mais dum mês em Buruntuma, onde num ataque a esta localidade, em 03 de Agosto de 1970, foi ferido o 1.º Cabo, Viriato Augusto Gonçalves, de Transmissões.
Aqui ficou o meu testemunho, de algumas recordações que tenho do 2.º Sargento Cipriano, que em tempos foi Enfermeiro na CCAÇ 5, em Canjadude, a quem a guerra tirou a vida em 16/11/1970, com trinta e poucos anos de idade, deixando órfão de pai e mãe, um filho ou dois, ainda crianças.
O meu respeito e estima, ao 2.º Sargento Cipriano Medes Pereira e esposa, da qual não lembro o nome.
Para os tertulianos, um abraço e saúde para todos.
José Corceiro
Foto 1 > 2.º Sargento CiprianoFoto 2 > 2.º Sargento CiprianoFoto 3 > O 2.º Sargento Cipriano, no depósito de bebidas, a pedir-me que escolhesse uns whiskys.Foto 6 > “Posto Clínico” de Canjadude, vendo-se no lado direito, ligeiramente atrás, do “Posto Clínico”, a tabanca que servia de “Posto Clínico” antes. Foto 7 > Escola de Canjadude, crianças descalças, entrada livre para o recinto, nesta rua visível, logo a 30 metros começa a picada que levava ao Cheche.Foto 9 > A petiscar na cantina, pitéus que meus pais mandavam. Primeiro plano, dois periquitos de Nova Lamego de Transmissões, vieram fazer estágio a Canjadude, Corceiro é o segundo lado esquerdo, a seguir está o Silva e de pé com a faca de mato na mão, é o João Monteiro, o cantineiro.Foto 10 > A petiscar na cantina, primeiro plano, Pinto, Corceiro, Dias Atirador, Rogério, Viriato Gonçalves, Marques Mecânico, e de pé, atrás, Nora, só dois não eram de TransmissõesFoto 11 > Corceiro em cima do abrigo onde dormia a beber uma cerveja.Foto 12 > Dentro do abrigo Norte, onde dormíamos, a petiscar com amigos, não me atrevo a dizer os nomes, com receio de errar.
Fotos: © José Corceiro (2010). Direitos reservados. __________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 8 de Fevereiro de 2010 >
Guiné 63/74 - P5782: José Corceiro na CCAÇ 5 (3): A primeira saída para o mato (2ª parte)