1. Mensagem de Bernardino Rodrigues Parreira*, ex-Fur Mil da CCAV 3365/BCAV 3846 e CCAÇ 16, S. Domingos e Bachile, 1971/73, com data de 19 de Agosto de 2010:
Caros camaradas
Chamo-me Bernardino Rodrigues Parreira, nasci a 10 de Janeiro de 1949, em Portimão, mas resido em Faro desde criança. Como quase todos os jovens da minha geração, fui obrigado a prestar o serviço militar e a participar na guerra colonial.
Na vida profissional, trabalhei no sector automóvel, cerca de 40 anos, e encontro-me na situação de reformado.
Já há algum tempo que efectuei uma breve apresentação e, a partir daí, foram-me franqueadas as portas desta Grande Tabanca, mas ainda não tinha correspondido ao convite feito pelo camarada Luis Graça, e estou agora a fazê-lo como mandam as regras da praxe.
Para o efeito, envio algumas fotografias.
Eis o resumo da minha vida militar:
Assentei praça no CISMI em Tavira a 06 de Abril de 1970, onde fiz a recruta e tirei a especialidade, tendo aí permanecido até Dezembro de 1970 como instrutor dos novos recrutas.
A 6 de Dezembro de 1970, após a minha mobilização para a Guiné, apresentei-me no Regimento de Cavalaria 3, em Estremoz, com vista a formar Batalhão.
A 3 de Abril de 1971 embarquei no Navio Angra do Heroísmo com destino à Guiné, como Furriel Miliciano, integrando a CCAV 3365, do BCAV 3846.
Desembarquei em Bissau a 9 de Abril de 1971, e fui transportado para o Cumeré onde tirei o IAO. Ali ouvi pela primeira vez a guerra de perto, porque a poucos quilómetros foram atacadas pelo PAIGC as estações emissoras de Nhacra.
Chegada da CCAV 3365 ao Cais S. Domingos
Foto: © Plácido Teixeira (2010). Todos os direitos reservados
A CCAV 3365 foi colocada em S. Domingos, Norte da Guiné, a cerca de 4,5 km da fronteira com o Senegal, e desembarcámos no Cais de S. Domingos na manhã de 13 de Maio de 1971, onde éramos aguardados por elementos da CCAV 2539, que fomos render.
Depressa me adaptei ao meio e às circunstâncias..., tendo como principal objectivo a minha sobrevivência e a dos meus companheiros.
Fomos alertados desde a nossa chegada de que a situação em S. Domingos era muito perigosa, e que a sede do Batalhão, que até ao ano anterior havia estado ali sediada, tinha sido transferida para Ingoré por ser local mais seguro.
No início, a vida no aquartelamento aparentava calma e alguma normalidade, quando não estávamos de serviço, ocupávamos os tempos livres a jogar à bola, a fazer petiscos e a desfrutar do convívio na Tabanca. Mas, ao fim de pouco tempo as coisas agravaram-se, e o aquartelamento passou a ser constantemente flagelado com bombardeamentos vindos do Senegal, de inicio só atacavam de madrugada, não acertando nas instalações. Quando acertaram a primeira vez no alvo, já era raro falharem. Passámos a ser atacados de dia e de noite, e tinhamos que nos refugiar nos abrigos.
Já não sabiamos onde estávamos mais seguros, se no quartel se no mato.
Os acidentes com minas foram uma constante desde o início, o primeiro ocorreu com o meu camarada e amigo Nunes, da Trafaria, que teve de ser evacuado devido a ferimentos graves. Em quase todas as saídas para o mato havia vítimas por explosão de minas, sendo os camaradas do Pelotão 60, os milícias, chamados "picadores", os mais atingidos.
Eu e o 1.º Cabo Daniel Santos em S. Domingos
Por volta de Março/ Abril de 1972 intensificaram-se as flagelações ao aquartelamento de S. Domingos, já eu não me encontrava lá, mas existem fotografias que ilustram o grau de destruição. Soube-se que nessa sequência o Governador da Guiné, General António de Spínola, deslocou-se a S. Domingos para se inteirar da situação e rever a estratégia militar naquela zona.
O acidente mais grave que presenciei, que perdurará para sempre na minha memória, com grande mágoa, foi o que ocorreu com o Alferes Abel Fortuna, do meu Pelotão, excelente comandante e excelente pessoa , hoje dirigente da ADFA. Cerca de 6 meses após a nossa chegada a S. Domingos, numa saída do nosso Pelotão para o mato foi detectada uma mina e, como habitualmente, seria o nosso Alferes que a desmontava, só que a mesma, supostamente, estava armadilhada e quando o referido oficial procedia à sua desmontagem esta explodiu-lhe nas mãos, ferindo-o gravemente.
O pelotão ficou desmoralizado. Já tinha havido muitas evacuações de companheiros nossos por ferimentos com minas, por emboscadas, por bombardeamentos, mas nada tão grave.
O poderio militar do PAIGC acentuava a sua supremacia de dia para dia, naquela zona. Os aviões tinham deixado de aterrar em S. Domingos, o saco com o correio era atirado do ar. Sentiamo-nos desprotegidos e desamparados.
Não sei precisar a data, julgo ter sido no primeiro trimestre de 1972, recebi o que considero ser uma boa notícia, fui destacado para uma companhia africana, a CCAÇ 16, sediada em Bachile, em rendição individual. Fui, previamente, fazer o respectivo estágio de adaptação em Bolama, e julgo que devo ter chegado a Bachile por volta de Fevereiro de 1972 . Tenho por base nestes cálculos o facto de o meu camarada 1.º Cabo Upá Gomes, que era do meu Pelotão, ter falecido em Abril de 1972 e de eu ter estado algum tempo com ele em Bachile.
Quando saí de S. Domingos senti-me aliviado, e pensava que se tinha conseguido sobreviver àquele inferno também sobreviria o resto da comissão. Mas parti com muita saudade e preocupação pelos meus camaradas e amigos da CCAV 3365 e do Pelotão 60, que lá ficaram, a ferro e fogo. Fomos uma família muito unida nos bons e maus momentos.
Quando cheguei ao Quartel de Bachile, já noite, fui informado pelos camaradas da CCAÇ 16 de que deveria "alinhar na madrugada seguinte para o mato", mesmo antes da minha apresentação, para "evitar problemas com o Capitão".
Assim fiz, consegui que me fornecessem uma arma e o restante material e lá parti de madrugada com um Pelotão de militares africanos, neste caso manjacos.
Eu e os meus amiguinhos no Poço da Tabanca em Churobrique - Bachile
Mais uma vez, a minha integração foi fácil, ao fim de pouco tempo conhecia todos os camaradas africanos e metropolitanos, e parecia ter sido adoptado por uma nova família.
O ambiente entre os militares era bom, tal como o que havia deixado em S. Domingos. Nos tempos livres, o que eu mais gostava de fazer era jogar à bola e depressa me integrei numa equipa de futebol, de maioria africana. Disputámos o torneio de futebol entre companhias militares pertencentes à CAOP 1, entre 1972/1973.
A Guerra aqui era outra, apesar de termos o IN próximo, na mata da Caboiana, o que é certo é que não sentiamos a sua "pressão" como em S. Domingos.
Sempre estranhei a inexistência de valas e abrigos no Quartel de Bachile, mas ninguém me soube explicar a razão de tão pouca protecção.
Enquanto lá estive, só me lembro de um forte ataque ao quartel, à hora do jantar, em que grande parte da companhia estava no refeitório. Não havendo valas nem abrigos, abrigámo-nos atrás de bidons e de paredes.
Encontrei em Bachile alguns amigos algarvios, em especial os meus conterrâneos Fur. Mil. José Romão, Fur. Mil. Ricardo Pereira, e o Alferes João Barrote.
Além de patrulhamentos diários e emboscadas, na mata dos Madeiros e da Caboiana, participei em inúmeras operações com tropas especiais, entre as quais os Comandos Africanos do grupo do Marcelino da Mata, que era um excelente militar.
Atravessámos situações dramáticas de guerra com o PAIGC e com as forças da natureza, temporais medonhos onde camaradas foram calcinados por raios.
Num patrulhamento do meu Pelotão, comandado pelo Alferes Barrote, que era um grande amigo e excelente militar, entrámos num campo de minas do Pelundo, tendo o referido oficial sofrido um grave acidente que lhe resultou na amputação de um pé. Sem nunca perder a consciência, o Alferes Barrote teve o "sangue frio" de nos pedir que não saíssemos das posições que ocupavamos até chegarem os militares do Pelundo que conheciam a sinalização daquele campo minado, e transmitia-nos força e coragem desvalorizando os seus ferimentos e o seu sofrimento.
Tal como aconteceu em S. Domingos, o Alferes não foi substituido, e o pelotão ficou a ser comandado pelos furriéis até ao fim da comissão.
Durante os 2 anos que permaneci na Guiné tomei consciência de que aquela guerra não era nossa, e que aquele bom povo merecia ser dono da sua própria Pátria.
Finda a comissão, regressei à Metrópole no dia 17 de Março de 1973.
Mas, passados 37 anos do meu regresso, ainda continuo à espera de ver a plenitude da Democracia e Desenvolvimento naquele País.
Dos guineenses com quem convivi, felupes e manjacos, militares e civis, guardo as melhores recordações, e considerá-los-ei para sempre meus amigos e meus irmãos.
Gostaria de voltar a pisar aquele chão vermelho e abraçar os meus amigos ou os seus descendentes.
Não posso deixar de enaltecer o contributo extraordinário que este Blogue está a dar para a preservação das memórias dos ex-combatentes da Guerra Colonial na Guiné, e da História dos dois Países.
Foi através desta Tabanca que reencontrei grandes amigos como o Plácido Teixeira, do meu tempo de S. Domingos, o José Romão e o António Branco de Bachile. E, como um amigo traz outro amigo também, já somos um grupo que se rencontrou passados dezenas de anos.
Encontrei, ainda, o que considero ser já um novo grande amigo o camarada Manuel Seleiro.
A descoberta do ex-1.º Cabo Manuel Seleiro, deve-se a um posting do ex-Alferes Hugo Guerra, neste Blogue, que me sensibilizou, por ter sido gravemente ferido, no ano anterior à minha chegada, em S. Domingos. Contactei o camarada Manuel Seleiro através do seu Blogue "Pelotão 60" e recordámos o chão que pisámos, os mergulhos que demos no Rio S. Domingos, as tabancas, as matas, as picadas, os trilhos, as bolanhas, tanta coisa..., e constatei que o mesmo foi vítima de um acidente idêntico ao sofrido pelo meu Alferes em S. Domingos, quiçá, no mesmo trilho, ou muito próximo, e ficou deficientado com o mesmo tipo de lesões.
Ao ler e ouvir o relato do camarada Manuel Seleiro, foi como se estivesse a rever o mesmo filme de terror passados 39 anos. Mas fico estupefacto com a calma, a tranquilidade, e a resignação que este camarada nos transmite, depois de tantos anos de luta pela recuperação e pela sobrevivência.
Considero que os Deficientes das Forças Armadas são os verdadeiros heróis sobrevivos da guerra colonial que, no meio da adversidade, lutaram com as forças que lhes restavam pela sua recuperação e integração na sociedade. Se a Guerra em África foi árdua, julgo que a guerra travada pela defesa e consagração dos seus direitos não tem sido menos penosa. A Pátria em nome da qual lutaram e ficaram deficientados não tem sabido honrar e ressarcir estes seus filhos do mal que lhes causou.
Por último, presto a minha sentida homenagem a todos os meus companheiros militares mortos naquela guerra e curvo-me perante a sua memória.
Um fraterno abraço para os editores e para todos os camaradas
Bernardino Parreira
Ex-Fur Mil
CCAV 3365 - S. Domingos 1971/1972
CCAÇ 16 - Bachile - 1972/1973
2. Comentário de CV:
Caro Bernardino Parreira
Bem-vindo à Tabanca Grande e ao convívio dos teus camaradas ex-combatentes da Guiné, onde encontrarás pelo menos, o Luís Fonseca e o Delfim Rodrigues da CCAV 3366, Companhia igualmente pertencente ao teu Batalhão.
O nosso camarada
Luís Fonseca tem uma série dedicada aos Felupes, seus usos e costumes que representa um documento importante do nosso Blogue.
Voltando a ti, obrigado por te juntares a nós. Esperamos que contribuas com as tuas memórias (histórias e fotografias) que conservas desde o teu regresso, sem suspeitares que um dia iam fazer parte do espólio de uma guerra, pela qual toda a nossa geração passou. Temos já pouco tempo à nossa frente e fazemos parte de um grupo etário um pouco arredado da informática, mas com a ajuda dos filhos, netos, amigos e outros camaradas, podemos e devemos dar a nossa contribuição para que não sejamos esquecidos.
Embora tenhas já participação no Blogue, só agora ficas apresentado à tertúlia. Instala-te, porque estás entre amigos.
Recebe um abraço de boas-vindas dos teus camaradas e dos nossos amigos tertulianos, que ligados de alguma forma à Guiné de ontem ou de hoje, fazem parte do nosso Blogue.
O teu novo amigo e camarada
Carlos Vinhal
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Notas de CV:
(*) Vd. postes de:
29 de Abril de 2010 >
Guiné 63/74 - P6277: O Spínola que eu conheci (15): Muito obrigado pelas palavras que proferiu em S. Domingos (Bernardino Parreira / Plácido Teixeira)
3 de Maio de 2010 >
Guiné 63/74 - P6304: Ser solidário (67): Maria Buinen e Rosa Mota 'correm' pelo Projecto Viva (água para 85 mil pessoas na Região de S. Domingos) (Bernardino Parreira, CCAV 3365, 1971/73)
e
17 de Junho de 2010 >
Guiné 63/74 - P6610: Em busca de... (136): Procuro qualquer contacto do Bernardino Parreira, ex-Fur Mil da CCAV 3365/BCAV 3846, S. Domingos e Bachile
Vd. último poste da série de 3 de Agosto de 2010 >
Guiné 63/74 - P6820: Tabanca Grande (235): António Inverno, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da 1.ª e 2.ª Companhias do BART 6522 e Pel Caç Nat 60 – S. Domingos - 1972/74