sábado, 21 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6878: Memória dos lugares (94): No DFE 21, em Cacheu, nunca existiu num posto da PIDE nem nunca nenhum agente da PIDE lá pôs os pés, pelo menos no meu tempo (Zeca Macedo)

1. Mensagem do nosso camarada Zeca Macedo, que foi segundo tenente  Fuzileiro Especial no DFE 21 (Cacheu e Bolama, 1973/74), e que hoje é advogado nos EUA, para onde imigrou em 1977.

Data: 21 de Agosto de 2010 16:51
Assunto: Artigo do Inverno-Episódio insólito em São Domingos (*)

Luís: Tentei enviar esta mensagem usando os comentários no fim do artigo; infelizmente, não o consegui fazer. Aqui vai.
Acabei de ler a estória do António Inverno sobre o indivíduo que tinha algo para contar ao agente da Pide. A determinda altura o Inverno diz que "o posto da PIDE mais próximo funcionava no destacamento de fuzileiros do Cacheu, situado na margem sul do rio com o mesmo nome, ou seja do lado oposto onde nos encontrávamos."

O destacamento de fuzileiro que se encontrava estacionado no Cacheu era o meu DFE 21 e lá não "funcionava" nenhum posto da PIDE. Havia sim, em Vila Cacheu, um posto da Pide, com sede próxima, perto dos Correios e da casa do Administrador. E mais, o agente nunca pôs os pés nas instalações do DFE 21 enquanto lá estive.

Um abraço amigo

Jose J. Macedo,
Segundo Tenente FZ
DFE21
_______________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 21 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 – P6877: Estórias avulsas (92): Episódio insólito (António Inverno)

Guiné 63/74 – P6877: Estórias avulsas (39): Episódio insólito (António Inverno)

1. O nosso Camarada António Inverno (ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da 1.ª e 2.ª CARTs do BART 6522 e Pel Caç Nat 60 – S. Domingos -, 1972/74, enviou-nos a sua segunda mensagem, narrando-nos um episódio que, tendo acontecido junto à fronteira como Senegal, nãoé de estranhar, mas é muito curiosa:



Episódio insólito em São Domingos



Eu junto ao edifício do comando em S. Domingos


Vou contar uma estória que não se tornou muito relevante porque tudo correu bem, pese embora o facto de ter tido reunidos todos os ingredientes para correr mal e, também, porque me parece um acontecimento que dadas as suas invulgares características sempre o achei pouco vulgar.



São Domingos, meados de 1973, ao cair da noite foi dado o alarme pela sentinela que estava de guarda na torre de vigia virada para Norte, que detectara um vulto vindo do Senegal. Era com certeza um homem com muita sorte pois o nosso sentinela não desatou logo aos tiros sobre ele, o que seria considerado normal, dado que de onde ele vinha e àquela hora só era habitual movimentos quer das NT, quer do IN.



Ora como naquela altura não andava qualquer militar nosso fora do quartel a probabilidade que restava era a de ser um inimigo. Mas não, era um africano e só falava francês, transmitindo-nos que queria falar com o comandante do nosso aquartelamento.



Levaram-no à presença do Capitão e, já na sua presença, o africano exigiu que o levassem imediatamente à PIDE.



Não sem bem porquê mas logo previ que aquela “encomenda” também ia sobrar para mim.




Em Susana, oficial de dia à companhia, por altura da visita do General Bettencourt Rodrigues, que tinha substituído o Gen. Spínola, no CEME do CTIG.



Como o posto da PIDE mais próximo funcionava na vila do Cacheu (*), onde se encontrava localizado um destacamento de fuzileiros, situado na margem sul do rio com o mesmo nome, ou seja do lado oposto onde nos encontrávamos, olhei para o Capitão e disse-lhe que fazer a travessia àquela hora e já noite caída, num bote com um motor mercury de 50 C.V. a fazer um “cagaçal” enorme, para além de perigoso, não era lá muito boa ideia visto que a malta do P.A.I.G.C. também frequentava as margens daquele rio e, portanto, era melhor esperar pela manhã do dia seguinte.



Só que o africano afirmou que, o que ele queria transmitir, só o faria na PIDE e queria fazê-lo de imediato, porque se assim não fosse o Capitão assumiria toda a responsabilidade das consequências.



Sendo assim, para não haver problemas, tinha que se levar o homem à PIDE e lá preparamos o bote (vulgo Zebro do tipo do que os fuzileiros usavam).



Tal como eu previa lá me tocou a mim o frete, pelo que me enfiei na pequena embarcação com o africano, um homem a zelar pelo funcionamento do motor e outros dois que escolhi ao acaso, preenchendo a lotação.



Lá fomos rio abaixo e à chegada à entrada do rio Cacheu, deparamos com a maré no seu máximo, ou estava a acabar de encher, ou estava a começar a vazar, para quem conhece este curso de água deve lembrar-se daquela ondulação pequena mas picada.



Era nossa ideia fazer a travessia o mais rapidamente possível e então metemos “prego a fundo”, a dado momento comecei a notar que a proa do barco, de um dos lados, estava a querer enrolar, uma das longarinas de madeira que esticam o barco começou a querer sair do sítio, apesar do estrado de madeira que assenta no fundo, provavelmente devido á trepidação provocada pela ondulação ou por ter ficado mal montada na altura da insufulação do ar.



Fomos obrigados a reduzir a velocidade e lá fomos aguentando a peça de madeira a golpes de pontapé até chegarmos ao destino.



Entreguei o africano na PIDE, o que ele lá foi dizer ficou no segredo dos deuses, nunca cheguei a saber o que ele queria da PIDE nem nunca mais ouvi falar dele.



Obviamente que não regressamos de imediato, pernoitamos no destacamento dos fuzileiros e regressamos na manhã seguinte.



Tal como disse no início, este acontecimento não teve nada de transcendente, decidi dar-vos a conhecê-la porque em minha opinião pessoal vale pelo seu cariz insólito.




Junto ao posto de transmissões em S. Domingos



(*) O posto da PIDE encontrava-se na Vila do Cacheu e não no destacamento de fuzileiros, como por lapso eu indicara no texto original. Registo aqui o meu melhor agradecimento pela prestável e correcta indicação no comentário ao corrente poste, ao camarada Zeca Macedo, (ex-2º Tenente Fuzileiro Especial no DFE 21 em Cacheu e Bolama, 1973/74).


António Inverno Alf Mil Op Esp/RANGER 1.ª e 2.ª Companhias do BART 6522 e Pel Caç Nat 60 Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2010). Direitos reservados. Fotos: © António Inverno (2010). Direitos reservados. _____________ Nota de M.R.: Vd. último poste desta série em:


13 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 – P6849: Estórias avulsas (91): Sexta-feira, dia 13 de Agosto de 1971, em Mansabá (Carlos Vinhal)

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6876: (Ex)citações (94): A maioria silenciosa do nosso blogue (Carlos Nery)

1. Comentário do Carlos Nery (ex-Cap Mil, Cmdt da CAÇ 2382, Buba, 1968/70, foto à esquerda, sentado, no dia da distribuição do patacão) ao poste P6869 (*):

Semana passada, ali num daqueles restaurantes do Largo de Carnide, ao pé do coreto, [em Lisboa,] ouço exclamar:
- Luís Graça & Camaradas da Guiné!

Era comigo, um amigo que não via já há uns anos, o Duarte Silva. Estudioso das coisas da Guiné, com obra publicada, conhece e lê o blogue mas, ao que julgo, não participa nele. Tive então a sensação de que, para além das "caras conhecidas", somos acompanhados por uma "maioria silenciosa", (expressão que uso num sentido diferente daquele que é usado, muitas vezes, em política, para invocar apoios que não se sabe se existem), maioria essa que devemos ter também em consideração.

Não adivinho o futuro mas daqui a umas dezenas de anos, quando já não estiver cá nenhum de nós, toda esta amálgama de testemunhos vai continuar a ser objecto de consulta, imagino.(Certamente estão tomadas as necessárias medidas de segurança deste material).

Em conclusão, penso que nos estamos a dirigir a um auditório muito vasto, no espaço e no tempo, de que nós, os que trocamos ideias uns com os outros, somos apenas a parte visível de um vasto icebergue...

Um grande abraço, Belo! Também eu, um pouco mais velho do que tu, gostaria de experimentar esse convívio na Lapónia! Mas a gente gosta de tanta coisa! O pior é o síndroma do DNA ("data de nascimento antiga", expressão mais elegante do que o estafado PDI)...
___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 19 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6869: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (26): Portugueses na Lapónia... sem distress (José Belo)

Guiné 63/74 - P6875: Tabanca Grande (236): Bernardino Rodrigues Parreira, ex-Fur Mil da CCAV 3365/BCAV 3846 e CCAÇ 16 (S. Domingos e Bachile, 1971/73)

1. Mensagem de Bernardino Rodrigues Parreira*, ex-Fur Mil da CCAV 3365/BCAV 3846 e CCAÇ 16, S. Domingos e Bachile, 1971/73, com data de 19 de Agosto de 2010:

Caros camaradas
Chamo-me Bernardino Rodrigues Parreira, nasci a 10 de Janeiro de 1949, em Portimão, mas resido em Faro desde criança. Como quase todos os jovens da minha geração, fui obrigado a prestar o serviço militar e a participar na guerra colonial.

Na vida profissional, trabalhei no sector automóvel, cerca de 40 anos, e encontro-me na situação de reformado.

Já há algum tempo que efectuei uma breve apresentação e, a partir daí, foram-me franqueadas as portas desta Grande Tabanca, mas ainda não tinha correspondido ao convite feito pelo camarada Luis Graça, e estou agora a fazê-lo como mandam as regras da praxe.
Para o efeito, envio algumas fotografias.

Eis o resumo da minha vida militar:

Assentei praça no CISMI em Tavira a 06 de Abril de 1970, onde fiz a recruta e tirei a especialidade, tendo aí permanecido até Dezembro de 1970 como instrutor dos novos recrutas.

A 6 de Dezembro de 1970, após a minha mobilização para a Guiné, apresentei-me no Regimento de Cavalaria 3, em Estremoz, com vista a formar Batalhão.
A 3 de Abril de 1971 embarquei no Navio Angra do Heroísmo com destino à Guiné, como Furriel Miliciano, integrando a CCAV 3365, do BCAV 3846.
Desembarquei em Bissau a 9 de Abril de 1971, e fui transportado para o Cumeré onde tirei o IAO. Ali ouvi pela primeira vez a guerra de perto, porque a poucos quilómetros foram atacadas pelo PAIGC as estações emissoras de Nhacra.

Chegada da CCAV 3365 ao Cais S. Domingos
Foto: © Plácido Teixeira (2010). Todos os direitos reservados

A CCAV 3365 foi colocada em S. Domingos, Norte da Guiné, a cerca de 4,5 km da fronteira com o Senegal, e desembarcámos no Cais de S. Domingos na manhã de 13 de Maio de 1971, onde éramos aguardados por elementos da CCAV 2539, que fomos render.

Depressa me adaptei ao meio e às circunstâncias..., tendo como principal objectivo a minha sobrevivência e a dos meus companheiros.

Fomos alertados desde a nossa chegada de que a situação em S. Domingos era muito perigosa, e que a sede do Batalhão, que até ao ano anterior havia estado ali sediada, tinha sido transferida para Ingoré por ser local mais seguro.
No início, a vida no aquartelamento aparentava calma e alguma normalidade, quando não estávamos de serviço, ocupávamos os tempos livres a jogar à bola, a fazer petiscos e a desfrutar do convívio na Tabanca. Mas, ao fim de pouco tempo as coisas agravaram-se, e o aquartelamento passou a ser constantemente flagelado com bombardeamentos vindos do Senegal, de inicio só atacavam de madrugada, não acertando nas instalações. Quando acertaram a primeira vez no alvo, já era raro falharem. Passámos a ser atacados de dia e de noite, e tinhamos que nos refugiar nos abrigos.
Já não sabiamos onde estávamos mais seguros, se no quartel se no mato.

Os acidentes com minas foram uma constante desde o início, o primeiro ocorreu com o meu camarada e amigo Nunes, da Trafaria, que teve de ser evacuado devido a ferimentos graves. Em quase todas as saídas para o mato havia vítimas por explosão de minas, sendo os camaradas do Pelotão 60, os milícias, chamados "picadores", os mais atingidos.

Eu e o 1.º Cabo Daniel Santos em S. Domingos

Por volta de Março/ Abril de 1972 intensificaram-se as flagelações ao aquartelamento de S. Domingos, já eu não me encontrava lá, mas existem fotografias que ilustram o grau de destruição. Soube-se que nessa sequência o Governador da Guiné, General António de Spínola, deslocou-se a S. Domingos para se inteirar da situação e rever a estratégia militar naquela zona.

O acidente mais grave que presenciei, que perdurará para sempre na minha memória, com grande mágoa, foi o que ocorreu com o Alferes Abel Fortuna, do meu Pelotão, excelente comandante e excelente pessoa , hoje dirigente da ADFA. Cerca de 6 meses após a nossa chegada a S. Domingos, numa saída do nosso Pelotão para o mato foi detectada uma mina e, como habitualmente, seria o nosso Alferes que a desmontava, só que a mesma, supostamente, estava armadilhada e quando o referido oficial procedia à sua desmontagem esta explodiu-lhe nas mãos, ferindo-o gravemente.
O pelotão ficou desmoralizado. Já tinha havido muitas evacuações de companheiros nossos por ferimentos com minas, por emboscadas, por bombardeamentos, mas nada tão grave.

O poderio militar do PAIGC acentuava a sua supremacia de dia para dia, naquela zona. Os aviões tinham deixado de aterrar em S. Domingos, o saco com o correio era atirado do ar. Sentiamo-nos desprotegidos e desamparados.

Não sei precisar a data, julgo ter sido no primeiro trimestre de 1972, recebi o que considero ser uma boa notícia, fui destacado para uma companhia africana, a CCAÇ 16, sediada em Bachile, em rendição individual. Fui, previamente, fazer o respectivo estágio de adaptação em Bolama, e julgo que devo ter chegado a Bachile por volta de Fevereiro de 1972 . Tenho por base nestes cálculos o facto de o meu camarada 1.º Cabo Upá Gomes, que era do meu Pelotão, ter falecido em Abril de 1972 e de eu ter estado algum tempo com ele em Bachile.
Quando saí de S. Domingos senti-me aliviado, e pensava que se tinha conseguido sobreviver àquele inferno também sobreviria o resto da comissão. Mas parti com muita saudade e preocupação pelos meus camaradas e amigos da CCAV 3365 e do Pelotão 60, que lá ficaram, a ferro e fogo. Fomos uma família muito unida nos bons e maus momentos.

Quando cheguei ao Quartel de Bachile, já noite, fui informado pelos camaradas da CCAÇ 16 de que deveria "alinhar na madrugada seguinte para o mato", mesmo antes da minha apresentação, para "evitar problemas com o Capitão".
Assim fiz, consegui que me fornecessem uma arma e o restante material e lá parti de madrugada com um Pelotão de militares africanos, neste caso manjacos.

Eu e os meus amiguinhos no Poço da Tabanca em Churobrique - Bachile

Mais uma vez, a minha integração foi fácil, ao fim de pouco tempo conhecia todos os camaradas africanos e metropolitanos, e parecia ter sido adoptado por uma nova família.
O ambiente entre os militares era bom, tal como o que havia deixado em S. Domingos. Nos tempos livres, o que eu mais gostava de fazer era jogar à bola e depressa me integrei numa equipa de futebol, de maioria africana. Disputámos o torneio de futebol entre companhias militares pertencentes à CAOP 1, entre 1972/1973.

A Guerra aqui era outra, apesar de termos o IN próximo, na mata da Caboiana, o que é certo é que não sentiamos a sua "pressão" como em S. Domingos.
Sempre estranhei a inexistência de valas e abrigos no Quartel de Bachile, mas ninguém me soube explicar a razão de tão pouca protecção.
Enquanto lá estive, só me lembro de um forte ataque ao quartel, à hora do jantar, em que grande parte da companhia estava no refeitório. Não havendo valas nem abrigos, abrigámo-nos atrás de bidons e de paredes.

Encontrei em Bachile alguns amigos algarvios, em especial os meus conterrâneos Fur. Mil. José Romão, Fur. Mil. Ricardo Pereira, e o Alferes João Barrote.

Além de patrulhamentos diários e emboscadas, na mata dos Madeiros e da Caboiana, participei em inúmeras operações com tropas especiais, entre as quais os Comandos Africanos do grupo do Marcelino da Mata, que era um excelente militar.
Atravessámos situações dramáticas de guerra com o PAIGC e com as forças da natureza, temporais medonhos onde camaradas foram calcinados por raios.

Num patrulhamento do meu Pelotão, comandado pelo Alferes Barrote, que era um grande amigo e excelente militar, entrámos num campo de minas do Pelundo, tendo o referido oficial sofrido um grave acidente que lhe resultou na amputação de um pé. Sem nunca perder a consciência, o Alferes Barrote teve o "sangue frio" de nos pedir que não saíssemos das posições que ocupavamos até chegarem os militares do Pelundo que conheciam a sinalização daquele campo minado, e transmitia-nos força e coragem desvalorizando os seus ferimentos e o seu sofrimento.

Tal como aconteceu em S. Domingos, o Alferes não foi substituido, e o pelotão ficou a ser comandado pelos furriéis até ao fim da comissão.

Durante os 2 anos que permaneci na Guiné tomei consciência de que aquela guerra não era nossa, e que aquele bom povo merecia ser dono da sua própria Pátria.

Finda a comissão, regressei à Metrópole no dia 17 de Março de 1973.

Mas, passados 37 anos do meu regresso, ainda continuo à espera de ver a plenitude da Democracia e Desenvolvimento naquele País.

Dos guineenses com quem convivi, felupes e manjacos, militares e civis, guardo as melhores recordações, e considerá-los-ei para sempre meus amigos e meus irmãos.

Gostaria de voltar a pisar aquele chão vermelho e abraçar os meus amigos ou os seus descendentes.

Não posso deixar de enaltecer o contributo extraordinário que este Blogue está a dar para a preservação das memórias dos ex-combatentes da Guerra Colonial na Guiné, e da História dos dois Países.

Foi através desta Tabanca que reencontrei grandes amigos como o Plácido Teixeira, do meu tempo de S. Domingos, o José Romão e o António Branco de Bachile. E, como um amigo traz outro amigo também, já somos um grupo que se rencontrou passados dezenas de anos.

Encontrei, ainda, o que considero ser já um novo grande amigo o camarada Manuel Seleiro.
A descoberta do ex-1.º Cabo Manuel Seleiro, deve-se a um posting do ex-Alferes Hugo Guerra, neste Blogue, que me sensibilizou, por ter sido gravemente ferido, no ano anterior à minha chegada, em S. Domingos. Contactei o camarada Manuel Seleiro através do seu Blogue "Pelotão 60" e recordámos o chão que pisámos, os mergulhos que demos no Rio S. Domingos, as tabancas, as matas, as picadas, os trilhos, as bolanhas, tanta coisa..., e constatei que o mesmo foi vítima de um acidente idêntico ao sofrido pelo meu Alferes em S. Domingos, quiçá, no mesmo trilho, ou muito próximo, e ficou deficientado com o mesmo tipo de lesões.
Ao ler e ouvir o relato do camarada Manuel Seleiro, foi como se estivesse a rever o mesmo filme de terror passados 39 anos. Mas fico estupefacto com a calma, a tranquilidade, e a resignação que este camarada nos transmite, depois de tantos anos de luta pela recuperação e pela sobrevivência.

Considero que os Deficientes das Forças Armadas são os verdadeiros heróis sobrevivos da guerra colonial que, no meio da adversidade, lutaram com as forças que lhes restavam pela sua recuperação e integração na sociedade. Se a Guerra em África foi árdua, julgo que a guerra travada pela defesa e consagração dos seus direitos não tem sido menos penosa. A Pátria em nome da qual lutaram e ficaram deficientados não tem sabido honrar e ressarcir estes seus filhos do mal que lhes causou.

Por último, presto a minha sentida homenagem a todos os meus companheiros militares mortos naquela guerra e curvo-me perante a sua memória.

Um fraterno abraço para os editores e para todos os camaradas
Bernardino Parreira
Ex-Fur Mil
CCAV 3365 - S. Domingos 1971/1972
CCAÇ 16 - Bachile - 1972/1973


2. Comentário de CV:

Caro Bernardino Parreira
Bem-vindo à Tabanca Grande e ao convívio dos teus camaradas ex-combatentes da Guiné, onde encontrarás pelo menos, o Luís Fonseca e o Delfim Rodrigues da CCAV 3366, Companhia igualmente pertencente ao teu Batalhão.

O nosso camarada Luís Fonseca tem uma série dedicada aos Felupes, seus usos e costumes que representa um documento importante do nosso Blogue.

Voltando a ti, obrigado por te juntares a nós. Esperamos que contribuas com as tuas memórias (histórias e fotografias) que conservas desde o teu regresso, sem suspeitares que um dia iam fazer parte do espólio de uma guerra, pela qual toda a nossa geração passou. Temos já pouco tempo à nossa frente e fazemos parte de um grupo etário um pouco arredado da informática, mas com a ajuda dos filhos, netos, amigos e outros camaradas, podemos e devemos dar a nossa contribuição para que não sejamos esquecidos.

Embora tenhas já participação no Blogue, só agora ficas apresentado à tertúlia. Instala-te, porque estás entre amigos.

Recebe um abraço de boas-vindas dos teus camaradas e dos nossos amigos tertulianos, que ligados de alguma forma à Guiné de ontem ou de hoje, fazem parte do nosso Blogue.

O teu novo amigo e camarada
Carlos Vinhal
________

Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

29 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6277: O Spínola que eu conheci (15): Muito obrigado pelas palavras que proferiu em S. Domingos (Bernardino Parreira / Plácido Teixeira)

3 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6304: Ser solidário (67): Maria Buinen e Rosa Mota 'correm' pelo Projecto Viva (água para 85 mil pessoas na Região de S. Domingos) (Bernardino Parreira, CCAV 3365, 1971/73)
e
17 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6610: Em busca de... (136): Procuro qualquer contacto do Bernardino Parreira, ex-Fur Mil da CCAV 3365/BCAV 3846, S. Domingos e Bachile

Vd. último poste da série de 3 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6820: Tabanca Grande (235): António Inverno, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da 1.ª e 2.ª Companhias do BART 6522 e Pel Caç Nat 60 – S. Domingos - 1972/74

Guiné 63/74 - P6874: Meu pai, meu velho, meu camarada (23): Parabéns a vocês! Luís Henriques e Armando Lopes, 90 anos, uma vida! (Luís Graça)



Portugal > Cadaval > Adão Lobo > 1950 > Equipa de futebol do Sporting Clube Lourinhanense, da Lourinhã, no campo de jogos do Adão Lobo. O segundo da primeira fila, da esquerda para a dierieta, é o meu pai, Luís Henriques, então com 29 anos... Esteve toda a vida ligada ao futebol, quer como jojador quer como dirigente e treinador de futebol das camadas mais jovens... Fez ontem 90  anos... Esta foto foi tirada em 1950, no dia em que o Benfica (seu clube de eleição) ganhou a Taça Latina (pode-se ler-se na legenda da foto... Ao que parece foi o primeiro feito internacional do S.L. Benfica: ganhou à Lázio nas meias-finais e depois ao Bordéus na final)... É também uma homenagem à geração do meu pai para quem o futebol foi uma paixão... Aquiio ficam os seus nomes, que o meu ontem me deu, de memória (!): "De pé, da esquerda para a direita, o filho do Vitor Pedro,  Miranda (Alfaiate), Jorge Tarofa (ou Jorge Serralheiro),  José Costa (que haveria de morrer em Angola), José Miguel, Américo Russo,  Manuel Swing, António Serralheiro; na primeira fila, da esquerda para a direita,  Vitor Pedro, Luís Henriques, António Zé da Graça, Manuel Dias (Néu), Artur Borges, João Borges". E acrescenta o meu pai: "Perdemos 3 a 2. Nesse dioa faltaram três ou quatro dos nossos melhores jogadores: o Gino (ou Higino), o Mário pepe, o Manuel Ferrador, o António Costa"...

Foto: © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados


Seleção de futebol da Guiné, em 1954 (?) > "Dos futebolistas na foto, ainda consigo identificar alguns... (...) De pé da esquerda para a direita: Antero Bubo (caboverdiano); o jogador seguinte é guineense, cujo nome me escapa; Armando Lopes (Búfalo Bill, meu pai) (**); o nome dos restantes também me escapa... Agachados: terceiro a contar da esquerda, o guarda redes principal Júlio Almeida (antigo funcionário da granja de Pessubé que trabalhou com Amílcar Cabral e é referenciado como um dos fundadores do PAIGC); quinto atleta, Joazinho Burgo; o último... escapa-me o nome mas sei que é avô do Miguel, da selecção de Portugal... que esteve no Mundial" (Nelson Herbert).

Foto: © Nelson Herbert (2010). Todos os direitos reservados



1. Em homenagem ao meu velho (*) que fez ontem 90 anos, um vida! E ao Armando Lopes, o Búfalo Bill, mais novo 4 dias, pai do Nelson Herbert. Ambos estiveram no Mindelo, em 1943, ao mesmo tempo, por alguns dias. Têm em comum Cabo Verde e o Futebol. Não terão jogado futebol juntos, é muito pouco provável... O pai do Nelson entrou para a tropa em 15 de Agosto de 1943.  O meu pai esteve lá entre Julho de 1941 e Setembro de 1943. Não se terão sequer conhecido. Depois de Cabo Verde, sua terra natal, o Armando foi para a Guiné, e lá fez carreira como futebolista e como trabalhador da junta da administração dos portos. Fará 90 anos no próximo dia 23. Parabéns aos dois, por terem chegado até a esta bonita idade... Ao meu foi omtem feita uma festinha de homenagem: tem 4 filhos, 12 netos e 4 bisnetos... (LG)

Na antiga picada do Xime-Ponta do Inglês
por Luís Graça

Não havia nada
Na antiga estrada
Do Xime-Ponta do Inglês,
Ligando o Geba ao Corubal.

Não havia nada naquele lugar
Que era de tormento,
Àquela hora mortal
Da madrugada.
Nada, onde um homem
Pudesse afogar a sua fome,
Matar a sua sede,
Aliviar o seu sofrimento.

Nem sequer um banco de pedra
Como aquele em que agora me sento,
Frente ao Tejo,
Fresco, límpido, matinal,
E onde alguém escreveu,
Em letra garrafal:
“Amo-te, Marta,
És a razão do meu viver”.

Hoje estou à beira Tejo
E não vou a caminho da Foz do Corubal.
O Tejo corre para o Atlântico,
E o Corubal para o Geba.
Em Lisboa tenho o azul do céu,
Que, dizem, é o azul mais puro do mundo.
No Geba, tenho uma G3,
Tarrafo, lodo, merda,
Dois cantis vazios,
Um céu de bronze,
E mil e uma razões para (sobre)viver.

Nem poderia haver
Nenhum banco de pedra,
Nem nenhum jardim,
Nem nenhuma Marta
À minha espera.
Nem muito menos nenhuma Marta
Que fosse a minha razão de viver.

Quando muito, um fantasma,
Surgido do cacimbo matinal,
Por detrás do baga-baga,
Armado de Kalash!

Não tinha, de resto, razão de viver,
“Raison d’ètre”, diria a minha “copine”,
Se eu fosse refractário,
E tivesse dado o salto para França.

Não tinha nenhuma razão de viver,
Nem de morrer,
Nem de matar,
Não tinha sequer nenhuma razão
Para estar ali, àquela hora.

Não havia nada
Na antiga picada abandonada
Do Xime-Ponta do Inglês.
Nem um “pub” irlandês
Com a ruiva Guiness
A piscar-te olho,
A ti, herói português,
Com um improvável genoma celta.
Nem uma tasca afadistada
Da tua saudosa Lisboa,
Com a perna da morena,
Esbelta,
Lânguida,
A faca na liga,
Deixando antever
Os doces mistérios da sua floresta-galeria.

Não, não havia nada,
Nem uma decrépita gasolineira
Doa filmes do Faraoeste da minha infância,
Onde abastecer a tua Daimler,
Salta pocinhas, minas e armadilhas,
Em que ias de Bambadinca ao Xime
Simplesmente para beber uma cerveja,
Sem escolta nem picagem,
Num jogo de roleta russa.

Nem muito menos a Marta-Mátria,
Republicana e laica,
Verde e rubra,
De busto farto,
De peito feito às balas,
Dando a volta à cabeça dos rapazes,
Dando-lhes tusa,
Na Feira Grande de Setembro:
- Vai mais um tirinho, ó freguês!

Não, não havia nada,
Nem sequer uma simples mulher,
Uma fêmea de bunda larga,
Ou até uma simples mulher polícia sinaleira,
Cata-ventos,
Bailarina,
Redondinha,
Assexuada,
De pelo na venta
E apito na boca,
No cruzamento dos quatro caminhos.

Não, já não vou de G3 em punho,
Em defesa da honra das donzelas
Da minha Pátria.
Chamem-se elas Marta ou Mátria.
Não, já não vou, cego, surdo e mudo,
A correr,
Disposto a morrer,
Com ganas de gritar “Pátria ou Morte!”,
Na velha picada, abandonada,
Do Xime-Ponta do Inglês
Onde não havia nada.
Nem ao menos um tosco espanta-pardais,
Especado no meio do capim,
Em vez do campo de mancarra do fula,
Ou do teu jardim,
Do Éden,
Ou até uma simples seta,
De pau tosco,
A apontar-te a direcção do inferno,
A maldição bíblica do pecado,
Omnipresente,
Obsessivamente eterno.

Havia apenas,
No fim da picada, o inferno.
À minha espera,
À nossa espera.
Às 8h45 da manhã
Do dia 26 de Novembro
De mil novecentos e setenta.
Da era De Cristo.
E Conacri ali tão perto!

O caminho mais curto para o inferno ?
Não o vês ?
A picada, abandonada, do Xime-Ponta do Inglês,
Onde Cristo seguramente nunca parou
Nem amou
Nem penou
Nem sofreu
Nem pecou,
Nem rezou.

O teu Cristo etnocêntrico,
Judeu,
Semita,
Que nem sequer era caucasiano,
E nem muito menos sonhava onde era a Senegâmbia
Nem o Império do Mal(i).

Pensar global,
Sonhar alto,
Agir local,
Meu sacana…
Ou melhor ainda:
Não pensar,
Muito menos sonhar,
Tiro instintivo, a varrer o capim.

Eis a ordem do capitão
Que tem acima o major,
Na sua avioneta,
No seu PCV,
E no topo o general,
O Com-Chefe,
O Caco Baldé,
O Homem Grande de Bissau,
Herr Spínola.

E à frente de todos,
Com o seu inseparável cachimbo,
O Seco Camará,
Seco de carnes,
Velho e valoroso guia das NT,
Pau para toda a obra,
Cão de fila,
Mandinga do Xime,
Herói da minha galeria de heróis,
Verdadeiro líder, etimologicamente falando,
Aquele que vai à frente mostrando o caminho.

Nesta guerra de baixa intensidade,
Não dês vazão ao Tratado das Paixões da Alma.
E por favor poupe, senhor, as munições.
Da NATO.
Dizem que a glória te espera”,
Escreveu um “serial killer”,
Roqueteiro,
Com fama de fazer saltar cabeças a 50 metros,
Ao longo da alameda dos bissilões.
“Vai para casa, tuga,
Que a tua namorada põe-te os cornos”…

Não, não havia nada
Naquela picada, abandonada,
Do Xime-Ponta do Inglês.

Lourinhã, 19 de Agosto de 2010

___________

Nota de L.G.:

(*) Último poste da série > 2 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6096: Meu pai, meu velho, meu camarada (20): Nunca te esqueças de escrever à tua mãe (Juvenal Amado)

Guiné 63/74 - P6873: Parabéns a você (141): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Guiné, 1969/71 (Os Editores)

1. Neste dia 20 de Agosto de 2010, festeja o seu aniversário o nosso camarada Manuel Amaro (ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971), a quem a tertúlia do nosso Blogue vem dar os parabéns.

Estamos também a desejar-lhe uma vida tão longa quanto possível, tendo sempre por perto as pessoas que mais contribuem para o seu bem estar espiritual. 
Um pouco mais longe da vista, mas sempre atentos, estão estes mais de 400 amigos e camaradas.

Caro Amaro, neste dia especial para ti, que se repete em cada ano, deixamos-te um abraço de felicitações.


Monte Real 2010 > Manuel Amaro em conversa com Paulo Santiago e Victor Tavares
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4840: Parabéns a você (20): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892 (Os Editores)

Vd. último poste da série de 19 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6870: Parabéns a você (140): Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 763, Cufar 1965/66 (Editores)

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6872: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (7): Ébano Febre Africana, de Ryszard Kapuscinski (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
Estou mesmo a acabar as férias e Ryszard Kapuscinski não podia ser melhor companhia.

Aconselho a todos os confrades que leiam esta longa viagem de 40 anos desde os primórdios da descolonização até ao surrealismo da guerra da Eritreia. Estamos a falar do mesmo Kapuscinski que é autor de uma outra obra de grande fôlego “Mais um Dia de Vida – Angola, 1975”, publicado também na editora Campo das Letras, em 1998.

Vou agora parar uns dias, mas garanto que vou levar este empolgante Ébano até ao fim.

Um abraço do
Mário


Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (7)

por Beja Santos

Ébano, uma grande angular sobre África...
para compreender melhor a Guiné-Bissau



Arrefeceu ao anoitecer, no entanto o arvoredo está silencioso, imóvel, como se esperasse o fim desta semana em braseiro. O termo das férias é uma evidência, segunda-feira saio daqui melancólico, gosto a valer desta casa toda em pedra, cercada de floresta, com um zumbido do IC8 lá ao fundo. Para já, travo a melancolia com toda esta exaltação que tem acompanhado a leitura da obra com que findo as férias com chave de ouro: “Ébano, Febre Africana”, por Ryszard Kapuscinski, Campo das Letras, 2002. O polaco Ryszard Kapuscinski é tido por muitos especialistas como um dos maiores jornalistas do século XX. Tendo começado a sua vida profissional como correspondente na Ásia e no Médio Oriente, reteve na sua obra-prima Ébano 40 anos de África. Ali começou em 1957. Como ele esclarece, Ébano não é um livro sobre África mas sobre encontros que teve com africanos. África é um continente demasiado grande para poder ser descrito. África é um conceito geográfico, um cosmos versátil, imprevisível, dominado por uma natureza luxuriante, que por vezes ultrapassa o paraíso bíblico, devastada por questões étnicas avassaladoras. A África de Kapuscinski remete-nos para as reportagens que ele efectuou logo em 1958, quando esteve no Gana, no arranque da descolonização.

Ele fala-nos de quando saiu do avião se ter sentido confrontado com o cheiro dos trópicos: “Cheiro de corpos quentes e peixe seco, carne apodrecida e mandioca tostada, flores secas e plantas aquáticas podres, resumindo, um cheiro a tudo o que é simultaneamente agradável e nojento, aquilo que atrai e repele. Este cheiro sopra das palmeiras próximas até nós, nasce na terra quente, liberta-se dos esgotos da cidade”. E sente-se surpreendido pelo andar dos africanos nessa Acra densamente urbanizada: “Na rua misturam-se automóveis e peões. Tudo se move ao mesmo tempo. Peões, carros, bicicletas, carrinhos de mão, vacas e cabras. Na berma, para lá do esgoto, desenrola-se a vida doméstica e a vida comercial, as mulheres apiloam a mandioca, tostam bolbos de taro sobre brasas de carvão, preparam alguma receita especial. Tudo às claras, como se houvesse uma regra que mandasse toda a gente sair de casa às 8 da manhã para vir para a rua”. No Gana Nkrumah é o líder incontestado. Kapuscinski vai conversar com Kofi Baako, o ministro para a educação e informação. O modo como decorre a entrevista faz ver a Kapuscinski que estes líderes africanos descobrem a política e a independência com devoção e sinceridade, falam do progresso como os iluministas falavam da Razão. O jornalista apercebe-se da profunda religiosidade africana que toma conta da realidade, que se fundamenta no mundo dos antepassados no reino dos espíritos. A noção de tempo é uma categoria passiva, uma inversão completa do pensamento europeu. O africano está habituado a esperar e está dominado pelas contingências da vida em grupo, subordinado ao clã. Viajando de autocarro entre Acra e Kumasi, o jornalista revê a evolução acelerada entre o colonialismo do final do século XIX e o processo da descolonização. Foi na II Guerra Mundial que se deu a viragem. Até aí, a diferença de raça e cor da pele foi o tema central, todos os conflitos se reduziam à oposição branco-negro: o branco era o senhor, o dominador, era intocável. Os africanos foram chamados a combater nessa guerra em teatro europeu e fazem uma descoberta chocante: que a potência colonizadora também pode ser vencida (caso da França), vêem os brancos a refugiarem-se em pânico durante os bombardeamentos, esfomeados. Até então o único contacto que tinham tido com a vida dos brancos era com a vida luxuosa que os colonizadores gozavam. Esses veteranos regressaram a África e adquiriram a noção de independência. Foi assim que tudo começou na descoberta de uma nova entidade. De novo na rua, Kapuscinski sente-se maravilhado com a comunicação entre africanos e escreve: “O modo como se é saudado e a atmosfera do primeiro encontro são determinantes para o destino de uma relação. Deve mostrar-se desde o primeiro encontro uma grande alegria e uma simpatia espontânea. É frequente ver-se duas pessoas paradas no meio da rua, vergadas pelo riso. Não significa que estejam a contar anedotas uma à outra. Estão apenas a cumprimentar-se. Se o riso acabar de repente ou a saudação está terminada e pode agora passar-se ao tema central da conversa, ou então os intervenientes no acto de saudação estão só a dar descanso aos respectivos diafragmas”.

Já em Dar-es-Salam, o autor analisa a africanização, um processo tenso, díspar, com novas manifestações de luta pelo poder. Porque o novo poder vem acompanhado do seu clã, tem que partilhar tudo com os irmãos e com os primos, quem não respeitar este princípio condena-se à exclusão. Quem pode escapar a esta lógica são os não nacionais, caso dos comerciantes oriundos do Próximo Oriente ou da Ásia, que continuam a viver dentro das suas categorias sociais. Com a africanização, antigas relações interétnicas que tinham sido congeladas ou simplesmente ignoradas pelo colonizador, ressuscitaram, activaram-se. No caso preciso de Uganda, os antigos reinos reacenderam os seus conflitos. O jornalista adoece com a malária, sentiu-se invadido por um frio atroz, penetrante, começou a tiritar e a ter convulsões. Ele fala assim deste sofrimento: “Entramos no mundo que ainda há instantes ignorávamos completamente, mundo que acaba por nos vencer, descobrimos dentro de nós vales, fendas e abismos glaciares. Depois da crise, fica-se um verdadeiro destroço humano, uma pessoa nada numa poça de suor, tudo lhe dói, sente tonturas e náuseas. Quando se pega ao colo de uma pessoa assim, tem-se a sensação que ela não tem nem ossos nem músculos”.

O olhar do jornalista dirige-se agora para a expansão colonial, que passou das cidades do litoral para as profundezas do continente: é o tempo a epopeia dos caminhos-de-ferro, estradas e pontes. É nisto que um golpe de Estado rebenta em Zanzibar, é para ali que se dirigem os jornalistas. O aeroporto de Zanzibar está encerrado, os jornalistas dirigem-se a Dar-es-Salam. Depois de várias negociações, alugaram um pequeno avião e voaram para Zanzibar. Atónito, descobre a improvisação, as ordens e contra-ordens dos revoltosos. Zanzibar ficou conhecida pelo seu comércio de escravos que durou 400 anos, nele participaram a Europa, as suas Américas e numerosos países do próximo oriente e da Ásia. Por aqui passaram caravanas de escravos oriundos do Congo, Malawi, Zâmbia, Uganda e Sudão. É um país onde os árabes dominam os africanos negros, estão em permanente discórdia. O golpe de Estado foi desencadeado por John Okello, de 25 anos, meio analfabeto que tem um slogan: “Deus deu Zanzibar aos africanos e prometeu-me que a ilha ia voltar a ser nossa”. Para isso é preciso expulsar os árabes e aguardar a retirada dos ingleses. Na véspera da revolta, Okello autoproclama-se marechal de campo e os trabalhadores agrícolas e polícias atribuem-lhe o grau de general do exército. O encontro entre os jornalistas e Okello é surpreendente. Como iremos ver a seguir.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6867: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (6) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6871: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (1): O Chico do Palácio

1. Como nem só de memórias boas se fez a guerra, o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos uma história para a sua nova série Outras memórias da minha guerra.


Outras memórias da minha guerra (1)

O Chico do Palácio

Por José Ferreira da Silva

De seu nome era Francisco Ribeiro e conhecido entre os amigos pelo Chico. E, dos mais íntimos, pelo Chico do Palácio. Havia duas razões para esse cognome: uma por ser natural e morador da zona do Palácio de Cristal do Porto; outra porque, efectivamente. lá havia um macaco enjaulado, com esse nome, famoso na região tripeira e arredores.

O Chico ficara órfão de mãe logo ao nascer. E o pai, que vivia paredes meias com o álcool, - “bateu a bota quando eu tinha 4 anos e não deixou pena nenhuma porque não nos ajudava nada”, lamentava-se o Chico. Por isso, lá continuou a ser criado entre as bancas das vendedeiras de fruta, chouriço, azeitonas e tremoços, onde se alimentava. Tinha uma irmã mais velha, que também se desenrascava como podia. Ele fazia questão de afirmar que sempre viveu por sua conta, mesmo em criança, pedindo e roubando fruta e comida. Era franzino, de pele bastante gasta e picada das bexigas, e aparentava ter quase o dobro da idade. Talvez devido às privações alimentares e outras e ao vicio de fumar. Sofria muito durante as operações militares pela falta do tabaco.

Ao contrário do que constava, tanto o Chico como os seus vizinhos da Banharia, Massarelos, Ribeira, Valbom, Rio Tinto ou Matosinhos, eram uns tipos bestiais. Era gente madura, de língua afiada e nunca derrotada em debate com qualquer letrado. Dava gosto ouvi-los, com aquele sotaque do Puaerto e com expressões simples e de frontalidade sem limites. Abriam-nos um mundo encantador onde os seres mais humildes viviam o dia a dia, o mais alegremente possível. Praticavam a solidariedade extrema, desde a partilha de um resto de comida à “barona” de um cigarro. Manoel de Oliveira, o maior cineasta português, evidenciou-se muito cedo com um filme que retratou aquela gente ribeirinha – Aniki Bó-Bó.

Usavam de uma linguagem própria e viva. Era normal ouvir-se entre eles: “tafôda morcom”, “ouve lá, ó manca-mulas”!, “a lambisgóia andava a armar-se ao pingarelho”, “Oh bacano chuta aí uma barona”, “ Oh fachina, deixa-te de paleógrafo e vai mazé buscar morfos pá gente matar a traça”, “só pensas encher a mula”, “tás coa tromba foleira”. “a patroa fodeu-lhe a fronha toda”. “era um pastor, enforcou-se cô aquela pandorca”, “q safôda, armou-se em Pipi da Tabela para fisgar uma faneca daquelas e não viu que ela andava no negócio das carnes há tanto tempo!. Aposto que ela lhe jurou quinda tinha os três.” Etc., etc..

Dizia-se que eram cantigueiritos, faroleiros e gabarolas. Mas não era verdade. Estes eram simplesmente os argumentos de quem não tinha hipóteses de os enfrentar. Provou-se que, em combate, não recuavam perante os maiores perigos.

O Chico era muito popular entre a malta da tropa. Parecia o irmão mais velho daquela tropa toda. Brincava e gozava com todos, mas sempre de uma forma cortês que não agredia. Quando, em plena formatura, informal e imperturbável, acusava ao Alferes : - “ête gajo tá-ma chatear os cornos”, apontando para um dos colegas –, era mais para brincar com o próprio Alferes, um açoriano, que proferia muitas vezes essa expressão.

Outro Chico de outro Palácio

No último fim-de-semana em Viana do Castelo, uns 3 ou 4 dias antes de partirmos para a Guiné, estive de serviço no Domingo e encontrei o Chico no Quartel:

- Então, que anda aqui a fazer, não foi despedir-se da família? E ele respondeu:

- Que família? Se fosse a casa da minha irmã, o mânfio dela ainda me cravava os tostõezitos que ganhei a fazer os serviços.

Daqui se depreende facilmente que o Chico não se sentia muito afectado com a mobilização para a guerra nem mostrava saudades de ninguém. O que mais o preocupava era o vício de fumar continuamente. E era nisso que ele gastava o dinheiríto. Raro era o mês em que ele não nos vinha pedir algum (a mim e ao Mariz, de Anadia), até receber o pré da Companhia.

No dia do pré, saía da Secretaria e vinha directamente ao nosso encontro. Batia à porta do quarto, entrava delicadamente, virava-se para um de cada vez, a exibir o dinheiro na mão esquerda. Contava com a mão direita o montante em dívida e entregava-o, agradecendo. De seguida, pagos todos os credores, desfiava o restante, levantava-o, esticava-se e dizia:

- Este é que é o meu e agora sim, é que o posso meter no meu bolso.

E enfiava-o orgulhosamente no bolso esquerdo da camisa. Então, já com as mãos livres pedia:

- Posso fumar?  Esta nobre cena repetiu-se sempre com o mesmo rigor e satisfação.

Estávamos nos últimos dias de Agosto 67 e tivemos que fazer mais uma operação em zona perigosa. Era no Tombali, entradas da mata do Cantanhez. Nessa altura, o Comandante do PAIGC, Nino Vieira, que era dali, andava muito activo. Valeu-nos o seu ex-amigo João Bacar Jaló, o famoso futuro chefe dos Comandos Africanos, que, então, estava sediado em Príame/Catió e fazia muitas operações connosco. Para nós era muito bom porque aqueles milícias africanos era muito experientes e costumavam ir na frente.

De repente, suspendeu-se a progressão na mata e iniciaram um regresso bastante apressado. Na frente, a tropa do Tenente Bacar havia detectado uma emboscada, montada à nossa espera e entendeu-se que o melhor seria retirar rapidamente, até porque o inimigo poderia envolver-nos e vir atrás de nós. Era uma zona densa, muito fechada, com muitos arbustos e bastante armadilhada, o que obrigava a todos passarem pelo mesmo trilho. O nosso Capitão disse-me para montar rapidamente alguma segurança atrás, enquanto se fazia a retirada. Inicialmente, os militares quase corriam mas, à medida que chegavam a uma pequena linha de água, atrasavam-se devido às dificuldades em atravessá-la. Sentimos bastante ansiedade devido ao perigo de existir tanta tropa concentrada num pequeno espaço e a nossa segurança ser diminuta, pois estava limitada a uma pequena frente de 4 ou 5 atiradores, estando o pelotão ao longo do trilho.

Podia ter sido uma tragédia. Quem tenha passado por uma situação idêntica, sabe bem o pavor que se sente quando se começa a retirar. Ou no caso de ataque de abelhas em zonas de perigo (normalmente à entrada dos acampamentos inimigos). Mas mais aflitivo ainda é ver toda a gente a correr e nós a termos que esperar para manter a segurança .

Foi neste ambiente de apreensão e de medo que o Chico, a acusar ainda mais a ansiedade, pois já levava cerca de 24 horas sem fumar, entre outras observações catastróficas, mandou mais uma das suas tiradas:

- Aquele filho da puta do sargento Viscoso, não nos pagou ontem, porque estava à espera que algum lerpasse nesta operação. É mais aquele que vai para o porco alentejano ... e fez o gesto, com os dedos em rotação.

Uns minutos depois, também retirámos e sentimos dificuldades agravadas a atravessar a linha de água, porque o trilho era, agora, só lama e ninguém se mexia sem a ajuda de outros. Convém lembrar que, nestas situações, bastava pararmos para nos enterrarmos lentamente com o peso do próprio corpo. Dentro do rego levantávamos um de cada vez, que, depois, era puxado do lado de cima por outro. Fui eu que ajudei o Chico do lado de baixo e de cima foi o Massarelos. O Chico deu-lhe a arma G3, com a coronha para cima, segurando-se no cano e o Massarelos agarrou-a pela coronha. Como a arma escorregava, devido ao lodo, o Massarelos tentou segurá-la melhor e os dedos foram parar junto ao gatilho. A arma não estava em posição de segurança. Deu-se um disparo e o Chico foi atingido na anca direita, de cima para baixo, razão por que a bala não o atravessou (e não me atingiu). A movimentação, era, como atrás foi dito, muito difícil, ele esvaiu-se em sangue, e não houve meio para o evacuar para a base do Batalhão, em Catió.

Tal como ao nascer, o Chico não teve a sorte do mundo que o escolheu. O Massarelos, que era seu vizinho e seu principal amigo, passou o resto da tropa entre lamúrias e copos, acusando uma tristeza profunda. Há mais de 30 anos que ninguém sabe dele.

(Silva da Cart 1689)
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Nota de CV:

(*) vd. poste de 12 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6846: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (6): O Cabo Felgueiras

Guiné 63/74 - P6870: Parabéns a você (140): Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 763, Cufar 1965/66 (Editores)

Postal de aniversário de autoria do nosso Private Designer Miguel Pessoa


1. Hoje, dia 19 de Agosto de 2010, está de parabéns, por completar mais um ano de vida, cheio de vitalidade e juventude, o nosso camarada Mário Fitas (ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 763, Os Lassas, Cufar, 1965/66).

Aqui está a Tabanca em peso a felicitar o Mário por esta feliz data, desejando-lhe um dia bem passado junto da sua esposa, filhos e demais familiares e amigos. 

Já que o mês é de festas, bebamos mais um copo, este à saúde deste nosso camarada.

Como ainda estamos na segunda juventude, é com a maior das certezas que marcamos desde já encontro para 2011, para que com a mesma pedalada nos reunamos, em pensamento, em volta do nosso tertuliano e amigo Mário Fitas, para comemorarmos mais um seu aniversário, aquele que antecederá os 70 anos.

Caríssimo camarigo Mário Fitas, recebe um abraço enorme, desculpa lá, mas ainda maior que o teu Cumbijã, que a Tabanca manda inteirinho para ti.
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Notas de CV:

(*) Vd poste de 19 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4834: Parabéns a você (19): Mário Vicente Fitas Ralheta, ex-Fur Mil Op Especiais da CCAÇ 763 (Os Editores)

Vd. último poste da série de 17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6859: Parabéns a você (139): José Manuel Moreira Cancela da CCAÇ 2382 (Os Editores)

Guiné 63/74 - P6869: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (26): Portugueses na Lapónia... sem distress (José Belo)

1. Foto e texto de José Belo (Mensagem enviada com data de ontem)


O VERÃO NA LAPÓNIA em....stress de calor! 

Caros Amigos e Camaradas:

Um Continente, mesmo de um extremo ao outro, é bem pequeno para a nossa Tabanca e os seus leitores. Nao é que me apareceram, literalmente, "à porta de casa",  em Abisko, bem já dentro do Círculo Polar Ártico, na Lapónia Sueca, 3 casais de portugueses, leitores do blogue de Luís Graça e Camaradas da Guiné?!! 

Interessados pelo norte da Escandinávia, seguiram a sugestão do nosso Camarada da Tabanca do Centro, Carlos Santos, de quem são amigos, deram uma olhadela ao blogue da Tabanca da Lapónia e... aqui apareceram, em viagem que os levou da Lapónia Finlandesa, à Sueca e Norueguesa. 

Sem os conhecer de lado nenhum,e sem saber "o que são" ou no que "acreditam", tivemos momentos inesquecíveis de convívio Lusitano. Mais uma vez, temos que concordar que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca é.....Grande! (*)

Um grande abraço amigo.

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quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6868: Blogpoesia (80): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (7) (Manuel Maia)

QUISERA EU... (7)

por Manuel Maia*

Vi matadores e mortos perfilarem
e um estranho ritual iniciarem,
psicostasia egípcia, surreal...
Vi mortos reclamarem por justiça
gritando o envolvimento nessa liça
de ver "pesagem d´alma", enquanto tal...

Em Haia, vi sentar no tribunal,
culpados do imenso lodaçal,
descolonização dita exemplar...
De um lado militares de alta patente,
do outro, onde a vergonha é sempre ausente,
a corja da política a julgar...

Vermelhos almirantes, generais,
ignóbeis vis farsantes, amorais,
capazes das vilezas mais horrendas...
Rasgando acordos dão a uma facção
poder e armamento em profusão,
gerando e fomentando mais contendas...

Milhares serão os mortos nessas terras,
agora fruto d`intestinas guerras,
riquezas mil havia p`ra sugar...
Envoltos no negócio d`armamento,
ligados com o tráfico nojento,
alguns de alta patente militar...

Sabendo d`asquerosa conexão,
ministro da defesa da nação,
prepara dossier denunciador...
O gesto foi sabido p`la escumalha,
que célere contrata um vil canalha,
do crime enorme expert sabotador...

Atrasa Boeing/Tap a descolagem,
que "empurra" chefe AD para viagem
no Cessna sabotado no hangar...
Ministro da defesa e Sá Carneiro,
sucumbem na explosão deste "ligeiro"
mais quatro a quem a morte foi buscar...

Urdida e bem montada a ratoeira,
ao povo é atirada então poeira,
com comissões d`inquérito à rajada...
A Yard enviou o criminoso,
P.J.soltou logo o "mafioso",
não fosse ele implicar a canalhada...

De crocodilo as lágrimas vertidas,
politiqueira corja, mal fingidas,
palavras de pesar, soltou então...
Da guerra alguma tropa já arredia,
juntara-se à escumalha que queria
avolumar nos bancos seu cifrão...
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Notas de CV:

(*) Manuel Maia foi Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74.

Vd. poste de 17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6860: (Ex)citações (91): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (Manuel Maia)

Vd. último poste da série de 8 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6837: Blogpoesia (79): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (6) (Manuel Maia)

Guiné 63/74 - P6867: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (6) : Quadros de Viagem de um Diplomata, de Luiz Gonzaga Ferreira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
Descansem, estou quase a acabar as férias. Foram curtas, preciso de mais.
Li este livro quando estava a preparar a Mulher Grande, precisava de perceber o fervilhar da vida senegalesa na altura em que o grupo de François Mendy atacou São Domingos, onde pus a viver a minha heroína. A História não especula, não põe hipóteses. Mas é impossível deixar de perguntar o que teria acontecido se Salazar continuasse a apoiar a solução de autonomia progressiva para a Guiné Portuguesa.

Um abraço do
Mário


Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (6)

por Beja Santos

Quando, em Dakar, se negociava uma autonomia pacífica da Guiné


No dia 11 de Agosto de 1963 um DC5 aterrou em Bissalanca e dele saíram Silva Cunha, então Secretário de Estado do Ultramar, diplomatas do MNE e o último cônsul português em Dakar, Luiz Gonzaga Ferreira. Este conjunto de personalidades ia aguardar a comunicação que Salazar faria ao país no dia seguinte, dando conta da sua decisão, tomada depois de se reunir com Benjamim Pinto Bull, Presidente da União dos Naturais da Guiné Portuguesa (UNGP) de aceitar a abertura de negociações para uma autonomia política da Guiné. A esta declaração de Salazar, o conjunto de personalidades e o Governador da Guiné receberiam Benjamim Pinto Bull para iniciar as negociações dessa autodeterminação progressiva.

O que se disse acima não é ficção, está perfeitamente documentado e consta do livro “Quadros de Viagem de Um Diplomata”, por Luiz Gonzaga Ferreira*, Vega, 1998. Ao longo de mais de 400 páginas, o diplomata, que iniciou a sua carreira em Dakar, em 1960, dá-nos conta sobre os bastidores da acção diplomática portuguesa no Senegal e oferece-nos uma importante memória sobre a política de Senghor e o que ele pensava da transição pacífica da Guiné para a independência e, não menos importante, quem eram e como actuavam os diferentes movimentos independentistas que operavam em Dakar, a partir de 1959. Vamos aos factos.

Primeiro, as condições em que se chegou para que o próprio ditador tenha concordado com uma solução negociada com a UNGP. Léopold Sédar Senghor adoptou uma imagem moderada e um perfil de negociador no contexto da antiga África Ocidental Francesa. Poeta africano, autor do princípio da Negritude, apaixonado pela cultura francesa, partidário da democracia parlamentar, debatia-se por aprofundar essa via no Senegal e na vizinhança e sujeitava-se a ter que acompanhar o estado de exaltação das independências e até as próprias vozes radicais que se ouviam no Gana, em Marrocos ou no Congo. Senghor temia os projectos políticos de Sekou Touré e desconfiava do marxismo de Amílcar Cabral. Impelido para o corte de relações com Portugal, manteve, mesmo depois da saída do Embaixador português, relações cordiais com o cônsul. A colónia guineense era representativa no Senegal, tal como a colónia cabo-verdiana. Por muita moderação que imprimissem nas relações com os movimentos independentistas, Senghor estava consciente, sobretudo a partir de 1961, que ou se entrava na luta armada ou na negociação com as autoridades portuguesas. Os movimentos de libertação da Angola, Guiné e Moçambique já se tinham encontrado em Casablanca, agiam com uma estratégia conjunta. Os países africanos preparavam a criação da Organização da Unidade Africana. Para além de lhe repugnar a guerra, Senghor temia a circulação de armamentos pela região do Casamansa, antigo território português, até 1886. Senghor e grande parte dos dirigentes do seu partido, o UPS – Union Progressiste Senegalaise pretendiam a solução moderada, por isso apoiaram a UNGP. Senghor assistira em 1961 às investidas de um grupo de manjacos do Movimento de Libertação da Guiné de François Mendy, que atacaram São Domingos, Susana e Varela. Os movimentos nacionalistas radicais não aceitaram a concorrência da UNGP que procurava promover valores de paz e conciliação. Senghor apostou declaradamente na UNGP. A partir de Dakar, Luiz Gonzaga Ferreira ia informando Bissau e o MNE. Os Estados Unidos não sabiam muito bem quem apoiar, a URSS, nessa época, fazia ainda um jogo duplo entre o FLING e o PAIGC. Este, tinha já em preparação um vasto conjunto de quadros e prepara a sublevação do Sul da Guiné. Os argumentos de uma autonomização progressiva, entregando a Guiné aos guineenses terá seduzido Salazar que aceitou o jogo do diplomático que secretamente era tecido em Dakar por um jovem que iniciava a sua carreira.

Segundo, o enredo negocial urdido passou por captar as simpatias dos altos dirigentes senegaleses para uma situação que impedisse abrir o flanco aos grupos esquerdistas senegaleses, sempre prontos a ver armados os nacionalistas guineenses e cabo-verdianos. A partir do momento em que cortou relações ao nível da embaixada, Senghor teve que fazer uma escolha e fê-la: secretamente, começou a pedir empenho ao governador Peixoto Correia para criar uma atmosfera de aceitação da UNGP em Bissau. Ao longo de centenas de páginas, o embaixador Luiz Gonzaga Ferreira descreve os altos e baixos do regime de Senghor e o equilíbrio que este procurava manter entre o “sonho revolucionário” e uma África independente dialogante com o mundo ocidental. Um simples cônsul move-se entre nacionalistas, dá uma opinião favorável à constituição de uma frente independentista pacífica, descreve demoradamente a actuação dessa miríade de movimentos, na maioria dos casos sem nenhuma representatividade e o apoio dado ao grupo de Pinto Bull que era, segundo o autor, maioritariamente apoiado na época pelos guineenses que viviam no Senegal.

Também, a acreditar no que escreve o autor, é patente que o PAIGC era altamente contestado pela comunidade cabo-verdiana do Senegal que não via com bons olhos o mesmo Estado numa unidade em que não se reconheciam. Neste ponto, estamos perante uma leitura excepcional, pois é possível decepcionar como esta UNGP constituiu a última oportunidade de ter evitado, segundo o autor, a luta armada bem sucedida que o PAIGC desencadeou a partir de 1963.

Terceiro, qualquer possibilidade de ter havido uma Guiné independente multipartidária, dirigida por guineenses, desapareceu com o discurso de Salazar de 12 de Agosto de 1963. Num curto parágrafo deitou tudo por terra, ele que apoiara a negociação com a UNGP ao dizer: “Que todos o saibam – em nenhum momento e sob que pretexto, jamais parcela alguma do território nacional e nenhuma parte da soberania nacional serão alienadas”. Igualmente, no terreno das hipóteses, a proibição desta autonomia deitou por terra outras soluções em Angola e Moçambique. O pano caiu nesse dia. Em Adis Abeba nasceu a Organização da Unidade Africana, o nacionalismo africano entrava na rampa de lançamento, todas as soluções moderadas se tornaram questionáveis, indesejáveis.

Há, por conseguinte, todo o interesse em fazer o registo desta obra como documento singular onde são desveladas todos as iniciativas que precederam soluções pacíficas para a independência da Guiné.

(Continua)

(*) Embaixador Luiz Gonzaga Ferreira, uma carreira que se iniciou em Dakar, que passou pelo Congo, Líbano, Cuba, Bruxelas e Bulgária.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6857: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (5) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6866: O Nosso Livro de Visitas (97): José Pinto Ferreira, ex-1º Cabo Radiotelegrafista, CCS/BCAÇ 237 (Tite, Julho de 1961 / Outubro de 1963): Evocando o lendário Cap Curto (CCAÇ 153, Fulacunda, 1961/63)


Vila Real > Agosto de 1963 > CCAÇ 153 (Fulacunda, 1961/63) > O regresso a casa... Na foto, o 1º pelotão... Repare-se no fardamento, o caqui amarelo...

Foto:  Cortesia de João Baptista (2008), autor do blogue Fulacunda (entretanto falecido)

1. Mensagem do nosso leitor José Pinto Ferreira


Data: 13 de Agosto de 2010 23:18
Assunto: Memória Viva (Postes 2752, 3717, 3724, 3726 e 3731 (*)

Caros amigos:

Permitam-me que os trate assim. Chamo-me José Pinto Ferreira, fui nascido, baptizado e criado até aos 14 anos na freguesia de Ariz, concelho de Marco de Canaveses. Após aquela idade fui pregar para outra freguesia à procura de mais e melhores oportunidades de conquistar um futuro mais apetecível.
Já crescidinho regressei à terra natal onde resido, actualmente na Rua do Canto, nº 38,  4625-037 Ariz, Marco de Canaveses, com o telefone nº. 255589702, e em alternativa o telefone em horário laboral, nº.255589380.

Feita esta apresentação, um pouco corriqueira, vamos ao que me interessa colocar-vos à consideração e que entendi titular de Memória Viva.

Fui militar, classe de 1959. Pertenci á Arma de Engenharia, Batalhão de Transmissões , tendo sido telegrafista no R.E.2,e posteriormente no Centro de Transmissões do Quartel General da 1ª. R.M., nos anos 60/61. Neste Centro de Transmissões fui escravo da especialidade que tinha, trabalhando de noite e dia, com prevenções sucessivas como quando do assalto ao Santa Maria.

Em Julho/61 fui para a Guiné integrado no Comando do BCAÇ 237,aquartelado em Tite até Outubro/63.

Depois do que acima fica dito, quero dizer-lhes que a Guerra da Guiné merece ser contada sem paixões nem vaidades. Quase diariamente corro a persiana e espreito a janela do Vosso Blogue, o que me permite dizer ter a opinião de alguma crítica ao que é dito nos Postes referenciados.

Fui telegrafista muito activo ao serviço do Comando do BCAÇ 237, o que me permitiu assimilar algumas verdades nunca desmentidas. Dito isto, peço que aceitem e reflictam no que se diz nos Postes acima referidos:

(i) O Comandante da CCAÇ 153 foi o Capitão José dos Santos Carreto Curto, aquartelado em Fulacunda. Era um oficial corajoso, visto como inimigo fidalgal pela Rádio Conakry. Nunca terá cortado cabeças a ninguém, mas tão só sido acusado injustamente de um acto menos digno que terá sido praticado por um seu subordinado no IN, morto quando fugia para o Rio. ACTOS REPELENTES, sem confirmação,  não devem ser credibilizados.

(ii) Mudando o tema, quero dizer que as tropas que foram para a Guiné a partir de 1961 também eram portuguesas. Não tiremos a Verdade à História e saibamos com humildade dignificar os que foram antes, mas também os que partiram depois.

(iii) Para terminar digo-lhes que até hoje não me apercebi que alguém tenha referido o ex-Comandante Militar da Guiné, Coronel Bessa. Este Comandante visitou Tite em Janeiro/63, dia seguinte ao ataque do Quartel [23], tendo sido afrontado pelo Comandante do BCAÇ 237,  José António Tavares de Pina, de que ou resolvia rapidamente o problema da falta de meios humanos do Batalhão, ou arreava ferros e os seus homens fariam o mesmo.

Adeus,  Amigos

Até Sempre (**)

2. Comentário de L.G.:

Já em tempos, mais exactamente em 23 de Abril deste ano, fui contactado,  por telefone, pelo José Pinto Ferreira,  natural de (e residente em) Marco de Canaveses, concelho com o qual de resto tenho afinidades, pelo casamento e pela amizade. No essencial, o José Pinto quis dar-me alguns esclarecimentos sobre o Cap Inf José Curto, comandante da CCAÇ 153 / BCAÇ 237, subunidade que estava sediada em Fulacunda, aquando do ataque a Tite em 23 de Janeiro de 1963, data tradicionalmente tida como a do início da guerra na Guiné.

Sobre a lenda do então Cap Inf José Curto (de que eu própio me dei conta na visita que fiz ao Cantanhez, no início de Março de 2008, aquando realizaçãodo Simpósio Internacionalde Guiledje, Bissau, 1-7 de Março de 2008), o ex-1º Cabo Radiotelegrafista contou-me o que sabia, nestes termos:  houve um guerrilheiro que foi morto, já lá as bandas do Cantanhez, num ataque de surpresa a uma das barracas do PAIGC. Ao que parece, era um tipo importante da guerrilha, que estava no ínicio da sua organização, e que foi reconhecido pelo guia ou por um caipaio. Estávamos no início da guerra, com todo o sul já polvorosa. Um militar da companhia terá, à revelia, do seu comandante,  decepado o cadáver, para trazer, para Fulacunda,  uma prova da sua eliminação física.

Este terá sido o princípio da lenda... O capitão passou a ser o diabo, o terror do sul da Guiné, segundo a Rádio Conacry. Para o José Pinto, o capitão José Curto era um militar corajoso que foi apanhado pelo eclodir da guerra de guerrilha no sul (Regiões de Quínara e Tombali), e para a qual as NT estavam muito pouco ou nada preparadas, em termos humanos, psicológicos e militares... O raio de acção da sua companhia ia de Fulacunda a Cacine (onde tinha um Grupo de Combate!).

 Atenção: ele, José Pinto,  não presenciou este acto, "ouviu contar" à malta da companhia (que pertencia ao mesmo batalhão)... Fiquei de voltar a falar com ele, desta vez pessoalmente,  em Ariz, o que até agora ainda não se proporcionou... Recebo agora este mail em que ele volta a reabilitar a memória do Cap José Curto (hoje general reformado, ao que ele me diz).

Fico na dúvida se o José Pinto quer integrar a nossa Tabanca Grande. Se sim, faltam-nos as duas fotos da praxe. Terei muito gosto em inscrevê-lo como membro do nosso blogue, para mais sendo um homem da minha segunda terra. Fico, pois, à espera de notícias. Entretanto, para a semana talvez o possa encontrar pessoalmente.

Ao nosso blogue interessa apenas a verdade dos factos. Como é nossa norma, não fazemos juízos de valor sobre o comportamento, individual, de nenhum combatente da guerra colonial na Guiné, muito menos dos nossos camaradas operacionais (de soldado a capitão).

Sobre o episódio acima narrado, tenho uma outra versão, mais consistente e válida, de um graduado da própria  CCAÇ 153, e que estava com o seu comandante, Cap Inf José Curto,  nesse dia e local, e que portanto é uma testemunha privilegiada. Sei que, depois do regresso à metrópole, em meados de 1963, o pessoal da CCAÇ 153 nunca conseguiu reunir-se e muito menos com o seu comandante, sobre o qual de resto esse graduado confirma a opinião do José Pinto de ser um "oficial corajoso".

O nome deste camarada não será divulgado. Poderá no entanto vir a integrar a nossa Tabanca Grande, no caso de aceitar o meu convite. Até à data só tínhamos notícia do João Baptista, Fur Mil da CCAÇ 153, e açoriano, autor do blogue Fulacunda, mas infelizmente já  falecido há um ou dois anos.
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Notas de L.G.: