quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6846: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (6): O Cabo Felgueiras

1. Mensagem do nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 10 de Agosto de 2010:


Memórias boas da minha guerra (6)

O Cabo Felgueiras

Chamava-se Joaquim Freitas, mas era mais conhecido por Felgueiras, por ser natural dessa terra. Foi dos melhores militares que conheci. Além de manejar bem a arma G3 e a Metralhadora, era um mimo na utilização da Bazuca. Incutia muita confiança nos companheiros, porque respondia ao inimigo sempre da melhor forma. Apontava invariavelmente para o ponto de onde vinha o ataque. Esteve sempre nos principais confrontos, sem se esquivar. Se era destemido (estou a lembrar-me de quando se lançou a salvar o Banharia, com uma granada de fumos activada no seu bolso), ele era ainda o primeiro a ajudar os colegas em dificuldades, chegando a transportá-los às costas.

Também era brincalhão e provocador e, por isso, estava sempre ligado às borgas e às discussões. Era um líder entre a malta da caserna. Porém, tal como os demais, deixou na terra a sua amada, de quem recebia amiúde a esperada correspondência. Confessou-me que a futura sogra não gostava dele e, com ele ausente, iria fazer tudo para a filha o largar. Quando eu o via a dar chutos nas ervas e tudo o que lhe aparecia pela frente, já era sabido: más notícias. Então Felgueiras, que se passa? - perguntava eu. E ele, normalmente respondia – A mulher de bigode fode-me. Era a mãe da namorada. E lá adiantava que devia andar ali mouro na costa, porque “aquela filha da puta” andava a meter a filha na convivência de outro pretendente, um parente afastado, bom cristão e herdeiro de muita terrinha para trabalhar. Ora o Felgueiras que tinha bom aspecto e era cativante tinha capacidade suficiente para dominar a sogra (o sogro era um morcon, que não riscava nada). E, como estava longe, desesperava. O tempo foi passando e ele lá foi lutando para merecer aquele amor sofredor, que o acompanhou durante os dois anos de degredo e de revolta.

Em Dezembro de 1967 tivemos quase 2 semanas de descanso, em Bolama, a seguir à Operação “Quebra Vento”, realizada em Gubia de Empada, para implantação de um aquartelamento. Recordo-me ter dito ao Felgueiras que havia um macaco pequenino no Bar da Messe e que eram um espectáculo as habilidades que ele fazia. E que o militar, dono do macaco, tinha tido o desplante de afirmar que estava para ali desterrado, enquanto nós andávamos de um lado para o outro, a conhecer a Guiné.

Quando saímos de Bolama, apareceu-me o Felgueiras todo orgulhoso e satisfeito, dizendo que tinha uma prenda para mim. Deitara a mão ao macaco e agasalhou-o. Não faço ideia como passou na Porta de Armas. Não lhe disse nada, mas senti um certo gozo. A proeza do Felgueiras não tinha ficado por ali. Como a ideia dele era oferecer-me o pequeno saguim, o Felgueiras não quis ficar de mãos a abanar e conseguiu trazer do Bar da Messe outro macaco, também domesticado, mas maior.

Na minha Companhia, uma das principais figuras era um 1.º Sargento, odiado por todos. Mandava na Secretaria e controlava a parte financeira. Como cobiçava o lugar do Vagomestre, a cargo do furriel assim designado, responsável pela gestão da alimentação dos militares, tratou, na primeira oportunidade, de o tirar do posto. Este lugar era, na mão dos desonestos, uma consabida fonte de receita. Não se soube como, mas não demorou que as contas do Vagomestre acusassem um saldo negativo e, pior que isso, teve de repor o dinheiro à sua custa, sem lhe darem qualquer possibilidade de recuperação na gestão. A família teve que lhe mandar o dinheiro para a Guiné.

Ninguém gostava desse 1.º Sargento e ele também não perdoava a hostilidade generalizada. Cada um fazia questão de ostensivamente o ignorar. E ele, para se pagar, lá procurava cuspir ódio e veneno contra os milicianos. Foram várias as histórias tristes deste sujeito, que procurarei lembrar noutro local.

Faltavam menos de 15 dias para o regresso. Estava eu de serviço no QG – Quartel General - e as orientações superiores eram que, numa Companhia de 150 militares, apenas um terço estava autorizada a sair do Quartel. Ordens são ordens, mas nem sempre se levavam à risca, especialmente em quartel de maior acalmia. Ora, os soldados, mesmo sem dispensa, procuravam “desenfiar-se”. Por norma e lealdade, antes do “desenfianço”, cada um perguntava se podia sair. E eu só lhes dizia: Se acontecer alguma coisa, avisem logo, porque tenho que fazer o relatório das anomalias antes das 8,00 horas – hora do render da guarda. Todos os dias se fazia a chamada do recolher obrigatório. Ao ver que o terço estava “aumentado”, quando era eu o Sargento Dia, puxava a formatura para debaixo de umas árvores enormes, junto ao refeitório. Com menos luz, e com as sombras das árvores, aquela formatura parecia muito maior. E para mais realce, à aproximação do Oficial Dia, lá ia chamando, em voz bastante alta, números aleatórios, que, invariavelmente, recebiam a resposta de pronto! Sem o deixar chegar, e com todos em sentido, gritava eu para o Oficial de Dia - Vossa Senhoria dá licença? Ao que ele respondia, perguntando: - Está tudo? - Sim, respondia eu.- Então, mande. E, logo de imediato, destroçavam uns para cada lado, sem hipótese de recontagem. Eu não conseguia juntar mais que 23 ou 24 presenças! Era arriscado, mas, como estávamos nos últimos dias, sentia-me bem com a satisfação da “malta”.

- Aquele que vai ali não é o Tripeiro? - perguntava o 1.º Sargento ao Sargento que o acompanhava, ambos a passear na avenida do Pilão. - É mesmo, respondeu-lhe. - Ouve lá, ó Tripeiro, anda cá - chamou - Como é que andas cá fora, se estás detido, e, claro, sem qualquer dispensa? - Sabe, é o Furriel Silva que está de serviço e com ele não há problema. É um gajo porreiro – confiou o Tripeiro. Ah, sim? Então quando é o Furriel Silva, é tudo à balda? – questionava de fala amolecida o Viscoso, que, para melhor tirar dele, aproveitou para lhe pagar uma cerveja no Bar Jagudi. Era caso de admiração, porque o somítico, para não gastar um tostão, só bebia água del cano. Cerveja só se alguém lhe pagasse. E assim, estando no Bar a beber também se mostrava à nossa tropa, a confraternizar!

- Silva, acorda que estás fodido. O detido, o Tripeiro, foi visto pelo Primeiro perto do Pilão – alertou-me, bastante aflito, o Campos. Virei-me para o outro lado e, meio a dormir e meio acordado, devo ter-lhe respondido mais ou menos: - Caga nisso que eu cago no Primeiro.

Seriam cerca de 8,30 entraram no meu quarto o Machado e o Faria, e em tom muito sério, dispararam: - Olha que o Primeiro esteve à espera para ver se apresentavas faltas até ao render da guarda. Agora está a fazer uma participação contra ti, por o Tripeiro andar a passear em Bissau. Já mandou chamar o Tripeiro para depor. E aquele gajo, que gosta tanto de ti, vai-te foder. Mexe-te rapidamente.

Vi num relance a gravidade da situação. Mas, que hei-de fazer? questionava-me repetidamente. Tantas vezes debaixo de fogo, estava afinal numa situação mais negra. Tudo de mau vinha à cabeça, e por momentos fiquei paralisado. Qualquer processo naquela altura iria obrigar-me a ficar na Guiné, como tantos outros condenados, e precisamente no momento mais ansiado e carregado de projectos. Havia de aparecer aquele filho da mãe a lançar mais uma vez a peçonha, a alimentar a sua inveja e a gozar com o sofrimento alheio.

Assaltou-me uma ideia. Dirigi-me rápido à caserna e vi que os soldados pareciam já estar à minha espera, adivinhando o que me ia na mente. Logo ali à entrada, perguntei em voz alta: - Atenção malta, Vocês viram ou não viram o Tripeiro, ontem, no recolher obrigatório?

A resposta surgiu unânime e categórica. - Vimos. - Por acaso ele até estava mesmo à minha beira – respondeu logo em voz alta e firme o Cabo Felgueiras. - Ok, era só isso. E afastei-me. (Por sinal o Cabo Felgueiras não tinha estado na formatura do recolher.)

Ora o certo é que o Primeiro não conseguiu testemunhas para promover o processo. E o próprio Tripeiro, chamado a depor, também negou tudo, incluindo a cerveja que tanto havia custado ao nosso querido Primeiro Sargento.
Confesso que esta foi das maiores satisfações que senti em todo o meu serviço militar.

Depois do regresso não vi mais o Felgueiras. Que estava em França e, às vezes, vinha gozar férias em Agosto, informou um irmão. Tenho pena de não o poder abraçar.
Que sejas muito feliz e que tenhas dominado a velhota de bigode!

Silva da Cart 1689

1 - Na piscina de Bolama ( Berguinhas, Silva e Miranda ) - Novembro/Dezembro 1967.

2 - No mato, cerca de Catió, com Sedas à minha direita e Felgueiras à minha esquerda) - Fev 68.
__________

Nota de CV:

Vd. poste de 4 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6824: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (5): Morteiradas em Canquelifá

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Jose Silva
Saudações e boa saude. Li com muita atenção o mail, principalmente sobre o 1ºSargento. De facto só conheci um 1º que era impecável, salvo erro da Cart.566, comp. que esteve em Bissorã com a minha Cart.643, amigo de todo o pessoal, honesto e muito respeitado desde o soldado ao capitão, era a chamada agulha no palheiro.O nosso primeiro 1º,643, era de bom trato mas muito"unhas de fome", de tal forma que teve a ousadia de fazer deslocar a mulher e uma filha com cerca de 6 anos, a morar em Bissorã, onde com alguma frequência era palco de ataques, isto para ter de borla a casa e claro a alimentação, em que se pendurava sempre.
Quando, e só passados 12 meses, a situação piorou, lembrou-se de arranjar uma ulcera duodenal amiga,
que o fez baldar-se para Bissau.
O segundo 1º, e por desconheçer o nosso cap.Silveira, começou a cozinhar umas caldeiradas nas contas da comp.,mas foi logo posto ao nível, quando a meio de um pagamento de pré, solicitou ao cap. para assinar a folha do livro, que por "acaso" estava toda a lápis, passou a vergonha de ser chamado á atenção em frente de todo o pessoal.
Havia também na EPSM-Sacavém, dois 1ºs, um era alcunhado de sabão amaraelo, devido á cor do cabelo, que no primeiro pré e a cerca de 300 mancebos, foi feito o desconto de 13.00 esc. a cada, porque faltaram umas colheres no refeitório, enfim este rol não parava.
O teu 1º era pior, porque além de tudo isto, era mau, só á palmada, mas quem tinha a culpa? Claro eram
os com.comp.talvez porque tivessem telhados de vidro.
Um abraço, Rogerio Cardoso
ex.Fur.Mil.Cart643-Aguias Negras

Carlos Vinhal disse...

Caros camaradas
Quero aproveitar a boleia, já que se fala de Sargentos responsáveis pelas Companhias, para prestar homenagem ao 1.º Sargento João da Costa Rita da CART 2732, hoje com quase 80 anos, açoriano do Faial a viver em S. Miguel, com quem ainda falei há dois dias por telefone. Mal me ouve diz com aquele sotaque açoriano: - Como vai senhor Carlos.

Nunca me hei-de esquecer de quando dizia ser o único branco dos Açores e nos falava da planta do macarrão, naquelas ilhas abundante.

Era (é felizmente) um óptimo camarada.

Um abraço
Carlos Vinhal

Anónimo disse...

Caro Silva:
Houve muitos Felgueiras, felizmente, que, tornando menos penosa a vida dos seus companheiros, tornaram muito pequeninos aqueles que, mesmo em contexto de guerra, nunca perdiam a sua inata tendência para a agiotice e sacanice.
Carvalho de Mampatá