quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6824: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (5): Morteiradas em Canquelifá

1. Mensagem do nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 25 de Julho de 2010:

Olá Camaradas
Aí vai mais uma história verídica, tal como as anteriores, sobre as "Memórias boas da minha guerra".

Junto foto de mais uma brincadeira do nosso grupo.
A continuação de Boas Férias para todos

Com um abraço do
Silva da Cart 1689



Todos os dias 26 de cada mês havia festa. Era uma forma de se assinalar mais um mês de degredo. Desta vez, em Canquelifá, junto à messe, festejava-se o 17.º com um "Casamento". E para a nossa história lá vão os nomes: da esquerda para a direita: engravatado, de bigode, Miranda (o padrinho), Valente (o irmão da noiva), Berguinhas (a noiva), Matos (o noivo), Vagomestre (a madrinha), Machado (o padre), Borges (o sacristão), Fachina Guisande (o moço da agua-benta), Fachina Canedo (o curioso, em tronco nu) e Escriturário Cunha (o curioso, também em tronco nú. Em baixo, pela mesma ordem: - Bonifácio (o convidado), Massamá (o menino das alianças) e Cepa (o reporter).



Memórias boas da minha guerra (5)

“Morteiradas” em Canquelifá


- Moniz, levanta-te que já é tarde. – dizia-lhe eu, enquanto me penteava frente a um minúsculo espelho pendurado ao lado de uma pequena janela do nosso quarto.

Dali se via o largo da parada bem como a esplanada da “messe”, que era um prolongamento aberto do bar e da cozinha. Por detrás, era o quarto do 1.º Sargento e, ao lado, havia mais dois quartos, perfazendo no total seis divisórias.

- Olha que a nossa malta já está à espera. – insistia eu, enquanto olhava o 1.º Sargento, que estava sozinho, a tomar, calmamente, o seu pequeno almoço. Tinha dois soldados a servi-lho principescamente, como se tratasse de um General ou de um Don Corleone. E como estava a ser observado pelos soldados, parecia querer exibir, orgulhosamente, a sua importância, aliás, bem vincada através da sua “tromba” de enfadado, que apresentava e, também, nas suas ordens mesquinhas e na exuberância dos seus gestos e palavras. – Ó faxina! Traz-me um pacote novo de manteiga porque este já não está bom. E voltava a ordenar – Ó faxina! Arranja-me pão torrado, que este já está frio. Ó faxina! Este leite está quente de mais. Ó faxina! Este café está uma porcaria. Etc., etc., etc..

O Moniz tinha aquele defeito de não querer sair da cama, próprio de quem nunca tem pressa para se deitar. Era muito educado, muito certinho e incapaz de provocar quem quer que fosse. Perante a minha nova insistência, o Moniz mexeu-se, esticou-se e fez o habitual acto matinal: soltou o seu enorme e único peido diário, acumulado (cuidadosamente) durante 24 horas. Ora, como nem os quartos nem a messe tinham tecto, aquilo repercutiu-se altamente em todas as direcções.

Quisera o acaso que isso acontecesse precisamente quando o Sargento levantava, delicadamente, a sua chávena de leite com café, em direcção à boca. Ele, que até esticava o dedo mindinho para fora, para dar um toque mais aristocrático aos seus movimentos, estremeceu e quase não controlava a queda da chávena. Gritou:

- Lá estão eles a bater com as patas no estábulo. Vocês não ouviram? – perguntou aos humildes faxinas, que já lutavam para aguentar o riso.

Mas ele lá procurou explorar a situação a seu favor e foi barafustar e manifestar a sua indignação a caminho da Secretaria.

Ainda não eram dez horas da manhã já o Cabo Escriturário andava a convocar os furriéis para uma reunião ao fim da tarde, por ordem do nosso Capitão.

Todos perceberam que estávamos perante mais uma denúncia do Sargento e que o tema seria, seguramente, o peido incógnito e descontrolado, oriundo de um dos quartos dos furriéis.

A reacção não se fez esperar: O Furriel Vagomestre, que nutria uma antipatia extrema pelo referido sargento, preparou uma feijoada e forneceu cebola crua para a sobremesa. Ainda estou a ver a malta a trincar cebola como se fossem maçãs, enquanto jogávamos o Ramy (desporto favorito, ao principio da tarde). E para atenuar o sabor, bebia-se muita Coca-Cola, com algum Whisky.

A reunião decorreu numa pequena sala anexa à Secretaria, que o Capitão usava como gabinete. Muito educadamente, o Capitão dissertou acerca da problemática da engrenagem da grande máquina a que todos pertencem. E vincou bem que todos são peças importantes dessa máquina, por muito pequenas que sejam. E dizia:

- Qualquer grãozinho de areia colocado numa das rodas, pode implicar a sua paralisação… bla, bla, bla... E por fim chegou lá. – Vem isto a propósito de uns ruídos estranhos que estão a aparecer, inconvenientemente, na zona de repouso dos furriéis... bla, bla, bla…

Como é evidente, havia já um aroma insuportável. O Capitão fez um apelo apressado para que todos se entendessem harmoniosamente e que os exageros não comprometessem a grande máquina.

Logo que saímos do gabinete foi um alívio, ainda que bastante silencioso. Mas, à medida que nos afastávamos do gabinete, iam aumentando os decibéis de uma orquestra indesejada.

Claro que foi uma noite inesquecível. Foram mais de 4 horas de fogo constante. Não havia ninguém que não sentisse necessidade e vontade de expressar as suas razões, ainda que pelas vias menos honrosas. Desde o Moniz, que queria corresponder minimamente à solidariedade da malta, até ao esforço do Dias que se colocou sobre a cama na posição germânica a fazer de morteiro (e a beneficiar da força da gravidade, para atingir um ritmo quase de rajada). Foram todos uns “heróis”.

E quando se notava um certo desperdício de “morteiradas”, apontadas todas para o quarto do Sargento, lá estava alguém a dar as coordenadas: - MAIS CURTO E MAIS PARA A DIREITA. E, do outro extremo do edifício, também corrigiam: - MAIS COMPRIDO E MAIS PARA A ESQUERDA.

(Silva da Cart 1689)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6795: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (4): A cabra do Berguinhas

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