terça-feira, 18 de setembro de 2012

Guine 63/74 - P10404: In Memoriam (127): Luiz Goes (1933-2012), figura incontornável da canção de Coimbra, foi ten mil médico, BCAÇ 506 (Bafatá, 1963/65), e conviveu com o nosso camarada António Pinto




Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > BCAÇ 506 > Abril de 1964 > Da esquerda para a direita: o alf mil António Pinto (, membro da nossa Tabanca Grande, que vive atualmente em Vila do Conde), o Mário Soares, o popular comerciante de Pirada, o alf ou ten mil médico Luiz Goes (já então conhecido como um dos grandes e promissores  intérpretes da canção de Coimbra)  e o alf mil Spencer.  Foto do álbum de António Pinto.

Luiz Goes acaba de falecer, em Mafra, aos 79  anos, vítima de doença prolongada, sem que conseguíssemos prestar-lhe, em vida, uma pequena homenagem, na série Os Nossos Médicos...Faltaram-nos depoimentos de camaradas, seus contemporâneos, no TO da Guiné (,com a honrosa exceção do António Pinto, seu camarada de batalhão). O seu funeral será amanhã, em, Coimbra, onde os seus mortais restos deverão chegar por volta das 13h00. A foto que publicamos da Guiné é. até agora, a única que conhecemos dele como militar, disponível no nosso blogue.

Foto: © António Pinto (2007). Todos os direitos reservados.


Resenha biográfica:

(i) Luiz Fernando de Sousa Pires de Goes [, foto à esquerda, cortesia do blogue  Guitarra de Coimbra III], cantor, poeta e compositor português,  nasceu a 5 de janeiro de 1933, em Coimbra, no seio de uma família com sensibilidade e cultura musicais;

(ii) Sem nunca se ter profissionalizado como artista, é uma das principais referências da canção de Coimbra e um dos artistas portugueses  com maior currículo internacional (há quem o considere mesmo a melhor voz da canção de Coimbra da sua geração);

(iii) Começou a cantar e a compor muito cedo por influência do seu tio, o coimbrão Armando Goes,  sendo já aos 14 anos considerado um menino-prodígio;

(iv) Ainda na adolescência chegou a seracompanhado pelo grande Artur Paredes, pai de Carlos Pasresm, duas referências maiores da guitarra portuguesa;

/(v) Aos 19 anos gravou o seu primeiro disco, a convite de António Brojo;

(vi) No liceu foi colega e amigo de José Afonso e António Portugal, tendo gravadovários álbuns em conjunto com ambos; mas a sua maior influência sempre foi Edmundo Bettencourt;

(vii) Licenciou-se em Medicina, em Coimbra, em 1958;

(viii) Nos seus anos de estudante cruzou-se com muitas figuras do meio literário e cultural (v. g., Manuel Alegre, Miguel Torga, Bernardo Santareno, Teolinda Gersão, Yvette Centeno);

(ix) No final da década de 50 formou o Coimbra Quintet, com os instrumentistas António Portugal, Jorge Godinho, Manuel Pepe e Levy Batista;

(x) O disco Serenata de Coimbra (1957) é um dos álbuns mais vendidos da música portuguesa, em Portugal e no estrangeiro; o referido quinteto teve uma projeção ímpar, mas uma vida breve; [, imagem da capa do LP,  Philips, 1957, à direita, cortesia do blogue A Nossa Rádio: "Serenata de Coimbra é o primeiro LP de música portuguesa a ser lançado à escala internacional (pela Philips) e ainda hoje o disco de música de Coimbra mais vendido em todo o mundo" ];

(xi) Com a mobilização de Luiz Goes para a guerra colonial, e já casado (1º casamento), o  grupo desfez-se;

(xii) Luiz Goes é colocado na no TO da Guiné, como alf mil médico (BCAÇ 506, Bafatá, 1963/65) (*), tendo passado pelos piores sítios da zona leste; mas essa experiência, dura, recorda-la-á mais tarde, em entrevistas, foi também uma aprendizagem da fraternidade,solidariedade e camaradagem entre combatentes;

(xiii) No regresso, muda-se para Lisboa, onde exerce a profissão de médico-estomatologista  até à sua reforma (em 2003);

(xiv) É um dos artistas portugueses mais internacionais;

(xv) Tem um extenso reportório, com muitas canções da sua autoria, algumas delas com mensagens subliminares de oposição ao regime salazarista; entre outros temas, ficaram célebres "Homem Só", "Meu Irmão", "Balada do Mar", "É preciso acreditar", "Canção do Regresso", "Canção da Boneca de Trapo", "Canção para quase todos", "Canção Pagã" ou "Cantiga para quem sonha".

(xvi) Da sua extensa discografia, destacam-se os álbuns:

Coimbra do mar e da vida (1969), 
Canções de Amor e de Esperança (1969) 
Canções para quase Todos (1983);

(xvii) Em 1998 foi editado, em livro, uma autobiografia sua:  Luiz Goes de Ontem e de Hoje, de Luiz Goes,  com a colaboração do poeta e seu amigo  Carlos Carranca (Lisboa, Universitária Editora, 43 pp.):

(xviii) Em 2003, a Emi-Valentim de Carvalho lançou, numa caixa de quatro CDs, a sua obra completa (Canções Para Quem Vier);

(ix) Luiz Goes, que sempre defendeu que não existia um fado coimbrão, mas sim uma balada ou uma canção de Coimbra, recebeu as mais altas distinções, entre as quais a de Grande Oficial da Ordem do Infante Dom Henrique, a Medalha de Ouro da Cidade de Coimbra, a Medalha de Mérito Cultural da Câmara Municipal de Cascais e o Prémio Amália Rodrigues 2005, na categoria Fado de Coimbra.

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Fonte: Adaptado de:

Luiz Goes. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2012. [Consult. 2012-09-18].
Disponível em http://www.infopedia.pt/$luiz-goes

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Notas do editor:

Último poste da série > 5 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10334: In Memoriam (126): António Rodrigues Soares da CART 1689/BART 1913 (Guiné, 1967/69)


(*) Nota sobre o BCAÇ 506, coligida pelo nosso colaborador permanente José Martins:

BCAÇ 506 (1963/65)

(i) Mobilizado no Regimento de Infantaria 2, em Abrantes, era seu Comandante o Ten Cor Inf Luís do Nascimento Matos;



(ii) Desembarcou em Bissau em 20 de Julho de 1963, recebendo os elementos do recompletamento do BCAÇ nº 238, que rendeu, assumindo a mesma zona de acção, que passou a ser designada por sector D;

(iii) Em 1 e 8 de Agosto de 1963 e 8 de Julho de 1964, foram criados no sector, pela chegada de novas unidades, os subsectores de Piche, Xitole e Fajonquito; a zona de acção foi reduzida em 24 de Agosto de 1964 dos subsectores de Bambadinca e Xitole, e aumentada do subsector de Pirada (onde se incluía Bajocunda) em 29 de Outubro de 1964;

(iv) Em 11 de Janeiro de 1965 a zona D passou a designar-se por Sector L2, abrangendo os subsectores de Bafatá e Fajonquito;

(v) Foi rendido pelo BCAV  nº 757 em Bafatá e regressou à metrópole em 29 de Abril de 1965.

Guiné 63/74 - P10403: Do Ninho D'Águia até África (10): Minas na estrada (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (10)

Minas na Estrada

O “Mister Hóstia” foi baptizado com este nome, por dois motivos. Primeiro, porque andava sempre com uma bíblia pequenina, daquelas de bolso, na mão, e segundo, porque era parecido com determinado treinador, a quem chamavam Mister qualquer coisa, de uma equipa de futebol da capital de Portugal que nessa altura era muito popular e algo conhecida na europa.

Era muito religioso e na caserna onde dormia com os outros militares, não perdia oportunidade de recitar e cantar partes dessa mesma bíblia, por horas, até o mandarem calar ou algum companheiro, mais afoito, lhe arremeçar com um travesseiro. Uma vez, o Curvas, alto e refilão, até lhe queria mandar com um banco, feito de madeira de uma caixa de munições, ao mesmo tempo que lhe dizia na sua linguagem rude e malcriada:
- Ou te calas com essa merda, ou parto-te já este banco nos cornos!

Quem o salvou foi o Trinta e Seis, baixo e forte na estatura, que se intrometeu e disse ao Curvas, alto e refilão, com ar grave e decidido:
- Quanto mais velho estás, mais bruto te tornas. Cala-te e vê se ouvindo isto purificas a tua alma. Ao que o Curvas, alto e refilão, logo responde:
- A Alma, uma merda. A minha alma, se é que isso existe, já está no inferno, desde que a desgraçada da minha mãe me abandonou quando era criança.

Pois o Curvas, alto e refilão, não tinha família, tinha sido abandonado pela sua mãe, que diziam andava “na vida”. Era oriundo de uma aldeia da Estremadura, andou primeiro encostado a uns vizinhos que lhe davam de comer, e dormia num palheiro desses mesmos vizinhos. Depois já mais crescido, meteu-se à estrada caminhando e estendendo a mão, pedindo comida aqui e ali, roubando fruta e outras coisas, até que veio parar à capital, talvez à procura da mãe. Na capital, conviveu com rapazes da rua, alguns nas mesmas condições, sem qualquer família, começou a usar uma caixa de engraxar sapatos por mais ou menos oito horas, pois a referida caixa pertencia a uma espécie de “sindicato”, entregavam tanto pelo seu aluguer, tanto fazia que trabalhassem ou não, e entre eles diziam:
- Esta caixa não tem escovas boas, da próxima, quando for levantá-la ao “sindicato”, quero a “número cinco”, é mais alta e tem escovas das novas e boas.

Portanto a referida caixa era uma peça de ferramenta que trabalhava vinte e quatro horas por dia, mas em diferentes mãos, tal como se fosse um táxi, de uma importante empresa.

O seu corpo alto e curvado para a frente, donde lhe veio o nome Curvas, talvez fosse derivado a ter cescido, durante anos, curvado, trabalhando na caixa de engraxar sapatos. O Curvas usava a referida caixa, mais ou menos das dez da noite até às seis da manhã, em zonas pouco recomendáveis a uma criança da sua idade, como por exemplo, em frente e dentro de bares que estavam abertos toda a noite, em frente a casas de prostituição, em ruas mal iluminadas, mas que tinham movimento àquela hora, e em outros locais, pouco recomendáveis, pelo menos como já dissemos, a uma criança. Daí a sua linguagem reles.

Passado uns anos sabia como roubar uma carteira num bolso dum casaco ou dumas calças, sem o dono se aperceber, como pedir esmola a um turista em francês ou inglês, sabia os locais na capital onde a vida lhe era mais fácil, sabia os sintomas e como podia vigarizar uma pessoa chegada recente à capital, vendendo-lhe a “Estação do Rossio”, enfim, tinha a escola da rua. Claro que pouco a pouco, conforme aumentava os seus conhecimentos naquele ambiente de rua, também aumentava a sua ficha na esquadra da polícia, pois, por dezenas e dezenas de vezes foi apanhado na hora certa, mas no local errado. Quando chegou a altura em que as autoridades pensaram que ele tinha a idade, recomendaram-lhe que se deveria apresentar num quartel da cidade para cumprir a tropa. Assim fez. 

Recebeu o tal treino de como defender-se e saber matar, que ele já sabia de cor e salteado. Foi defender a sua mãe Pátria, pois a mãe verdadeira, abandonou-o e “andava na vida”, dormindo todos os dias em camas diferentes, levando beijos, que no lugar de carícias eram mordidelas de escorpião, e carícias no seu corpo, que em lugar de atitudes de amor, eram apertões, que lhe deixavam marcas negras em todo o corpo, de pessoas desesperadas, que se queriam servir dela por uns minutos, e quando passavam a boca pelo seu corpo, pensavam que estavam a comêr um bife de uma vaca com carne de boa qualidade.

O Curvas, alto e refilão, não mais soube dela, se hoje a visse, não a reconhecia, pois talvez já estivesse a morrer com a doença de sífilis, que naquele tempo não perdoava, ou tivesse sido atirada ao rio Tejo, por não ter cumprido, com as regras do seu “chavalo”, que lhe dizia, com a boca a cheirar a tabaco e álcool de fraca qualidade, com as unhas tratadas, mas cheirando mal por todos os poros do seu corpo, pois o seu banho, era o perfume de qualidade baixa, que comprava aos ciganos, às vezes nem comprava, era o troco dos favores das “garinas” que tinha por sua conta, e com os olhos, sem qualquer brilho, postos nos seus, pensando que via na sua frente, uma vaca leiteira, que lhe devia de dar uns tantos litros de leite ao dia, lhe dizia, passando na sua cara, umas mãos, secas e amarelas pelo cigarro que sempre segurava entre os dedos, que a protegia, e que ninguém lhe faria qualquer mal, pois ele, era o seu dono e senhor, e que nessa noite, depois de trabalhar até alta madrugada, na rua, nos bares, ou num simples táxi, teria o privilégio, como prémio, de ir dormir com ele, num reles quarto de umas águas furtadas, que ocupava algumas horas durante o dia ou da noite, pois esse mesmo quarto, era um local de trabalho, servindo de ponto de encontro, para o serviço das suas “garinas”, que mantinha no mercado de prostituição.

Mas enfim, a mãe abandonou-o, talvez quando ele mais precisava dela, e juntamente com o Cifra, pois foram no mesmo barco, desembarcaram nesta província do então Ultramar Português, onde cumpriram a comissão juntos e foram amigos. Perdoem os leitores se me alonguei, mas todo este relato era o que o Curvas, alto e refilão, contava ao Cifra, em alguns momentos, em que lhe vinham algumas lágrimas aos olhos, e se recolhia, umas vezes sentado no chão, outras, deitado e encolhido no capim rasteiro, que existia em determinada área do aquartelamento, não muito distante do centro cripto, e que o Cifra, vendo-o lá, ia ao encontro dele, e o ouvia, às vezes por horas.

Depois de lerem este relato, compreenderão melhor algumas atitudes do Curvas, alto e refilão, em relatos seguintes, onde ele é o protagonista. Enfim, adiante e continuando, e falando do Mister Hóstia, que nesta altura, faz parte de uma coluna militar, que tem que viajar entre duas áreas, no interior norte. São zonas de combate.

A estrada, de terra batida, por onde vão passar é estreita e em alguns locais, além de alguma água existe capim e árvores rasteiras de ambos os lado, que quase a encobre. É um potencial local para uma possível emboscada, colocação de minas, ou fornilhos, pelo menos no momento em que podem transitar viaturas auto.

(A história da acção que se segue aconteceu na região do Oio, a saída foi de Mansoa e creio que iam a caminho da região de Mansabá, sendo descrita, logo à chegada ao aquartelamento, pelo Mister Hóstia e pelo Setúbal juntamente com os seus companheiros que todos os presentes no dormitório ouviram. Quando mais tarde o relatório passou pelas mãos do Cifra, que o traduziu em código, para ser enviado  para o comando territorial na capital da província, verificou que pouca diferença fazia do relatado.)

O Mister Hóstia, tal como o Setúbal e o Curvas, pertenciam a um pelotão de morteiros, já tinham alguma experiência de combate, e nessa manhã o Mister Hóstia, cheio de fé, pois meia hora antes de partirem já estava de joelhos, encostado ao mosquiteiro, em oração profunda, viaja agora com parte de uma companhia de intervenção, reforçada com alguns soldados naturais, que normalmente serviam de guias e tradutores, transportada em viaturas abertas, tipo quatro bancos compridos no topo da viatura, dois ao meio, de costas um para o outro, e por vezes dois mais, um de cada lado. A viatura estava coberta com sacos de areia na frente para sofrer menos com o impacto de possível rebentamento de uma mina, ou qualquer outro engenho explosivo. O Mister Hóstia nunca viajou na frente ao lado do condutor. O seu lugar preferido, nestas situações, era o segundo a contar de trás, num dos bancos do meio. Nem o primeiro, nem o terceiro, no segundo é que se sentia mais confortável.

As viaturas rolavam a uma velocidade muito baixa, talvez dez ou quinze quilómetros por hora. Devagar, mesmo devagar, era um calor infernal, um silêncio demasiado calmo. No espaço de segundos a coluna é flagelada por rajadas de metralhadora, seguida de forte rebentação. Uma rebentação estrondosa. O Mister Hóstia, só se lembra de, já no chão, na berma da estrada, sem capacete de protecção e sem a G-3, mas com os carregadores à cinta, apalpar a cabeça por diversas vezes, assim como o corpo na procura de sangue, o que felizmente não viu.

Abaixou-se o mais que pôde procurando esconder o corpo. Com o impacto da rebentação da mina ou qualquer outro engenho explosivo, na frente da viatura, quase todos os militares foram projectados e voaram para o chão. O barulho dos tiros que se seguiu à rebentação, era cada vez mais forte, vinham das árvores, lá ao longe. A seu lado, um militar, também já com uma certa experiência, o Setúbal, não parava de dar tiros na direcção das árvores, despachou todas as suas munições, as que trazia e as que o Mister Hóstia lhe deu. Passado uns longos dez a quinze minutos, o som dos tiros fica menos frequente, de parte a parte, até que terminaram.

Ouvia-se somente gemidos, alguns gritos de aflição e o som de qualquer coisa a arder, com algum fumo espesso que saía do que restava da frente da viatura.

O Setubal, levanta-se devagar, olha em volta e deita-se de novo ao lado do Mister Hóstia. Com as mãos na cabeça, exclama:
- Meu Deus, que desastre.

E tinha sido um desastre. Três mortos e sete feridos, alguns com balas no corpo. A frente da viatura destroçada pela rebentação do engenho explosivo, estava trucidada. Do Vouzela, que era o condutor, e do Madeira, que era o militar que ia a seu lado, foram recolhidas algumas partes do corpo. Recolheram os pés, com parte das pernas e parte da cintura, assim como alguma parte superior do corpo e da cabeça, que estavam protegidos pelas botas, cinto das cartucheiras e pelo capacete, que guardaram em dois casacos camuflados que o Setúbal e o Mister Hóstia despiram. Havia sangue, pedaços de carne humana colados ao que restava da frente da viatura, era um cenário que fez o Cifra arrepiar-se e perder a cor da cara, quando o Mister Hóstia, com as lágrimas nos olhos, e a tremer de emoção, lhe contou.

Um militar acabou de morrer nos braços do Mister Hóstia, as suas últimas palavras foram mais ou menos isto:
- Mister Hóstia, vou morrer, diz ao Cifra, meu amigo que mande todas as minhas coisas, mais aquilo que ele sabe, para a minha família em Portugal, que era de onde eu nunca devia ter saído.

Estas palavras, foram ditas devagar, aos soluços e com uma bondade nos olhos, que o Mister Hóstia não mais pode esquecer.

O Mister Hóstia, ainda lhe disse:
- Não morres nada, pois não tens qualquer ferimento. Mas a sua cara tombou para o lado e morreu. Este militar não mostrava qualquer ferimento à vista no corpo, mas ao virarem-no de costas, viram sangue e descobriram uma bala alojada nas costas, um pouco abaixo da clavícula, todos diziam que essa bala alojada no seu corpo não era motivo para morrer, mas possivelmente algum orgão lhe rebentou por dentro, com o impacto da rebentação da mina, ou minas, ninguém sabia.

Pedidos socorros, vieram dois helicópteros que recolheram o morto, o que restava dos outros mortos e alguns feridos com mais gravidade. Os feridos sem gravidade, assim como o resto dos militares, regressaram ao ponto de partida. Uns dias depois foram buscar o que restava da viatura, onde já faltavam algumas partes e onde estavam escritas legendas provocatórias e de intimidação aos militares, escritas a tinta amarela e verde pelos guerrilheiros, sinal de que o local tinha sido visitado antes. Esta estrada, que mais era um carreiro, que os militares usavam para encurtar caminho, não mais foi usada, pelo menos durante o tempo em que o Cifra, esteve na referida província. O Cifra colaborou com os militares encarregues de mandar as coisas deste militar morto para Portugal, incluindo um bocado do camuflado ainda ensanguentado que o militar usava, que o Mister Hóstia teve a coragem de cortar quando descobriu o buraco da bala no seu corpo. O Cifra colocou tudo dentro da mala que se encontrava debaixo da sua cama, mais aquilo a que se referia, que era um envelope com algum dinheiro, que era dele e o Cifra tinha guardado numa mala, num compartimento quase secreto do centro cripto, dinheiro este que ele recebia por ajudar algumas vezes na messe dos sargentos, e que, quando entregava ao Cifra, para lho guardar, dizia:
- Isto é para um começo de vida, quando regressar à Metropole.

Mas continuando, fechou a mala, amarrou-a com uma corda e foi enviado para a sua família em Portugal, creio com a ajuda do Movimento Nacional Feminino.

Na altura em que o Cifra recolhia todas as coisas na mala, incluindo o bocado de camuflado ensanguentado, o Curvas, alto e refilão, num ataque de fúria, agarra-se à cama desse militar, rasga o mosquiteiro, abraça-se ao colchão e grita em plenos pulmões:
- Eu mato-os, eu mato-os a todos. Só vou descansar, quando os matar!

Todos fugiram dele. Mais tarde o Trinta e Seis aproximou-se e levou-o para fora do dormitório.

Em Portugal o Cifra visitou a família deste militar por diversas vezes. Eram de uma aldeia na região da Serra da Estrela. Tinha uma irmã e um irmão, ambos casados. A mãe andava sempre vestida de preto e dizia:
- Ainda não fui, mas não tarda muito tempo. Sou viúva duas vezes, do meu Joaquim que Deus lhe guarde a alma em descanso e do meu António, que era a cara do pai quando nasceu, e que morreu lá na África.

E mostrava sempre a fotografia do António que beijava e encostava ao coração.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10388: Do Ninho d'Águia até África (9): Orquídea Negra da lama da bolanha

Guiné 63/74 - P10402: O Nosso Livro de Estilo (5): O que fazer com este blogue ? (Parte I) : Depoimentos de H. Cerqueira, L. Graça, A. Branquinho, J. Manuel Dinis, J. Mexia Alves, J. Amado, Manuel L. Sousa, José Martins, Hélder Sousa e Eduardo Estrela



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Fotos: © Luís Graça  (2012). Todos os direitos reservados 


1. Cerca de duas dezenas mensagens circularam, por estes dias tórridos de setembro, no correio interno da Tabanca Grande, e na caixa de comentários do poste P10368, à volta da questão  O Que Fazer Com Este Blogue ?... Eis alguns excertos das dez primeiras  mensagens, com o apreço e o reconhecimento dos editores :


(i) Luís Graça, 12/9/2012:

Amigos e camaradas: Deixem-me partilhar esta conversa, entre mim e o Henrique Cerqueira, que não é um "particular", uma "conversa a dois", é afinal um "desabafo", em voz alta, em plena caserna... Comentários serão bem vindos... Luís Graça.

Adicionar legenda
(ii) Henrique Cerqueira, 12/9/2012 (em comentário ao poste P10368)

Camaradas e ex-combatentes da Guiné e outras ex-provincias: Este nosso Blogue tem servido e muitíssimo bem para expormos e contarmos a nossa passagem pela Guerra do Ultramar. Eu já sou um autêntico "dependente" desta espaço e como tal eu dou comigo a pensar: "Não será altura de começarmos a olhar para 'dentro' deste nosso país? Estamos todos os dias a ser [delapidados]  dos nossos bens, literalmente roubados nas nossas reformas e direitos de cidadania, já não mandamos em nosso Portugal. Afinal,  porque andámos nós pela Guiné, Angola Moçambique...perdemos a nossa soberania em África (com razão ou sem ela, não está aí agora a questão). E por cá como é???"...

Desculpem lá,  eu sei que o blogue não foi criado para esse fim, mas nós,  ex-combatentes e ex- militares,  continuamos caladinhos? Eu penso que ainda temos idade e força para podermos intervir. Não me acredito que estamos tão acomodados que só se discuta os problemas da Guiné.

Caro Luís Graça,  desculpa lá,  o teu blogue (nosso) já tem expressão e credebilidade mais que suficiente para que possa haver alguma intervenção e,  quem sabe,  um dia os nossos netos digam que afinal não só lutámos na Guiné mas sim e também cá em Portugal e desta vez com a... Arma da Escrita.

Perdoem todos,  estou demais revoltado por estar constantemente a ser roubado e não poder fazer nada. Um abraço, Henrique Cerqueira.

(iii) Luís Graça, 12/9/2012  (em comentário ao poste P10368)

Meu caro Henrique: Li e entendi, com todo o respeito E apreço, o sentido, a força e a justeza do teu grito... O que queres dizer é... que é preciso salvar Portugal!

Quantas vezes eu próprio falo para os meus botões: "Porra, a Guiné foi há 40/50 anos, estás aqui a falar de um país que já não existe, de um Altântida perdida na tua memória!... Estás p'ra aqui a exorcizar fantasmas do passado quando tudo à tua volta se está a desmoronar... O país que conheceste, o país que foi o teu berço já não é mais o mesmo, o mundo onde nasceste e cresceste já não é mais o mesmo... Porra, estás cercado, e na iminência de colapso das muralhas da tua cidade... e tu discutes o sexo dos anjos, como os sábios bizantinos aquando do cerco de Constantinopla pelos otomanos em 1453!"...

Henrique, percebo e respeito a tua indignação... É preciso salvar a Guiné, é preciso salvar Portugal, quiçá a Europa (envelhecida, decadente, impotente...), e o resto do mundo, o Ártico, a Gronelândia, a Amazónia, os oceanos, o clima, a África, os leões, o planeta...

A hora é de pessimismo, mas quem teve 20 anos e passou pela Guiné também teve direito a esses "estados de alma"... Dois milhões de portugueses nos anos 50/60/70 sairam dos seus buracos e fizeram-se à vida!...

Acontece que este blogue é o que é: não é de opinião, não é generalista, não fala (ou não deve falar) de política, de religião e de futebol, foi criado para reunir uma comunidade virtual, os combatentes da guerra colonial que estiveram no TO da Guiné... Serve basicamente para partilhar memórias desse tempo... Com afeto, sem ressentimentos, sem ira, sem gritos de vingança, sem rancores, sem ajustes de contas...

Essas regras não as posso eu mudar ou violar de motu proprio..., embora a mudança seja uma constante da vida...

A Tabanca Grande tem uma página no Facebook onde não estás limitado pelo espartilho das nossas "10 regras de ouro"... Confesso que não vou lá todos os dias, mas muitos camaradas, grã-tabanqueiros, frequentam-na, assiduamente... Tens aí um bom meio para deixar falar a tua alma sobre a hora que passa... e que eu só espero que não se eternize... Não vou dizer, como o outro safado, que me piro... mas essas decisões são do foro pessoal, do domínio da cidadania... Se algum dia decidir pirar-me, anuncio a decisão com antecedência a todos os meus amigos e camaradas, a começar pelos que se reunem aqui, todos os dias ou quase os dias, sob o poilão da nossa Tabanca Grande.

Na realidade, há limites para a resistência humana, para o stress físico e mental, para a intolerância, a arbitraiedade, a incerteza, o medo...

Todas as hipóteses podem e devem ser ponderadas... Quando este blogue deixar de fazer sentido e ficar às moscas, é por que deixámos cair as muralhas e fomos derrotados pela amnésia, a lassidão ou o desespero...

Henrique, somos um povo bipolar, com altos e baixos, tal como as ondas... Somos um povo dado a euforias e a depressões... E neste vaivém já se passaram mil anos, 40 gerações...

Terei sempre orgulho em ser português, isto é, falar, ler e escrever (n)a minha língua materna, e reconhecer-me neste pedaço do mundo, nas formas, nos cheiros, nos sabores, nas cores, deste pequeno rectângulo da península ibérica que será sempre nosso (mesmo que hipotecado)... Na realidade, podem roubar-te tudo menos os afetos e as memórias...

Olha, fez-me bem o teu intempestivo comentário... Um abração.


(iv) Alberto Branquinho, 12/9/2012

Luís e, por arrastamento e maioria de razão, também o Henrique Cerqueira: Essa raiva, revolta, necessidade de acção, fazer parte de uma mudança quanto ao que está a acontecer em Portugal neste momento, acompanhado de um sentimento de frustração por não estarmos a fazer nada para que este estado de coisas se altere, NADA TEM A VER COM ESTE BLOGUE.

Este blogue não é o espaço para ser feita qualquer coisa nesse sentido. Com esse sentido, tentado dar corpo a esse estado de espírito e chamando à acção, há muitos blogues por aí, procurando protagonismo - uns mais, outros menos.

E não é por termos sido ou não combatentes que temos mais ou menos obrigação, mais ou menos aptidão para esse efeito. O que quer que possa ser feito, poderá ser fora dos partidos políticos, que já chateiam e... demais. 

Por exemplo:  a condição de reformados ou pensionistas, que quase todos nós temos ou estamos, rapidamente, em vias de ter, poderia dar origem a uma associação, um lobby de pressão, procurando que essa condição (no fim da vida) não seja tão pisada, esquecida, prejudicada, por não ter representantes, por não estar integrada num "colectivo" (não partidário ou susceptível de ser partidarizado). (...)

Abraços, Alberto Branquinho 

(v) José Manuel Dinis, 12/9/2012 (em comentário ao poste  P10368)

Camaradas: O Cerqueira lançou um desafio ao Luís e à Tabanca para que o blogue passe a acolher textos de intervenção política. Já o fizémos no âmbito de acções relacionadas com a Guiné (autonomia de manifestação pelo 10 de Junho, e comparência na inauguração da Alameda General Spínola). 

Compreendo muito bem o desabafo do Cerqueira neste ambiente de camaradagem. No entanto, tenho que considerar que tal abertura poderia tornar-se divisionista, pelo que concordo com a resposta do Chefe.

No entanto, posso sugerir que em Portugal, as pessoas assumam uma capacidade de intervenção cívica, pela organização de fóruns onde debatam os problemas, e tomem decisões. Poderá ou não constituir-se um núcleo coordenador desses fóruns, e desencadear-se a partir dessas acções um Movimento nacional de cidadania, à defesa dos partidos, ou dos vira-casacas, que congregue a generosidade e a participação em situações públicas sempre que necessário.

E parece-me ser a solução necessária e pacífica, para dar vazão às ideias mais sensatas e realistas, no que respeita à tomada de conhecimento da realidade do país, às medidas de poupança necessárias, às medidas com vista ao desenvolvimento tecnológico e ao progresso económico e social, tendo em conta que perdemos empresas, perdemos meios financeiros desviados para off-shores (muitos milhares de milhões), perdemos competitividade, e existe um exército de desempregados que pressiona os níveis salariais.

Abraços fraternos, JD

(vi) Joaquim Mexia Alves, 12/9/2012

Caro Luís: Sabes o que penso! Já passámos por isto mesmo no tempo do Mário Soares. As pessoas têm memória curta! Pois, a cor era diferente!!!!

Também não concordo com algumas destas medidas e já o fiz público no meu espaço do facebook.
Se é para discutir politica, é mais um blogue entre muitos! Para isso, nesse espaço não contam comigo e então retirar-me-ei definitivamente,  o que também não incomoda ninguém com certeza.

 Um abraço amigo do
Joaquim Mexia Alves


(vii) Juvenal Amado, 13/9/2012

Embora eu esteja de acordo com o H. Cerqueira quanto às nossas preocupações, que devem ser direcionadas para o combate aos polí9ticos corruptos e contra este tipo de política que nos está a enterrar vivos, a minha opinião é que é muito arriscado.

Olha,  sinceramente eu penso que o blogue está a fazer o percurso para que foi criado. Quando muitos de nós falamos do antes e do durante já é dificil, mas falar do presente nestas páginas é correr o risco de trazer para o blogue, o mais primário extremismo tanto de esquerda como a direita mais reacionária. (...)

 Um abraço, Juvenal.

(viii) Manuel Luís Sousa, 13/9/2012

 Bom dia, camaradas:
- Permitam que dê a minha opinião sobre o teor do comentário do “camarada Henrique”, que desde já cumprimento,  manifestando a minha solidariedade na revolta que mostras sentir.

- Eu parti para a Guiné no dia 01 de Abril de 1974, vivi o efeito psicológico do 16 de Março de 1974, tendo já nesse dia o nosso batalhão manifestado da forma possível, estar disponível e solidário com os revoltosos das Caldas. Como forma de agradecimento o cmdt do batalhão sugeriu a sua colocação na zona mais critica do TO, Cantanhz/Cadique/Jemberem.

- Mas como já o referi no blogue, no final de Abril na ilha de Bolama onde decorreu o IAO, retribuímos a “simpatia do cmdt” despachando-o para Bissau.

- Isto serve para nos situarmos no tempo, nas nossas capacidades, disponibilidades, na saturação provocada pelo “ar bafiento/podre/ que se respirava”, e como a fruta “estava demasiado maduro e tinha de cair” com o aplauso e mobilização de mais de 90% da população.

- O tempo que vivemos caminha a passos largos nessa direcção, não apenas no nosso pequeno rectângulo àbeira-mar plantado, mas em escala mais ampla, e o que está para chegar vai ser doloroso e destruidor.

- Aguardemos serenamente o amadurecimento da situação, os sinais de ruptura e pré conflito surgem de todas as direcções, e os principais intervenientes vão ser como sempre os jovens, desiludidos, sem expectativas de futuro e sem o amparo dos idosos que vão partindo.

Recomenda-se serenidade e paciência….

Um abraço a todos, MS


(ix) José Martins, 13/9/2012



Caro Luis & Camaradas:  Li e entendi, qualquer um dos textos destes mails. É o estado de alma presente, infelizmente, mas é.

O "grito" do Henrique Cerqueira é legitimo. Tão legítimo que assino por baixo. A tua resposta é "única", não por ser única mas por ser a única possivel no nosso espaço: Blogue e Facebook.

De vez em quando há "pequenos desvios" mas, pelo que tenho visto noutras páginas, o nosso caminho tem sido "muito certinho"

Abraço
M@rtin'5 (simbiose de Martins + net + ccaç 5)


(x) Hélder Sousa, 14/9/2012 (em comentário ao poste P10368)

Caros camaradas: Este poste, com este tema e suas implicações, veio também 'agitar as águas' mais um pouco. Embora se tenha corrido o risco de criar condições para nos imiscuirmos na 'vida interna' de um país soberano (alegadamente, mas também por esse aspecto a soberania portuguesa não se pode ficar a rir), acho que valeu a pena. Adiantaram-se argumentos, pontos de vista e trocaram-se opiniões.

O Blogue, este Blogue, em si mesmo, não deve enveredar pelo caminho do fórum político. Em pouco tempo estaria mortalmente inquinado e liquidado, perdendo-se assim (quase) todo o trabalho de recolha e divulgação que tem vindo a ser feito. (...)

Para expor teses político-partidárias existe o Facebook. É de leitura mais rápida, pode-se 'amandar' bocas à vontade e há à disposição para todos os gostos.

Abraços, Hélder S.


(xi) Eduardo Francisco da Cruz Estrela, 15/9/2012

Acabo de ler a mensagem do companheiro, amigo e camarada Henrique Cerqueira, bem como a tua resposta,  Luis!
Não me quero alongar em comentários, mas tão sómente deixar um abraço de solidariedade fraterna e juntar o meu ao grito de revolta do Henrique. 
Preserve-se no entanto a isenção do Blogue, respeitando os fins para o qual foi criado.
 
Para todos um grande abraço.
Eduardo Estrela

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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8675: O Nosso Livro de Estilo (4): O que nós (não) somos... Em dez pontos!


Guiné 63/74 - P10401: Blogpoesia (299): Memória da guerra (António Graça de Abreu)


Memória da guerra
por António Graça de Abreu

Durante dois anos, nas terras da Guiné,

a espingarda a tiracolo, aos pés da cama.

Lá fora, o calor, o canto das cigarras, o cheiro [da guerra.

Éramos uma pátria infeliz combatendo um pobre [povo,

na bolanha, no mato, no tarrafo dos rios.

O medo, os suores, a coragem, a amargura,

soldados retalhados, queimados, encharcados [em sangue,

homens sem cor e sem ventura.

Imberbes e puros como os [
guerreiros  de Alcácer-Quibir,

as espadas de fogo dilacerando o bater dos [corações. 



Regressei um dia,

lavando a alma na espuma das lágrimas. 

________________

Fonte: Abreu, António Graça de:
Diário da Guiné: lama, sangue e água pura.
Lisboa: Guerra & Paz.
2007,
p. 11

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Nota do editor:
Último poste da série > 7 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10343: Blogpoesia (199): Os felizardos da guerra (Joaquim L. Mendes Gomes)
 

Guiné 63/74 - P10400: Recortes de imprensa (59): Mina antipessoal faz uma vítima na tabanca de Buruntuma, 39 anos depois do fim da guerra (Nelson Herbert)






Fonte: Portal GBissau.com. De acordo com o seu estatuto editorial, este portal "é um site de notícias, actualidades e opiniões sobre a Guiné-Bissau e as suas comunidades espalhadas pelo mundo", podendo também abordar,sempre que se justifique, "sassuntos de outros países lusófonos e africanos em geral".


O portal "foi fundada em 2012" e pretende ser "um diário de informação geral de referência para todos os cidadãos da Guiné-Bissau, independentemente da afiliação e da visão política de cada um". A ideia da sua criação "surgiu de um grupo de experientes jornalistas oriundos da Guiné-Bissau e com passagem por órgãos de comunicação social de referências nacionais e internacionais, nomeadamente a RTGB, a RDN, a Rádio Galáxia de Pindjiguiti, a Rádio Bombolom FM, a BBC, a CNN, a Voz da América, entre outros". Trata-se de um projecto de informação que se pauta "por uma postura e por um olhar factual, crítico e analítico. E acima de tudo, um olhar introspectivo, por conseguinte nacional, dos grandes desafios por que passa a Guiné-Bissau de hoje", e que se bate "por uma informação crítica, pela tolerância, pela isenção e pela verdade — de resto alicerces de um estado democrático em construção, como o caso da Guiné-Bissau".



1. Um recorte de imprensa enviado pelo nosso amigo e grã-tabanqueiro, Nelson Herbert, de origem guineense, jornalista, da VOA (Voz da América), a viver em Washington [, foto atual à direita]:


Bissau (Rádio Sol Mansi, 17 de Setembro de 2012) - Uma mulher viu um dos membros inferiores ser amputado segunda-feira por uma mina anti-pessoal na aldeia de Buruntuma, leste da Guiné Bissau, informou à imprensa a irmã da vítima.

O acidente ocorre 39 anos depois do fim da guerra de libertação nacional em setembro de 1974. De acordo com a Aminata Djaló, a sua irmã, Quinde Djaló, de 25 anos de idade, tinha ido buscar um carneiro amarrado atrás da sua casa e foi ai aonde ela pisou sobre um engenho explosivo.

“Ela apanhou ferimento no quintal da casa. Estava lá amarrado um carneiro, e por fazer muito quente, ela foi retirar o animal do local onde estava a pastar. Afinal, o carneiro pastava por cima de um engenho explosivo, que só rebentou quando a minha irmã o pisou, devido o seu peso superior ao do animal”, contou Aminata Djaló.

“No mesmo instante, ela perdeu o seu pé direito. Ela sofre muito”, observou. A vítima foi admitida no Hospital Nacional Simão Mendes em Bissau.

Fonte: Portal GBissau.com

2. Comentário de L.G.:

O título da notícia é ambivalente: "Minas antipessoais continuam a amputar 39 anos depois do fim da guerra colonial"... E no corpo da notícia, lê-se: "O acidente ocorre 39 anos depois do fim da guerra de libertação nacional em setembro de 1974"... Infelizmente, não é relevante saber a proveniência ou paternidade da mina, se do antigo exército colonial português, se da guerrilha do PAIGC, ou até se do exército bissau-guineense, envolvido em diversas lutas intestinas (golpes de estado, guerras civis, etc.) desde 1980. Este tipo de engenhos explosivos não têm bilhete de identidade, nem certidão de nascimento, são assassinos cegos, impediosos, apátridas...Só uma peritagem independente poderia datar o engenho, determinara a sua antiguidade, identificar o país de fabrico, etc. A triste verdade é que as minas continuam a matar, a amputar, a causar dor, sofrimento, medo e insegurança no antigo TO da Guiné.

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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10375: Recortes de imprensa (58): Até os mortos são roubados!... Desaparece lápide em bronze com os nomes dos 13 combatentes de Monção mortos na guerra colonial (Carlos Pinheiro)


Guiné 63/74 - P10399: As Nossas Tropas - Quem foi quem (10): Ten Cor Manuel Agostinho Ferreira, o "metro e oito", comandante do BCAÇ 2879 (Farim, 1969/71) e BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1969/71) (Paulo Santiago / Carlos Silva / Manuel Amaro)

1. Mail de Paulo Santiago [, foto à direita], de 15 de janeiro de 2008:

Camaradas: Acabei de ler o poste do Carlos Silva "de Abrantes para Farim" (*) onde aparece como comandante de batalhão [, o BCAÇ 2897, ] o ten-cor Agostinho Ferreira, chamado de Metro e oito, o qual tive o prazer de conhecer, numa visita ao Saltinho, em 1971, visita mencionada numa das minhas Memórias, sendo na altura comandante do batalhão de Aldeia Formosa [, o BCAÇ 2892].


Foi no mesmo dia que conheci o, na altura, cap mil Rui Alexandrino Ferreira, [o nosso] Ruizinho, comandante da CCAÇ 18, também na Aldeia Formosa. Aliás, no livro Rumo a Fulacunda, o Rui fala, em termos elogiosos, do seu comandante de batalhão, o ten-cor Agostinho Ferreira.


Porque saiu de Farim para Aldeia ? Terá sido alguma chicotada psicológica do Spínola ? O Carlos Silva que explique este desfasamento.

Abraço, Paulo Santiago

P.S.- Não descobri o mail do Carlos Silva para dar conhecimento.




Ten cor inf Manuel Agostinho Ferreira, comandante do BCAÇ 2879 (Farim, 1969/71) e do BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1969/71), popularmente conhecido como o "metro e meio". Faleceu em 2003, com o postod e major general. Foto de Mário Pinto.



2. Nota do Carlos Silva, que foi apresentado á nossa  Tabanca Grande em 20 de julho de 2007 [Foi fur mil at armas pesadas inf, tendo pertencido à CCAÇ 2548 (Jumbembem, 1969/71), do BCAÇ 2879 (Farim, 1969/71).


O ten cor Manuel Agostinho Ferreira, falecido a 29-10-2003, com a patente de Major-General, ficou conhecido pela rapaziada do Batalhão pelo “metro e oito “. Distinto oficial, inteligente e corajoso, que, sendo comandante de batalhão, não se poupava a esforços nem a sacrifícios, assim como não hesitava em participar nas operações, a fim de poder apreciar in loco a justeza dos factores de planeamento, quantas vezes abstractos, que os manuais forneciam. 

Esta postura do nosso comandante que, por um lado, era altamente louvável, por outro incutia na rapaziada uma confiança que fazia ultrapassar o medo que porventura existisse. Tal atitude granjeou-lhe da nossa parte uma grande simpatia e admiração que ainda hoje se faz sentir e há-de perdurar ao longo dos tempos até ao último sobrevivente do Batalhão. expressão de tal sentimento resulta bem claro nos almoços de confraternização do Batalhão (*). 


3. Resposta à pergunta do Paulo Santiago, que ficou mais de quatro anos por responder:
Excerto do poste 8 de outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5075: Não-Estórias de Guerra (1): O Furriel Enfermeiro de Quebo (Manuel Amaro)  [, foto atual, à direita]:
 (...) Quando cheguei a Aldeia Formosa (Quebo) no final de 1969, aquilo era assim quase um paraíso.

Tínhamos feito um mês de estágio em Nhacra (englobando Safim, João Landim, Cumeré e Dugal). Aqui no Dugal, o Pelotão do Alferes Caçador ainda foi presenteado com uma rocketada que levantou as chapas da cobertura.

A viagem em LDG, via Bolama, até Buba, foi desagradável. A coluna Buba/Aldeia de uma qualidade indescritível.

Mas em Aldeia Formosa não havia guerra. Diziam os mais velhos que isso se devia à acção de alguns Comandantes que por lá passaram, nomeadamente o major Azeredo e o major Fabião. E também devido à existência do Cherno Rachid Djaló. Mas… como não há bem que sempre dure…

Entre 20 de Março e 30 de Abril de 1970, Aldeia Formosa foi duramente castigada pelo inimigo. Tanto com emboscadas no mato, de que resultaram três mortos, como ataques ao quartel.

Os ataques do PAIGC a Aldeia Formosa incomodaram tanto o General Spínola que este tomou a decisão de substituir o Comandante do BCAÇ 2892, nomeando para o cargo, o Ten Cor Manuel Agostinho Ferreira.

O novo Comandante, mal tomou posse reuniu com o 2.º Comandante, o Oficial de Operações, Comandantes de Companhia, Oficiais e Sargentos. Falou muito e ouviu pouco. De seguida, sentou-se naquela mesa enorme, na Sala de Operações, e, olhando para os mapas, questionava o oficial de operações:
- A CART 2521 tem o pessoal todo operacional?
- Sim, tem, meu Comandante.
- E a CCAÇ 2615 tem o pessoal todo operacional?
- Sim, tem, meu Comandante - repetiu o Major... Mas hesitou e corrigiu…
- Bem, quer dizer… o Furriel Enfermeiro está destacado no Posto Escolar.

O Comandante deu um salto e gritou:
- É isso… não pode ser. O pessoal de saúde tem que estar integrado nas suas Unidades Operacionais. Esse Furriel cessa funções hoje. Amanhã já está integrado na Companhia. Nomeia-se outro Furriel, Amanuense ou de Transmissões, para a Escola.

O Tenente Lopes, que dava os últimos retoques no stencil da Ordem de Serviço, ainda conseguiu incluir o texto do Despacho, que foi publicado e distribuído, nesse dia, já noite dentro.

Esta foi a grande decisão do novo Comandante. E a decisão foi cumprida

No dia 6 de Maio de 1970, quando o Pelotão (aqui apetece-me chamar-lhe Grupo de Combate) saiu para a Operação de rotina, já integrava o Furriel Enfermeiro, de camuflado, carregando uma bolsa tradicional, mas de G3 a tiracolo. Esta cena teve assistência, mirones, assim uma coisa semelhante à apresentação do Cristiano Ronaldo, em Madrid…

Saliente-se que esta decisão e a sua imediata implementação, foi tão importante que, quando o Pelotão que fazia a segurança nocturna, no exterior do quartel, regressava a casa, já se cruzou com o gila, informador do PAIGC, que ia a caminho da fronteira, para transmitir a novidade.

Nino recebeu o mensageiro que chegou com ar cansado da viagem, mas feliz por cumprir tão importante missão informativa:
- O novo Comandante de Quebo já tomou uma decisão. O Furriel Enfermeiro que estava na Escola passou a operacional. A partir de hoje, cerca de 15% das operações na área de Quebo terão a sua participação.

Nino, que de início parecia tranquilo, começou a dar sinais de impaciência e algum nervosismo. Para disfarçar, começou por acariciar a sua kalash com a mão direita, mas a esquerda, mais difícil de controlar, começou a coçar a cabeça. Quando o Nino coçava a cabeça já se sabia que alguma coisa estava a correr muito mal.
- Isso é mau. E logo agora que tínhamos algum controlo na zona.

Nino pensou, pensou… mas não demorou mais de cinco minutos para ordenar aos seus adjuntos o que fazer de imediato:
- As armas pesadas cumprem o plano até esgotar as munições... O grupo do GB, até ordem em contrário, não faz as emboscadas previstas na zona de Quebo.

E a ordem foi cumprida. E a vida continuou. Até que uns dias depois, ainda em Maio, o gila aparece de novo e informa:
- Camarada Comandante Nino, o Furriel Enfermeiro deixou a zona operacional. Agora só faz colunas de reabastecimento Quebo/Buba/Quebo. É que os outros enfermeiros não gostam de fazer colunas e ele gosta de ir a Buba comer peixe grelhado e cumprimentar os amigos que tem em Buba e Nhala.

Nino pareceu não dar muita importância à informação, mas logo que o gila se afastou, ordenou, até ordem em contrário, a paragem da colocação de minas na estrada e/ou ataques às ditas colunas. E a ordem foi cumprida.

Mas a vida no teatro de guerra é muito agitada, mesmo para quem não faz a dita. Ainda decorria o mês de Junho e já o gila estava a solicitar nova audiência.
- Camarada Comandante Nino´, lembra-se do Furriel Enfermeiro de Buba, que foi ferido e não foi substituído? Está no Hospital em Lisboa, com uns centímetros de intestino a menos…

Nino não entendeu a razão desta conversa, mas replicou:
- Em Buba os colonialistas têm um médico.
- Pois - concordou o gila -, mas o médico vai de férias a Portugal. O Camarada Nino imagina quem vai substituir o médico durante esse tempo?... O Furriel Enfermeiro do Quebo.

Nino soltou um palavrão. (Que eu não repito, porque eu não escrevo palavrões, mesmo quando são ditos por outros). E depois ordenou:
- Até ordem em contrário, o Grupo do MS não executa ataques na zona de Buba.

E a ordem foi cumprida.... Em Outubro lá estava de novo o gila informador, o que era um incómodo para Nino, porque estas informações eram pagas, mas ao mesmo tempo eram informações válidas e sempre credíveis, portanto úteis, para a operação do PAIGC.
- Então que notícias temos de Quebo? - perguntou Nino.
- Coisa grande, Camarada. A Companhia de Nhala vai para Quebo e a de Quebo vai para Nhala.

Nino não entendeu a razão da importância desta informação e argumentou:
- Mas isso é uma simples troca, não altera nada.
- Altera, sim, camarada Comandante. É que o Furriel Enfermeiro, agora, vai ficar em Nhala, até ao fim da comissão, em Setembro do ano que vem. – sentenciou o gila.

Nino, que até ali estivera de pé, durante toda a conversa, sentou-se, baixou a cabeça, colocou-a entre as mãos e, em vez do tradicional palavrão, disse baixinho:
- … Dasse… dasse… dasse…

Passados uns minutos levantou-se, passou as mãos pelo rosto, alisou o cabelo e ordenou a todos os seus comandantes:
- Até Setembro de 1971, não haverá qualquer acção contra os militares colonialistas instalados em Nhala, incluindo o quartel, a estrada e os carreiros.

E a ordem foi cumprida.... Em Setembro de 1971, o Furriel Enfermeiro do Quebo e Nhala regressou à Metrópole. O gila emigrou e é estivador no porto de Marselha. O Nino… bem, sobre o Nino toda a gente sabe tudo.

A maior parte dos protagonistas desta não-estória já faleceram e não poderão confirmar o que aqui está escrito. Mas o nosso Camarada José Martins, recorrendo a todas as suas fontes de informação, poderá confirmar que todas as ordens de Nino, aqui referidas, foram cumpridas. (...)

 ____________________

Nota do editor:

(*) Poste de 15 de Janeiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2440: História do BCAÇ 2879, 1969/71 (1): De Abrantes para Farim (Carlos Silva) ]

Útimo poste da série > 25 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10193: As Nossas Tropas - Quem foi quem (9): Marcelino da Mata, 1º cabo, Gr Cmds Diabólicos (1965/66) (Virgínio Briote)

Guiné 63/74 - P10398: Notas de leitura (405): "Les Héros de la Guinée-Bissau: La Fin D'Une Légende", de Lourenço da Silva (2) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 7 de Setembro de 2012:

Meus amigos,
Eis a segunda parte da minha recensão ao livro "Les Héros de la Guinée-Bissau: la fin d'une légende" de Lourenço da Silva.

Com os meus cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva


Nino Vieira – o mito* (2/2)

Por Francisco Henriques da Silva

Ficamos eternamente à espera de argumentos e provas convincentes, mas o autor não produz nem uns, nem outras. Limita-se a avançar com alegações disparatadas e sem sentido.

Lourenço da Silva menciona 3 “pecados” atribuídos ao ex-Chefe de Estado e que teriam contribuído para a sua morte. Em primeiro lugar, o seu apoio ao PRID (Partido Republicano para a Independência e o Desenvolvimento), de Aristides Gomes – um dissidente do PAIGC, que foi seu Primeiro-ministro -, integrado por elementos ninistas e “pelas antigas forças governamentais” que estariam na base da sua eleição para o cargo de Presidente da República, uma vez que não beneficiava do respaldo do PAIGC, o que redundou num enorme fracasso. O segundo “pecado” consistiu na “incapacidade ou recusa do Presidente em exonerar todos os chefes militares, bem como os ministros do Interior e da Defesa, na sequência dos acontecimentos de 23 de Novembro de 2008” – como se pode ler na p. 149 (no caso em consideração, tratou-se de uma tentativa frustrada de golpe de Estado em que os amotinados pretenderam tomar de assalto o palácio presidencial). O terceiro “pecado” terá sido a luta de bastidores para impedir a investidura de Cadogo (Carlos Domingos Gomes Júnior) como Primeiro-ministro.

Ao longo da obra, o autor não deixa de mencionar repetidas vezes as múltiplas tensões que opunham o “Chefe” ao líder governamental (Carlos Gomes), bem como a outras figuras do regime, designadamente aos militares “analfabetos” (illetrés) Tagmé Na Waye e Bubo Na Tchuto, interrogando-se, como toda a gente, porque é que aqueles oficiais-generais não podiam ser afastados. Cela au moment où d’un côté, ils étaient tous pointés du doigt comme étant les principaux responsables de l’instabilité qui régnait dans le pays , et de l’autre côté, l’illetrisme pesait sur chacun d’eux (trad. – “isto num momento em que, por um lado, eram todos apontados a dedo como sendo os principais responsáveis pela instabilidade que reinava no país e, por outro, o analfabetismo pesava sobre cada um deles” – p. 137). Sem prejuízo dos encómios e ditirambos com que o autor o mimoseia em permanência, “Nino” Vieira parecia ter plena consciência dos perigos que o rodeavam oriundos do sector castrense, mas preferia não agir, atitude que nos parece verdadeiramente surpreendente para um homem com a personalidade de Kabi. Lourenço da Silva refere-se inclusive a uma certa padronização dos comportamentos dos militares golpistas (cfr. p. 161).

O autor não conclui, nem pode concluir, porque fugiria aos parâmetros do panegírico, o óbvio: toda a história da Guiné-Bissau é uma história de violência contínua de que “Nino” Vieira foi um dos principais protagonistas. Chefe guerrilheiro, ascendeu ao Poder com o apoio de uma facção militar (14 de Novembro de 1980); manteve-se na chefia do Estado, com o voto popular e o consequente respaldo dos militares (1994); viu-se confrontado e saiu derrotado por uma rebelião militar (1998-1999); o país viveu, entretanto, inúmeros golpes de Estado reais ou imaginados; exilado durante vários, regressou ao país; foi de novo eleito, mas teve de beneficiar de um suporte militar sólido. Por conseguinte, das duas uma: ou Kabi dispunha de força militar necessária e suficiente para se manter no Poder ou então o destino estava-lhe traçado à partida.

A guerra civil de 98-99, um acontecimento capital na história da Guiné-Bissau, é apenas abordada numas escassas 5 páginas (da p. 77 à p. 81), em que a complexidade do conflito é analisada com enormes ligeireza e displicência. O autor passa por cima das respectivas causas, da problemática política, económica e social como cão por vinha vindimada. Para não fugir à regra, Lourenço da Silva repisa outro dos seus grandes leit motivs, ou seja a diabolização do nosso país: “Nino” Vieira refugia-se na embaixada de Portugal, son pire ennemi historique (trad. – o seu pior inimigo histórico – p. 81).

Na parte final da obra, são transcritos, em francês, alguns dos discursos mais significativos de João Bernardo Vieira, proferidos no decurso do seu último mandato como Presidente da República, cujo interesse é, na maior parte dos casos, meramente documental.

De salientar, porém, a alocução proferida na 35ª cimeira da CEDEAO em Abuja, em Dezembro de 2008, na sequência da tentativa de golpe de Estado de 23 de Novembro já mencionada, de que se reproduz um excerto que, para além de se revelar uma asserção a todos os títulos, justa, seria pré-monitória em relação aos acontecimentos futuros na Guiné-Bissau: Nous avons une armée hautement politisée et déséqilibrée du point de vue ethnique, devenant ainsi le plus grand obstacle à la paix, à la stabilité et une véritable menace à la culture démocratique en Guinée-Bissau (trad. “Temos um exército altamente politizado e desequilibrado do ponto de vista étnico, tornando-se assim o maior obstáculo à paz, à estabilidade e uma verdadeira ameaça à cultura democrática na Guiné-Bissau - p. 231)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10380: Notas de leitura (402): "Les Héros de la Guinée-Bissau: La Fin D'Une Légende", de Lourenço da Silva (Francisco Henriques da Silva)

Vd. último poste da série de 17 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10395: Notas de leitura (404): Desvendar alguns segredos do crioulo da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10397: Em busca de... (203): Exemplar do livro de Fernando de Sousa Henriques "Picadas e Caminhos da Vida na Guiné" (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 13 de Setembro de 2012:

Meus prezados amigos,
O Prof. René Pélissier gostaria muito de publicar uma resenha sobre o livro do nosso malogrado confrade Fernando de Sousa Henriques.

Eu pedia a generosidade a alguém que com ele se tivesse relacionado se mo podia enviar para eu reencaminhar para o Prof. Pélissier, acho que era uma bonita homenagem que prestaríamos ao Sousa Henriques.

Antecipadamente grato,
Mário




2. Hoje mesmo o Blogue enviou a seguinte mensagem à tertúlia:

Caros camaradas e amigos tertulianos

De acordo com a mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos, o nosso conhecido Prof René Pélissier gostava de ter acesso ao livro do falecido camarada Fernando de Sousa Henriques "Picadas e Caminhos da Vida na Guiné" para fazer uma recensão desta obra.

Se alguém tiver algum exemplar e puder emprestar ao Professor, via Mário Beja Santos, seria, como diz o nosso camarada Mário, uma hipótese de homenagear o malogrado Fernando de Sousa Henriques.

Deixo-vos um abraço
Carlos Vinhal


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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10326: Em busca de... (202): Memórias de uma infância perdida .... (Paulo Mendonça, nascido em 1961, em Có, Bula, Cacheu, trazido para Matosinhos em finais de 1967, criado na Casa do Gaiato até aos 14 anos, e a viver há 20 em França)

Guiné 63/74 - P10396: Tabanca Grande (361): Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705 (Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66)

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), com data de 2 de Setembro de 2012:

Caro Luís Graça e demais Camaradas de Arrmas.

Sou Manuel Luís Lomba, ex-furriel mil da CCav 703, do BCav 705, os "Cavaleiros Marinhos", e penamos na Guiné, em 1964/66.

Estivemos um ano na Amura, como reserva às ordens do Comando-Chefe e terminámos a comissão no Sector de Nova Lamego - a Companhia 703 na quadrícula de Buruntuma, a 704 em Bajocunda e a 702 em Madina do Boé.

O BCaç 1856 foi render-nos, ficando a Companhia 1418 em Buruntuma e a 1416 em Madina do Boé, a qual causará a morte, em combate, a Domingos Ramos, um dos primeiros e dos mais competentes comandantes do PAIGC, ex-furriel mil desertado do Exército Português, por ter sido vítima de flagrante injustiça de superior hierárquico, quando era instrutor no CIM (Centro de Instrução Mililitar), em Bolama.

Nas muitas missões de intervenção interagimos com o BCav 490, os Sempre em Frente", com o BCaç 600 (desconheço a divisa), com o BCaç 619, as "Sentinelas do Sul", com o BArt 635, os "Águias Negras", com Companhias independentes, com Grupos de Comandos, a Companhia de Pára-quedistas e Destacamentos de Fuzileiros.

Chegado à reforma, entrei em correntes de escrita. Acabo de publicar o livro "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu", em edição de autor.

Manifesto o mais elevado apreço pelas vossas iniciativas e a minha vontade de adesão.
(Manuel Luís Lomba)


2. Em resposta, foi enviada em 7 de Setembro a seguinte mensagem ao camarada Manuel Lomba:

Caro camarada Manuel Lomba

À boa maneira do nosso Blogue vamo-nos tratar por tu.

Muito obrigado pelo teu contacto e pela vontade de pertenceres a esta família de ex-combatentes da Guiné. Na qualidade de relações públicas deste Blogue estou a receber-te e a sugerir que nos mandes uma foto do teu tempo de Guiné e outra actual (mais ou menos) para podermos proceder à tua apresentação formal à tertúlia.

Se quiseres desenvolver um pouco mais o texto da mensagem que nos mandaste servirá para a tua apresentação. Fala-nos um pouco mais do teu livro, manda-nos a capa digitalizada, e se há hipótese de algum interessado o adquirir, à cobrança, por exemplo.

Fica a teu critério outros pormenores para que te possamos ficar a conhecer melhor.

A tua correspondência deverá ser enviada sempre para luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com e simultaneamente para mim ou para o Eduardo.

Qualquer dúvida, é só perguntar.

Sem outro assunto de momento, fico ao teu inteiro dispor.
O camarada e amigo
Carlos Vinhal


3. No dia 9 de Setembro recebemos esta mensagem do camarada Manuel Lomba:

Meu caro Carlos Vinhal.

Grato pela sua resposta, a que tento corresponder em conformidade.

Envio duas fotos e acrescento um texto extraído do livro que acabo de publicar: "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu" (opto por escrever conforme a antiga ortografia).

Manuel Lomba


4. Do livro "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu",  de Manuel Luís Lomba:

Outras manobras, no contexto da manobra da rendição da CCav 703 pela CCaç 763, na nomadização de Cufar, em 18 de Março de 1965

Chegou ao cais do rio Meterunga o grosso do efectivo da Companhia de Caçadores 763, comandada pelo capitão Costa Campos, para a nossa rendição, dotada de 8 cães de guerra, treinados por si e por sua conta e risco, género de combatentes que os turras também já mobilizavam. Os cães vieram acrescentar-se aos passarinhos, às vacas, aos patos bravos, às árvores, à vegetação, a toda a magia da Natureza, na engrenagem da máquina de sacrifícios, de sofrimento e morte que era a guerra da Guiné. Pelos cães, pelo brasão e pelo guião, pusemos-lhe o nome da Companhia dos Cães. Os turras não terão visto o que vimos deles, mas sobrar-lhes-ão motivos para, posteriormente, os alcunhar de “lassas” (abelhas).

O abrigo do depósito de géneros do estacionamento estava escancarado e vazio. Havia dias que não se via o fumo das chaminés das cozinhas rodadas a elevar-se ao céu, a anunciar rancho quente, e o estado de ruína dos nossos aparelhos digestivos já tolerava melhor a fome que a ingestão das rações de combate da Manutenção Militar. Aqueles “periquitos” (fardas verdes) da rendição vieram de Bissau, com volumoso carregamento de mantimentos e de suficiência, ou soberba, na exibição do direito ao seu exclusivo proveito. Coube a nós, mais velhos e “maçaricos”, (fardas amarelas), manter os turras à distância, para a chegada das suas pessoas e bagagens e tivemos de continuar a contê-los, a seco, para o desembarque dos comes e bebes, próprios para gente refeiçoar. Alguém bichanou a ideia e começamos a magicar expedientes de como lhes surripiar um garrafão de vinho e um bacalhau, para dizermos o adeus às armas de Cufar com uma “punheta” (do dito).

A ambiência da guerra é vivida como de outro mundo; mas aqueles “periquitos” da Companhia dos Cães pareciam vindos de outro, tal era a disciplina e método incutidos à desestiva das lanchas e ao tráfego das suas provisões de géneros alimentícios. Treinavam os cães e parecia-nos que os cães os treinavam a eles. O seu furriel vagomestre supervisionava todos e tudo, omnipresente, e enviava uma espécie de “guia de remessa” pelos grupos que faziam o tráfego para o estacionamento, que o seu primeiro-sargento conferia no destino, presencialmente. Os garrafões partidos ou esvaziados por consumo na viagem eram-nos entregues, com a maior displicência, qual tarefa menor, pela nossa missão de segurança, para os levar a vazadouro, à montureira que o estacionamento havia criado, na margem direita do Meterunga, exterior ao perímetro da sua segurança, povoada por um bando de flamingos, originários do rio Cumbijã, e por uma colónia de abutres jagudis, que a putrefacção do lixo atraíra para ali.

Tamanha vigilância conseguia conter as nossas intenções predadoras. Justificava-se a falta de iniciativa da acção específica fazendo circular entre nós o trocadilho de que tínhamos “os cães da Companhia” à perna. Nenhum mal é absoluto e havia muito tempo que a vida nos ensinara a reverter em nosso proveito a pequena parcela de bem que todo o mal contém. A situação não nos escapará à melhor análise, para o desencadear da acção dela consequente. Um tiro de aviso seria decisivo; mas com coisas sérias não se brinca, a despeito de dispostos a fazer um séria brincadeira.

Saiu um aviso, dirigido àquele vagomestre, a alertar que os turras viviam a cerca de 2 km, com super-metralhadoras, morteiros e canhões, que a morosidade do serviço estava a colocar-nos em grande risco, pelo que a segurança disponibilizava dois elementos em seu reforço e ajuda.

A invocação da proximidade dos turras era eficaz a impor o respeitinho, monopolizador das atenções. A solicitude sensibilizou o vagomestre, a contribuir para a sua fragilização. Um dos disponibilizados encheu um garrafão vazio no rio, outro pegou num garrafão partido e começou a dissimular um desvio, em sentido oposto à montureira; ele deu em cima dele, a farejar furto, afrouxou a vigilância, já afrouxada pela solicitude e pela atenção a eventuais sinais dos turras, enquanto aqueloutro trocava o garrafão de água por um garrafão de vinho, que levou, na maior das calmas, a esconder na montureira. O vigilante voltou, contou e recontou os garrafões. Tudo em conformidade, tudo num ápice, como de um golpe de mão se tratasse. O inconfundível cheiro de bacalhau salgado andava no ar, a provocar-nos as suas memórias gustativas, libertado duma caixa rebentada, com dizeres “graúdo” a encimar o lote do dito, rabos e badanas esparramados - e as operações da desestiva das lanchas aproximavam-se do fim. A sorte protege a audácia, escrevera Virgílio, na Eneida. Ante essa iminência, a segurança instruiu e destacou um outro do seu efectivo, para ajudar “a esfolar o rabo” e dar fim a esse trabalho, que o vigilante se apressou a agradecer, sem reparar no pormenor de ele se apresentar com o dólmen camuflado, a contrastar com a generalidade, em tronco nu.

Era sabido que os turras não gostavam de andar à luz do dia e, partindo da ideia que estariam a descansar das suas noitadas operacionais, um vigilante foi destacado para irritar os abutres jagudis, que reagiram furiosamente, com o seu grasnar fúnebre, contagiando os flamingos e toda a passarada ao redor entrou em alvoroço. A segurança correspondeu ao alarido com a emissão do alerta de perigo, toda a malta se colou ao chão - o respeitinho que faltava, decisivo, pelos turras. O último “maçarico” disponibilizado para o “tráfego e estiva” mergulhou junto ao lote das caixas de bacalhau e atracou-se à rompida, para surgir a rastejar, no sentido da montureira, tendo alegado ao vigilante que ia “pela arma”. No sítio certo, largou dois bacalhaus, que levava sob o dólmen camuflado, badanas entaladas na cintura e rabos entalados nos sovacos, razão bastante e suficiente para provocar o imediato levantamento do alerta de perigo; logo ele foi retomar a sua tarefa de ajuda, agora com a arma, mas em tronco nu, tal como os “periquitos”.

Algumas horas passadas, aqueles dois bacalhaus estavam desfiados, dessalgados por açúcar, feitos em salada com as últimas cebolas picadas, regados com os restos de azeite e comidos (e “bebidos”), com a discrição aconselhável, no ventre do poilão sagrado, novo posto de sentinelas avançadas, no segmento que nos cabia na defesa da nomadização em Cufar. Os turras e o Irã da mata de Cufar Nalu portaram-se condescendentes. A irreverência não negligenciara a prudência; para não se correr riscos, como alvos de participação e acção disciplinar, a prevenir “porradas” e, também, pela ausência de confiança mútua, a praxe não foi respeitada, ao não se convidar o proficiente vagomestre da Companhia de Caçadores 763 a partilhar da petiscada, na nossa despedida da nossa estada de 65 dias naquele palco no coração da guerra da Guiné.


5. Comentário de CV:

Caro Manuel Lomba, à boa maneira do Blogue (onde é que já ouvi isto?) temos que nos tratar por tu.
Estás apresentado à tertúlia, e logo com um texto muito curioso do teu livro, onde falas dos Lassas, Companhia do outro nosso camarada Mário Fitas. Podeis trocar impressões sobre o tempo de sobreposição, se é que deu tempo para vos conhecerdes. Este nosso camarada, assinando-se como Mário Vicente, escreveu um pequeno livro, também edição de autor, patrocinado pela Junta de Freguesia do Estoril, com o título "Pami Na Dondo A Guerrilheira", passado em Cufar, uma história, segundo o autor, ficção e realidade, de uma prisioneira. Para conheceres a história, que foi publicada na íntegra no nosso blogue, clica no título sublinhado.

Fiquei agradavelmente surpreendido pela tua vinda a minha casa para me entregares de mão um exemplar do teu livro "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu". Não chegaste a dizer-me como é que os possíveis interessados em adquiri-lo o poderão fazer.

Durante a nossa conversa apercebi-me que os anos não passaram por ti, estás em boa forma, tens uma excelente memória, muitas recordações do tempo da Guiné "à flor da pele" e escreves muito bem. Pelo que acabo de dizer, poderás ser uma mais-valia para o nosso Blogue, ainda mais se acrescentar que estiveste mais recentemente na Guiné-Bissau, em trabalho, onde tiveste oportunidade de estar com ex-combatentes do PAIGC.

Depois do que acabo de dizer sobre ti, não poderás escusar-te a falar-nos da guerra que viveste nos meados dos anos 60 em Cufar e Buruntuma e do que viste na Guiné-Bissau já independente e soberana. Disseste-me que muitas das tuas fotos desapareceram, mas incluíste algumas no teu livro, e outras terás que nos poderás facultar para publicação.

Termino a tua apresentação enviando um abraço de boas vindas em nome da tertúlia e dos editores.

O teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10381: Tabanca Grande (360): Manuel Serôdio, mais um camarada da diáspora, ex-fur mil at inf, CCAÇ 1787/BCAÇ 1932 (Bula, Bissau, Empada, Buba, Quinhamel, 1967/68)