1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua fabulosa série.
Camaradas, segue mais uma pequena história da minha vida militar. De Tavira à Guiné mas enaltecendo a minha especialidade tirada em Penude, Lamego.
Resumidas histórias militares que terminam com a minha série “AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU”
O CISMI, Tavira, recebeu-me, os RANGERS preparam-me para a guerra e a Guiné acolheu-me
Um trajeto militar com sentido único
O dia, recordo, encontrava-se solarengo. Estava-mos a 10 de outubro de 1972. A bordo do Morris 1000 do meu amigo Aníbal, saímos da nossa aldeia – Aldeia Nova de São Bento – antes de almoço, sendo o nosso destino uma “mansão comunitária” no encantado e sonhado Algarve. Atempadamente preparámos a viagem e lá partimos rumo à cidade de Tavira, onde assentámos praça.
No decorrer da viagem parámos para saborear uma refeição. Desconhecendo o conteúdo do jantar, precavemo-nos com eventuais prudências que o desconhecido futuro/próximo propunha. Serra do Caldeirão acima, serra do Caldeirão abaixo, vales e montanhas ultrapassadas, curvas e contracurvas quanto bastasse, os pneus do velho Morris a chiar, eu e o Aníbal lá fomos comentando a nossa entrada na tropa. O sonho aprestava-se para ceder o seu lugar à irreversível verdade de um futuro mancebo militar. Preparado? Talvez!
Aprestei-me, com tempo, em cortar o cabelo de acordo com o que se previa minimamente aceitável, e exigível, para as hostes militares. Diziam-me que a revista ao pessoal maçarico era feita com o olho bem aberto e nada de facilitar. Ponderando presumíveis adversidades, ou raspanetes grosseiros de graduados que já botavam ordem na parada, creio que mandei colocar ao meu barbeiro, um homem que ainda hoje me atura, o pente 3 na máquina. No final, olhando o espelho, a imagem constatada dececionou por completo aquele puto que se via a contas com o serviço militar obrigatório.
Dei entrada no CISMI, em Tavira, por volta das 4 horas da tarde. Como todos os recrutas lá fui sujeito à respetiva “inspeção”, sendo que o aspirante olhou-me de atravessado e mandou-me, em passo de corrida, para o barbeiro da unidade, dado que o meu cabelo não estava de acordo como o regulamento previa. E lá fui. Sei que não me livrei de um novo corte de cabelo que roçava uma inconcebível e envergonhada carecada.
Seguiram-se dias de autêntica amargura. Formar o pelotão, antes o receber das fardas, o aprender a marchar (ope 2, esquerdo, direito), o obedecer às normas, o conhecer o regulamento militar, o seu armamento, a vivência com outros camaradas na camarata, a entrega da G3, o encontro “imediato” com as famosas salinas, a semana de campo, enfim, um rol de canseiras ao longo da recruta.
No final desse período fui chamado para testes físicos, tendo como finalidade o meu possível enquadramento nas tropas especiais. A minha disponibilidade física era, digamos, excecional, jogava, oficialmente, futebol e essa minha disponibilidade não passou em branco ao aspirante do pelotão, sendo que a “tombola da sorte” carimbou-me para um rumar a Norte.
Neste contexto, o meu passaporte indicava-me Lamego e a especialidade de Operações Especiais/Ranger. Apreensivo, pois claro, com a sorte que o destino me timbrou, lá marchei rumo ao desconhecido. Sinceramente muitas coisas me ocorreram à memória. Ranger, eu! Mas, no fundo, a especialidade enchia-me as medidas.
No aquartelamento em Penude, situado em pleno sopé da Serra das Meadas, conheci a dureza militar. A “largada”, escassas horas depois de assentar pé em terras durienses, apresentou-se como o batismo de “fogo” para um rol de jovens que, paulatinamente, conheceriam a dureza de uma especialidade que não dava tréguas.
Aprendi, então, as normas essências para lidar com a guerrilha. Fui o 2º classificado do meu curso, o 1º foi o Meireles, um rapaz do Porto, sendo que fiquei a dar a especialidade ao 1º grupo de cadetes, em conjunto com o aspirante Daniel, natural de Cabo Verde que transitou comigo de Tavira, e com o outro cabo miliciano, o meu grande amigo Pedro Neves.
Em Lamego senti o verdadeiro contacto com potencialidades humanas que existem dentro de nós. Os fatores físicos e psicológicos, associados a uma mente sã, deram-me novos ânimos. Nunca desistir perante as vicissitudes que a vida nos coloca pela frente foi, é e será uma arma capital para não nos deixarmos cair diante de um potencial obstáculo que inadvertidamente nos surge pela frente.
E foi justamente com esses princípios básicos aprendidos em Lamego, nos rangers, que parti rumo à Guiné. Na Guiné conheci a guerra e a paz. Nova Lamego, em plena região de Gabu, recebeu-me e por lá cumpri a minha comissão em terras de além-mar a qual, entretanto, foi reduzida graças à Revolução de Abril de 1974. Regressei à Pátria Lusa a 9 de setembro desse ano, carregando comigo um “oceano” de recordações.
Para trás ficaram imagens e sons que transportarei um dia para a minha eternidade. Imagens de jovens camaradas que se depararam com a malfadada lei da morte quando muito tinham para dar, sendo que outros ficaram estropiados e outros acusam ainda hoje o conhecido stress pós traumático de guerra. Por outro lado, os sons arrepiantes dos tiros, o corrupio das emboscadas, ou das minas, dos flagelos noturnos aos quartéis, os gritos de dor, os gemidos da morte, ou os ruídos transversais de jovens soldados em pleno palco da peleja, são realidades que jamais apagaremos das memórias.
Relembro, também, a incerteza das colunas e de um mato adensado que escondia manifestos imprevistos. Um rol de hábitos quotidianos que o soldado sem medo se dispunha a enfrentar.
Este é, apenas, um pequeno flash da minha vida militar e ornamentada com as respetivas fotos de um ciclo de vida que já vai longe.
A Guiné estará sempre na tona das “MINHAS MEMÓRIAS DE GABU”.
Um abraço camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
21 DE JANEIRO DE 2015 > Guiné 63/74 - P14171: Memórias de Gabú (José Saúde) (51): Sexo em tempo de guerra, memórias inegáveis. Tabu?