segunda-feira, 30 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16148: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - X Parte: VI - Por Terras de Portugal (iv) : De Lisboa a Bissau no T/T Timor, de 11 a 17 de fevereiro de 1965


Lisboa > Cais da Rocha Conde Óbidos> 18 de agosto de 1965> Embarque do pessoal da CCAÇ 1426 e de outras unidades para o TO Guiné, no T/T Niassa. Ao fundo a ponte sobre o tejo ainda em construção... Será inaugurada um ano depois, em 6 de agosto de 1966.

 Foto: © Fernando Chapouto (2006). Todos os direitos reservados.




Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67.

Foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô.




Lisboa > Navio da Marinha Mercante Portuguesa Timor > Navio misto (carga e passageiros), de duas hélices; construído em Inglaterra em 1950 e abatido em 1974, tinha mais de 130 metros de comprimento de fora a fora; arqueação bruta: cerca de 7,6 mil toneladas; velocidade máxima: 15 nós; 120 tripulantes; alojamentos para 4 em classe de luxo, 60 em primeira classe, 25 em terceira e 298 em terceira suplementar, no total de 387 passageiros. Armador: Companhia Nacional de Navegação. Lisboa.

Fonte: Navios Mercantes Portugueses (1996) (com a devida vénia...)


1. Continuação da publicação do cap VI - Por Terras de Portugal.... 

Sinopse: Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8), faz o curso de "ranger" em Lamego e é mobilizado para a Guiné. Unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra"). Parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.
Texto e foto da capa : © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados.


Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > VI - Por Terras de Portugal: Tavira, Elvas, Lamego, Oeiras, Lisboa, Bissau> (iv)  (pp. 33-34)

por Mário Vicente [, foto à direita, março de 2016, Oitavos, Guincho, Cascais]

A dez de Fevereiro de manhã a CCAÇ [763]. desfila pelas ruas de Oeiras, prestando homenagem aos mortos da Grande Guerra no respectivo monumento. No dia seguinte embarcaria com destino a Bissau. 

Conforme tinha marcado, junta-se num bar da Baixa com alguns dos seus companheiros de viagem. Os copos
aquecem um pouco a alma. Há malta que vai dar uma volta de circuns­tância para despedida com miúdas do Bairro Alto. Chico Zé, Carlos Manuel, Jata e Vagabundo, preferem ficar bebendo. Encontrar-se-ão todos em Oeiras. O Velhinha regressa carre­gado de tabaco e passa a noite de borla. A rapariga tinha um irmão lá fora, diz. Devem ter sido uns momentos de loucura, coitada. Fazer amor e pensar no irmão na guerra, deve ter sido o orgasmo de metralhadora.

Manhã de onze de Fevereiro de 1965. António Pedro, Vagabundo, Jata, Chico Zé e restantes sargentos e furriéis à frente das suas secções aguentam-se, embora a alguns lhes saiba  a boca papel de música. A Banda do RI 1 toca o Hino Nacio­nal e marchas militares. As praxes e formalidades do costume. Presentes altas individualidades civis e militares, não faltando o Movimento Nacional Feminino, distribuindo assobios da presi­dente e alguns cigarros, com a secreta mensagem:
– Se morreres!... Que seja na paz de Deus!

Ordem de embarque. Vagabundo sobe as escadas de acesso ao navio, entra no portaló e acena para sua irmã Amália e para os familiares e conhecidos que estão mais ou menos con­centrados na varanda, em frente do cais. Começam os primeiros desmaios, os primeiros gritos e choros. Vagabundo recorda Camões, os Lusíadas, o Velho do Restelo e aflora-lhe ao pensa­mento, enquanto ouve nitidamente por entre o Povo:  «Ó glória de mandar, ó vã cobiça desta vaidade a quem chamamos fama!»

Vagabundo não foi parido para isto. Milhares de len­ços brancos aparecem qual bando de borboletas sobre o cais e do outro lado, os lenços verde amarelados dos militares respon­dem. A sirene do “Timor” dá três roncos. É o delírio em terra e no navio. As mães gritam pelos filhos, as irmãs pelos irmãos, as noivas pelos noivos, as amantes pelos amantes! É aterrador!... Entra Vagabundo, entra, porque esta merda é o princípio do fim. Tu não gostas destas coisas, pois um homem fica mole e é uma grande porra.

Entra no bar do navio e pede um whisky ao barman. O barulho lá fora é ensurdecedor. Dá o primeiro golo e saúda:
– Por ti António que me fizeste! – Segundo golo: 
– Agora por ti Francisca, que me pariste! Por ti também avô Velhote, que ficaste sem companheiro!
– Por favor, dava-me mais um!

O barman com experiência destas situações, encheu o copo e Vagabundo.  já vaporizado, voltou aos seus brindes recordações.
– Por vocês.  irmãs! Calma, tem de ser um golo maior que são duas. Outro! por ti Inha! E os tios e primos? Também, mas são tantos! E os amigos? Ainda são mais! Oh! .,
– Porrr... favorrr... " um mais – pois já gaguejava .... 

Estava mesmo grogue! Veio a poesia, e lembrou-se dum poe­ma de Matos de Sá:

"Nada mudou
podes vir
de novo e com
o mesmo nome.
Em qualquer lugar
a distância para a morte
é a mesma.
Desigual é apenas
a vida que perdemos ..."


–Tânia.  porque não? Para ti também um golo especial e grande! Finalmente por mim, assim bêbedo estou melhor. Os últimos serão sempre os primeiros, (La Palisse) como diria  Marie Luise.

A viagem corre sem problemas para o furriel, até ao terceiro dia de viagem em que por serviço é obrigado a descer ao porão onde estão acomodados os seus soldados. Indescritível!... A miscelânea de odores é horrível, derivada dos enjoos causadores de vómitos de toda a espécie. Apenas uma solução, obrigar os soldados a subir ao convés para apanharem um pouco de ar. O militar começa a aperceber-se das dificuldades que lhe surgirão.

Mário Fitas, foto da página do Facebook
A 17 de Fevereiro aporta no cais de Bissau o navio “Timor”, transportando entre muitos, a CCAÇ 763 da qual faz parte o furriel miliciano Vagabundo. Instalada em Santa Luzia no BCAÇ 600, por escala o furriel Vagabundo tem como primeiro serviço em África, sargento de dia ao batalhão. A sua secção é reforçada por uma esquadra, comandada pelo 1°. cabo Laranjeira, natural de terras do lado do Norte.
– Não há fuga possível, Tânia a tua sombra e recordação sempre me hão-de perseguir.~


O primeiro contacto com África é um pouco desagra­dável. Não estava acostumado a ver tanta gente de cor. Mesmo em frente à porta de armas, há mulheres a chamarem os milita­res. Vagabundo fica furioso, mas o cabo Laranjeira diz-lhe para não ligar.
– Não deixe é ir lá os soldados, pois vão a pé e vêm a cavalo.

Já se sabe o destino da CCAÇ 763: entrar em quadrícula no sector do Tombali, concretamente Cufar, como reforço ao BCAÇ  619 sedeado em Catió, no Sul da Província.

Para além de Carlos, um verdadeiro comandante de homens, a CCAÇ possuía um “handicap” extraordinário em ofici­ais sargentos e praças. Mas… África é outro continente, a Guiné um problema, e Cufar um quebra-cabeças.

(Continua)

Guiné 63/74 - P16147: Revisitando o "chão fula", e ligando o passado com o futuro (Patrício Ribeiro, Impar Lda) - Parte I: Bafatá

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 Foto nº 1A > Maio de 2016 > Bafatá, ao fundo o rio Geba


Foto nº 2 > Maio de 2016 > Bafatá, a catedral (1)


Foto nº 2A > Maio de 2016 > Bafatá, a catedral (2)


Fotos: © Patrício Ribeiro (2016). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]



1. Mensagem, de ontem,  do nosso grã-tabanqueiro de Bissau (ou melhor, de Bafatá, onde agora vive) Patrício Ribeiro


[ Patrício Ribeiro,foto à esquerda: português, natural de Águeda, criado desde terra idade e casado em Angola, com família no Huambo, ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bissau desde 1984, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda, especilazada em energias alternativas; também conhecido carinhosamente como "pai dos tugas"; vive temporariamente em Bafatá, enquanto a sua empresa leva a luz e a água poyável a quase um cenetnas de tabancas do chão fula, no leste]


Assunto - Canquelifa - P16127,  de 23 de maio de 2016, de Jorge Araújo


Depois de ler este Post, junto fotos deste quartel. Vou enviar por 3 vezes as fotos.

Em um dos meus passeios,  no fim de semana passado, andei a estragar o carro e as costas, de Bafatá para Gabú, Piche, Buruntuma, Canquelifa, etc.

Enquanto a chuva não chega, para não nos complicar mais estas viagens na lama... A estrada está boa até Buruntuma, mas difícil até Canquelifá.

Ao ler o P16127 (*), resolvi enviar algumas fotos recentes, desta tabanca e também, ao longo das viagens quase diárias, que faço para esta zona [,  a partir de Bafatá, onde moro temporariamente].

Há quem goste de recordar, em especial o meu amigo António Rosinha, que também por aqui morou e trabalhou [, na TECNIL]. Nestas estradas de pó que, daqui por uns dias serão de lama...

Ambos estivemos na tropa em Angola, tivemos a sorte de não estar cá na guerra. Mas vamos deixar algumas obras feitas, em benefício da população. Que na sua maioria são Fulas, que sempre estiveram, ao longo dos séculos, ligados aos Portugueses.

E que nos ficam muito agradecidos. Neste caso vão ficar com água potável em 88 tabancas. Neste momento, já a têm em 75, já falta pouco…

Em outros tempos, o António Rosinha reparou as estradas para Pirada e Ché-Ché.

Como sempre, encontro antigos militares Portugueses, quando tiro fotos aos antigos quarteis destes locais, vão me contando as histórias desse tempo. Alguns eram milícias, outros militares, ainda outros ex-comandos Portugueses, que estiveram refugiados muitos anos no Senegal, viram muitos colegas seus serem lá capturados, enviados para a Guiné, onde tiveram um fim triste.

Junto algumas fotos das viagens desde: Bafatá, Piche, Canquelifa, e também do meu trabalho para publicarem, se tiver interesse.

Elas vão numeradas para identificação.

Abraço, desde o calor.
Patrício Ribeiro

Impar Lda  | Bissau

impar_bissau@hotmail.com
http://www.imparbissau.com/ 




Guiné > Zona leste > Bafatá >c. 1969/70 >  Vista aérea > Em primeiro plano, o rio Geba e a piscina de Bafatá (que tinha o nome do administrador Guerra Ribeiro e foi inaugurada em 1962, tendo sido construído - segundo a informação que temos - por militares de uma unidade aqui estacionada ainda antes do início da guerra).

Do lado esquerdo, o cais fluvial, uma zona ajardinada, a estátua do governador Oliveira Muzanty (1906-1909)... Ao centro, a rua principal da cidade. Vê-se, ao fundo, a estrada que conduz à saída para Nova Lamego (Gabu), à direita, e Bambadinca-Xime, à esquerda. À entrada de Bafatá, havia rotunda. Para quem entrava, o café do Teófilo, o "desterrado", era à esquerda..

Do lado direito pode observar-se a traseira do mercado. Do lado esquerdo, no início da rua, um belo edifício, de arquitetura tipicamente colonial, pertencente à famosa Casa Gouveia, que representava os interesses da CUF, e que, no nosso tempo, era o principal bazar da cidade, tendo florescido com o patacão (dinheiro) da tropa e, claro, dos produtos coloniais de exportação, como a mancarra e outars oleaginosas.  Por aqui passaram milhares e milhares de homens ao longo da guerra,  que aqui faziam as suas compras, iam aos restaurantes, iam ao cinema (!) e até se divertiam... com as meninas do Bataclã (que ficava no bairro da Rocha), já fora da cidadezinha  colonial, como convinha. Em Bambdainca, hvia uma filial ou sucursal do Bataclã, que em tempo de guerra a indústria do amor é a sempre a última a morrer... (LG)


Guiné > Zona leste > Bafatá >c. 1969/70 > Vista aérea > Rua Principal de Bafatá, com início na Casa Gouveia... Ao fundo do lado esquerdo, a igreja católica de Bafatá. chamavamos-lhe a catedral... E em em frente, do outro lado da rua, a sede da autarquia local... Mais acima, ao fundo, do lado direito, o hospital da cidade... À frente à Casa Gouveia, rm ptimeiro planmo, do outro lado da rua, o Mercado de Bafatá, de estilo revivalista. (LG) 

Foto do álbum do Humberto Reis, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71)


Fotos: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: L.G.]


2. Comentário de LG:


Bafatá é hoje uma "dor de alma", oxalá/inshallah/enxalé tu, Patrício Ribeiro,  e outros empresários ainda possam vir a reanimá-la!... Dizem-me que foi destronada pelo Gabu onde quem mais ordena são os comerciantes do "chão de francês"... C'est vrai ?

A nossa doce e tranquila princesa do Geba!... É a localidade, do nosso tempo, mais fotografada, ou pelo menos mais divulgada no nosso blogue em grande parte devido às excelentes fotos (e memórias) de camaradas como o Fernando Gouveia (arquiteto) ou o Humberto Reis (engenheiro), entre outros.

Sobre Bafatá  temos mais de 300 (!) referências no nosso blogue... E no Google Imagens a maior parte das fotos disponíveis (incluindo vistas aéreas) são nossas...

Obrigado, Patrício, em nome da Tabanca Grande e de toda rapaziada que passou pelo leste!... Vamos publicar as outras fotos que mandaste (de Piche e e sobretudo de Canquelifá)... Dá uma apitadela quando vieres de férias, ao "Puto". E se passares por outro sítios do leste (Bambadinca, Contuboel, Sonaco, Gabu, Pirada...)  tira-me umas chapas, com boa resolução como estas!... Como sabes, temos uma ligação forte a essa gente maravilhosa do chão fula!... Mantenhas!... LG
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 23 de maio de  2016 > Guiné 63/74 - P16127: (De)Caras (40): A Canquelifá da CCAÇ 3545 (1972-1974) e os acontecimentos de janeiro de 1974: a morte do "ranger" fur mil op esp Luís Filipe Pinto Soares (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)

Guiné 63/74 - P16146: Nota de leitura (843): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2015:

Queridos amigos
Não é novidade para ninguém que Álvaro Guerra é um dos escritores de primeira plana no arranque da literatura da guerra da Guiné. Em todos os seus primeiros livros, até 1973, a Guiné, os temas da guerra, as figuras que marcaram o combatente, os próprios ferimentos em combate que ele descreve em prosa magnífica no seu livro "O capitão Nemo e eu", são recordações guineenses poderosas, obsidiantes.
Pode-se dizer que esta literatura entrou com o pé direito com nomes como Armor Pires Mota, Álvaro Guerra e José Martins Garcia. As motivações posteriores da escrita são outra história, já contada e ainda por contar, teremos surpresas até que o último de nós exale o suspiro da despedida.

Um abraço do
Mário


Os Anos da Guerra, por João de Melo (3)

Beja Santos

"O Tempo em Uane", conto de Álvaro Guerra

Álvaro Manuel Soares Guerra nasceu a 19 de Outubro de 1936, em Vila Franca de Xira, onde passou a infância e concluiu os estudos secundários. Frequentou a Faculdade de Direito de Lisboa. Em 1961, foi mobilizado para a Guiné como oficial miliciano, ferido em combate, regressou em 1963. Estudou depois em Paris e ingressou no jornalismo (República e RTP). Após o 25 de Abril foi nomeado como embaixador político. Com este ou aquele matiz, os seus primeiros livros, até 1973, afloram a guerra da Guiné. A particularidade deste conto, tanto quanto eu sei, foi a sua única incursão na modalidade do conto, é passar-se no Sul da Guiné e relatar um ainda quadro de inocência de oficiais milicianos que desconheciam a rede de informações do PAIGC. Deverá datar de 1965 ou 1966.

O arranque do conto é luminoso em várias dimensões:
“A meio da tarde, vieram três alferes de Bedanda, na canoa a motor, tendo como pretexto a dominical caça aos crocodilos. Amarraram a canoa às velhas estacas de cibe do cais de Uane e encaminharam-se para a aldeia, os três alferes, o cipaio e os dois soldados da guarnição de Bedanda, o sol a abrir as primeiras gretas da seca nos estreitos valados do arrozal, o calor a martelar a terra e as costas reluzentes dos balantas que colhiam o arroz, enterrados na lama estagnada da bolanha que se estendia, na geometria infalível dos canteiros, desde a margem do rio até à longínqua orla do mato, limite sombrio daquele infernal e extensíssimo quadrado de sol chispando na água.
Atravessaram lentamente a bolanha, enfrentando o persistente ataque dos mosquitos. O alferes gordo que vinha à frente era quem mais suava, grossas gotas a deslizarem até ás guias do bigode e, por vezes, a arderem nos olhinhos miúdos que, no entanto, espreitavam os seios das mulheres a caminho do celeiro, os balaios cheios equilibrados sobre as cabeças de ébano. Procede-se a uma troca de cumprimentos entre quem vem e quem está. Tinha havido sarrafusca em Fulacunda. Sentam-se e bebem cerveja, e descreve-se o episódio: 
- Conta lá, então, como é que aquilo se passou.
- Uma emboscada. Três mortos e cinco feridos. Um jipe espatifado. Os gajos têm armas automáticas, carabinas, granadas. E uma vontade danada de nos comerem os fígados. 
E, mais adiante: 
- Depois, houve o ataque ao comando do batalhão. Dois mortos. Os tipos saltaram arame e estiveram mesmo na arrecadação do material. 
- E levaram alguma coisa? 
- Há quem diga que sim e quem diga que não. Não se sabe ao certo. 
No silêncio a voz da mestiça recomeçou a morna, serenamente. 
- A sua mulher canta bem, seu Jaquim – disse o da cicatriz.
O homem sorriu, confuso. 
- Mais uma cervejinha, senhor alferes?
Ele disse que não. Nunca se habituara àqueles cheiros adocicados do gergelim, do mel, do coconote, misturados com o suor dos homens – o cheiro das lojas do mato. Isso e a cerveja que lhe caíra no estômago como uma pedra punham-lhe chumbo nas pálpebras. 
- Que é que vieste aqui fazer com o pelotão? 
- Caçar um bando de 50 tipos – respondeu, irónico. 
- Não sabia que esta zona ainda pertencia à tua companhia. Estás a quase 60 quilómetros de Buba. 
E o “Pau de Virar Tripas”: 
- Isso do bando que anda por aqui, é verdade? 
- Sei lá… Mas é evidente que não acredito em semelhante coisa. 
Era muito simples não acreditar, faltava-lhes a certeza absoluta de uma bala tombar um deles, eram ainda imortais, embora já saboreassem o medo, cada um com o seu plano de salvar a vida. Eram outras as próprias palavras e o modo como os quatro alferes as diziam, ali em Uane, uma aldeia Balanta com 50 e tantas moranças, a loja do Joaquim, o Posto e o celeiro, tudo por causa do arroz que os barcos, a pouco e pouco, levavam rio abaixo. O radiotelegrafista apareceu à porta e disse: 
- Há uma mensagem para decifrar, meu alferes. 
Sobrepondo-se à morna que vinha lá de dentro e que se repetia (“Qu’ê d’nha crêtcheu”), a voz cabo-verdiana do Joaquim: 
- Vou mas é mandar a patroa para Bissau.
Uma hora mais tarde, os cinquenta guerrilheiros, algures no mato, já sabiam o que é que o pelotão de Buba tinha vindo fazer a Uane”.

Se me perguntarem o que há de original na natureza deste conto, direi que é surpresa de descrever os primórdios da guerra, escapando completamente ao lápis da Censura. Estamos em meados da década de 1960, vende-se no nosso mercado interno a ideia de que aquela guerra é um vasto somatório de ações de policiamento, e aqui diz-se desabridamente que o excesso de confiança era aproveitado pela rede de informadores, rapidamente alguém fazia chegar ao mato a notícia de que vinha por aí uma operação. E há a trama do próprio conto, entra-se diretamente nos acontecimentos a descrever e traça-se em pinceladas largas o ambiente: a vinda numa canoa, os trabalhos na bolanha, o encontro entre alferes, a ida dos quatro até ao estanco do senhor Joaquim, descrição direta e seca: “Sentaram-se os quatro nas cadeiras aviadores de pau-sangue, rijas de quebrar os ossos, à volta da mesa redonda com um naperão de renda desbotado e sujo”.

Descrevem-se acontecimentos bélicos, sem o cuidado de guardar sigilo do que houve e do que vai haver. Usa-se uma linguagem desbocada e jamais ficaremos a saber se foi o senhor Joaquim, a sua mulher ou um enviado de um ou outro que foi informar o que o pelotão de Buba tinha vindo fazer a Uane. Esta a mestria do conto, ali não falta a modorra, a descontração, a inocência. E ficamos igualmente a saber que é tudo dificílimo naquele Sul que começou a conhecer o tumulto da reviravolta no segundo semestre de 1962, como hoje está devidamente esclarecido.

Penso que se fecha com chave de ouro as recensões ao livro “Os Anos da Guerra”, com organização de João de Melo.
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Nota do editor:

Postes anteriores de:

23 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16124: Nota de leitura (841): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (1) (Mário Beja Santos)
e
27 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16140: Nota de leitura (842): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P16145: Álbum fotográfico do José Salvado, ex-fur mil, CART 1744 (São Domingos, 1967/69) - Parte IV: São Domingos (3): a capital do chão felupe




Foto nº 2  > O autor junto a um velho barco, no rio (oui ribeira) de S. Domingos, afluente do Rio Cacheu


Foto nº 3 > Saída, de bote de borracha, para a uma operação


Foto nº 4 > Aquartelamento de S. Domingos: abrigos


Foto nº 5 > A carregar cascas de ostra...


Foto nº 5 >  Mulher grande, felupe

Guiné > Região do Cacheu > S. Domingos > CART 1744 (1967/69)

Fotos (e legendas): © José Salvado (2016). Todos os direitos reservados



1. Quarte parte do álbum fotográfico do José Salvado, ex-fur mil arm pes inf, CART 1744 (São Domingos, 1967/69).

 Recorde-se que a CART 1744 chegou ao TO da Guiné em 25 de julho de 1967, sendo colocada em S. Domingos, na região do Cacheu, como companhia de intervenção. Fez operações em S. Domingos, Susana, Ingoré, Cacheu e Sedengal. O José Salvado veio de férias à metrópole em 1968. Regressou a casa no T/T Niassa, com partida a 15 de maio de 1969, e desembarque em Lisboa no dia 21.

São Domingos,, na margem direita do Rio de São Domingos, afluente do Rio Cacheu,  era a capital do chão felupe,  que incluía ainda as povoações de  Susana e Varela. onde estiveram destacados militares portugueses ao longo da guerra (1961/74).
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domingo, 29 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16144: Ser solidário (197): Ler faz crescer - uma alegria em Cumura: texto e fotos dos nossos amigos Ana Maria Gala e João Martel















Guiné-Bissau > Cumura >  Missão da Cumura > A nova biblioteca!


1. Mensagem dos nossos amigos Ana Maria e João Martel:


Foto da página do Facebook  Um Pé na Guiné

 Data: 16 de abril de 2016 às 22:16

Assunto: Ler faz crescer - uma alegria em Cumura


Não podíamos deixar de partilhar com os amigos deste projecto "um pé na Guiné" mais esta grande alegria!

Damos graças a Deus e desejamos que uma luz única e maravilhosa se abra em cada uma destas pequenas mentes.

Agradecemos profundamente a todos os amigos e benfeitores que vão tornando isto possível.

Um abraço da Guiné!

Ana Maria e João

2. Ser solidário > Um pé na Guiné > 13 de abril de 2016 > Ler Faz Crescer!


[Um pé na Guiné: projeto criado por dois jovens profissionais portugueses, um médico, João Martel,  e uma professora do 1º e 2º  nciclos,, Ana Maria Gala,  que se propuseram a colaborar, pelo período de um ano, com a Missão de Cumura - uma missão humanitária Franciscana, na Guiné-Bissau. Cumura é uma pequena aldeia que se situa a 12 km de Bissau e que há mais de 50 anos conta com a presença Franciscana. Estes jovens, e nossos amigos, nossos grã-tabanqueiros, estão aqui deste setembro de 2015... e vão ficar  até ao próximo mês de junho, portanto mais uns dias ou mais umas semanas. O seu objetivo é(era) trabalhar para a continuidade da missão e para a formação de recursos humanos, colaborando no hospital e na escola de Cumura.  Parabéns pela obra feita e sobretudo pelo exemplo generoso e solidário. Bom regresso a casa.  LG]


Texto e fotos por  Ana Maria Gala e João Martel

– "É amanhã que libertamos aquela sala!"..,
– "Já pedi para limparem a sala",..
– "Tem de ser aquela, tem mais luz"...

Muito andávamos a conspirar para começar os trabalhos da nova biblioteca dos mais pequenos. Hesitações sobre o espaço, a disposição das estantes, a catalogação das obras, os novos bibliotecários a contratar e ensinar… Como em todos os empreendimentos, havia que começar!

Num sábado de Fevereiro pela manhã, arregaçámos as mangas, caixotes para dentro do carro, panos na mão e entrámos em acção! Uma pequena equipa de trabalho de 5 maduros fez-se ao pó e às tralhas da velha sala de professores, para fazer nascer ali um novo espaço para o conhecimento. Fazer a triagem dos materiais ali esquecidos, dar o justo destino aos livros de ponto do século passado, tirar grandes teias de aranha, arrastar as pesadas estantes,  tudo se justificava para aproveitar a boa luz daquela sala! Os professores iriam ter um novo espaço também, mais funcional e arrumado.
Desencantaram-se algumas mesinhas que os amigos de Itália tinham doado, reaproveitaram-se estantes que não estavam em uso e, praticamente a custo zero, o novo espaço começou a ganhar forma.

Para dar as boas-vindas aos nossos alunos, prontificou-se o nosso amigo “Honório Leitor” – um pequeno peixe que tinha chegado aos mares da Guiné, pela amizade de quem o enviou de Portugal, e que encontrou o seu lugar de anfitrião.

Se o Honório já tinha lugar….. era hora de inaugurar! E assim foi: no dia 31 de Março, fez-se a abertura e apresentação do espaço aos professores e alunos. A curiosidade já era muita e, ao verem a sua nova biblioteca, os sorrisos mostraram-se, com ânsia de folhear aqueles mundos desconhecidos (e houve quem o fizesse logo, não conseguindo esperar).

No fim da apresentação a cada turma e respectivos professores, muitos agradeceram a generosidade dos amigos de Portugal. Os professores salientaram a importância desta doação para os alunos de Cumura, dado que as crianças e jovens na Guiné têm muito pouco acesso a livros, no geral, e particularmente a literatura adaptada à sua idade.

O funcionamento da biblioteca só é possível garantindo o apoio e vigilância do espaço nos períodos da manhã e da tarde. A escola comprometeu-se com a contratação de dois bibliotecários, dois jovens da comunidade de Cumura, um deles ainda aluno do Secundário. Têm recebido alguma formação e começaram já a desempenhar as suas tarefas de forma aplicada, recebendo uma pequena quantia mensal.

Desde a abertura da biblioteca, assim que toca a sineta, fazem-se corridas para chegar primeiro, já que a capacidade do espaço não é grande (cerca de 18 alunos sentados). Muitos decoram o lugar do seu livro na estante para conseguir apanhá-lo antes de outros.

E a nós é isto que nos faz correr. Os resultados são bonitos de se ver.

Nota: Esta biblioteca só se tornou possível com o contributo de muitos amigos e benfeitores de Portugal. Desde a doação, à reunião, triagem e encaixotamento, expedição e recepção dos livros, inúmeras pessoas trabalharam afanosamente para este resultado. Queremos lembrar aqui:

– Familiares e amigos – em especial a Inês Martel e a Maria e Isabel Gala, que foram pontos de contacto, embaladoras e verdadeiras promotoras e dinamizadoras deste projecto;

– Os alunos do Secundário do Liceu Pedro Nunes, que reuniram e continuam a reunir várias obras para os colegas de Cumura;

– A Fundação João XXII [, com sede em Ribamar, Lourinhã], que tornou possível o transporte da maioria destas obras para a Guiné, sem custo para nós;

– Os colaboradores da Fundação Calouste Gulbenkian, que se mobilizaram para reunir um conjunto importante de obras de literatura infanto-juvenil.

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Nota do editoral:

Último poste da série > 5 de março de  2016 > Guiné 63/74 - P15822: Ser solidário (196): Vamos ajudar a ONGD "Ajuda Amiga", com a consignação de 0,5% do IRS... Notícias: A "Ajuda Amiga" (i) tem novo sítio na Net; (ii) tem novos corpos sociais para o biénio de 2016-17; e (iii) os seus dois cententores deste ano já chegaram a Bissau (Carlos Silva)

Guiné 63/74 - P16143: Blogpoesia (450): "Brando, sereno e suave..." e "As energias...", por J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. "Brando, sereno e suave" e "As energias...", poemas do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66).


Brando, sereno e suave...

Espelha o lago o luar de Agosto.
Saciada de sol, dorme feliz à volta a natureza.
Se ouve apenas a sinfonia dócil do silêncio.
Levitam no ar os sorrisos albos das estrelas.
Enquanto a Terra ofegante circunda o sol.

Sobem à mente os nossos sonhos mais profundos.
Sobem no ar em nuvens a caminho do infinito.
É pesada a terra e muito escasso o lago
para os suster em liberdade...

Berlim, 28 de Maio de 2016
9h43m

ouvindo Fauré

Jlmg
Joaquim Luís Mendes Gomes

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As energias...

A raiz do movimento está na energia universal.
Tudo penetra e predomina.
Desde a matéria ao imaterial.

Não é circular seu movimento.
É helicoidal.
Desde as órbitas das galáxias
Aos minúsculos átomos das moléculas.

Um imenso, quase infinito, mar de ondas
Gravita o mundo
Em vertiginosas correrias.

Até nossa luz do pensamento
Tal como a vida,
Delas emanam
Numa inefável transfiguração,
A anos-luz dos admiráveis segredos da matéria...

ouvindo o Emperor Concerto de Beethoven
lindo dia de sol

Berlim, 29 de Maio de 2016
9h31m

Jlmg
Joaquim Luís Mendes Gomes
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16118: Blogpoesia (449): "Comboio da madrugada...", por J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 63/74 - P16142: Manuscrito(s) (Luís Graça (84): Por que te calas, camarada ?



Foto nº 1


Foto nº 1A

Foto nº 2

Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo >19141 > Chegada do 1º batalhão expedicionário do RI 5 (Caldas da Rainha) (foto nº 1). "23/7/1941... Na foto [, do batelão que nos levou para terra,] estou eu com mais alguns camaradas da minha companhia. No porto do Mindelo [foto nº2]  fomos entusiasticamente recebidos"].

Fotos do álbum de Luís Henriques (1920-2012), ex-1º cabo inf, mobilizado pelo RI 5 (Caldas da Rainha), expedicionário, que viria a integrar o RI 23 (Mindelo, Ilha de São Vicente, Cabo Verde, 1941/43).

Não tenho a certeza absoluta mas na foto nº 1A poderá ser o meu pai o militar assinalado com um rectângulo a amarelo.

Fotos © Luís Graça (2016). Todos os direitos reservados [Edição: LG]



Por que te calas, 
camarada ? (*)

por Luís Graça (**)
  


O meu pai, Luís Henriques (1920-2012), 
também andou "lá fora", 
no ultramar,
a defender o Império, a Pátria,
durante a II Guerra Mundial, 
em Cabo Verde, São Vicente, Mindelo, 
entre 1941 e 1943...

Cresci, fascinado, 
a folhear o seu álbum de fotografias,
que andava lá por casa, escondido, 
numa gaveta, 
entre papéis velhos...
Mas ele nunca me sentou ao colo
e me explicou, tim por tim,
por que terras e mares tinha passado,
por que é que andou a "engolir pó" 

até ficar doente dos pulmões
(dir-me-ia mais tarde),
durante 26 meses,
lá nessa terra distante, semidesértica,
enfim, não me contou as histórias desse tempo, 
do seu tempo de menino e moço,
ainda eu não era nascido...

Afinal, era eu que as tinha que adivinhar, 
fantasiar,
criar as minhas próprias histórias, 
enredos,
personagens, 
mesmo se muitas dessas fotos tivessem legendas, 
lacónicas no verso,
escritas a tinta verde,
no tempo em que o vermelho era proibido ser vermelho,
ou só se dizer "escarlate" ou "carmesim", 
por causas das coisas e das moscas...
Foi aí que aprendi a legendar:
o Monte Cara, 
o ilhéu dos pássaros,
o Porto Grande, 
os navios hospitais italianos,
o vapor Mousinho de Albuquerque, 
o tubarão, 
o macaquinho fugido da fome de Santo Antão, 
o cemitério da tropa, 
os exercícios, 
as paradas, 
as antiaéreas,
os cavalos, 
o senhor ministro das colónias,
as meninas lá da terra, as bias,
em fatinho de chita, domingueiro, de ir à missa...
Mas, como eu era puto, 
e mal sabia ler, 
e muito menos sabia de história e geografia,
não entendia nada...

Cresci, arranjei outras brincadeiras,
na rua do Castelo da minha terra,
e no largo do Convento,
fronteiro à escola,
que era o mundo que eu conhecia e pouco mais,
esqueci o álbum das fotos da tropa do meu pai,
mas não pude esquecer a guerra
que, já adolescente, aos catorzes anos,
me irá caber em sorte...

Um dia, também a mim,  tocou a vez
de ir cumprir o serviço militar obrigatório 
e de ir "defender a Pátria", 
neste caso, 
ainda mais longe, 
lá na verde e rubra Guiné, 
em plena África, 
quase trinta anos depois...
Nunca falámos, nem ele me deu conselhos: 
olha isto, olha aquilo,
cuidado com isto, cuidado com aquilo... 
Nem sequer se foi despedir de mim,
que era longe a capital do império
e mais longe a terra para onde zarpava o velho Niassa...

Por pudor, perguntar-me-ás, camarada ? 
Sim, por pudor...



Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 19 de agosto de 1942 > "No dia em que fiz 22 anos, em S. Vicente, C. Verde. 19/8/1942. Luís Henriques ".



Minto: ofereceu-me umas botas,

de cano alto, 
até ao joelho,
de montar,
porque sabia que na Guiné
havia mato, com capim alto, e pântanos, e cobras...
Agradeci-lhe a ternura,
mas não as levei:
pesavam que nem chumbo!

Voltei, "são e salvo" (?), 
e continuámos sem falar, 
da tropa, 
da guerra, 
das áfricas... 
Era lá coisas que os pais falassem com os filhos
e os filhos com os pais!

Veio o 25 de abril, 
esqueci (?) a guerra, 
por um estranho sentimento de culpa, 
por pudor, 
por vergonha,
por estúpido preconceito talvez... 
Era politicamente incorreto, nesse tempo, 
falar-se da (ou até pensar-se na) 
maldita da guerra colonial, 
ou do ultramar, 
ou de África...

Passaram-se os anos 
até que, em 1980, 
comecei a interessar-me pelas minhas vivências da Guiné, 
publiquei uma série de escritos no semanário "O Jornal"... 
e por tabela fui "redescobrir" 
o velho álbum do meu pai, 
já desconjuntado. 
amarelecido, 
comido pela traça e pela humidade...

Com o blogue, 

a partir de 2004, 2005, 
começámos a ter conversas de maior "cumplicidade", 
eu e o meu pai, 
como dois bons e velhos camaradas... 
Afinal, Cabo Verde e a Guiné, ali tão perto...

Publiquei com ternura as fotos dele, 
no Mindelo, São Vicente, Cabo Verde, 
(as que restaram, ao fim de tantos anos...) 
e fiz diversos vídeos com entrevistas com ele, 
sobre esses tempos de "expedicionário"... 


Luís Graça, Bambadinca, c. 1970
Criei, no nosso blogue, uma série,
Tenho pena de, por razões de saúde, 
nunca o ter podido levar em viagem de saudade, 
de regresso, 
a São Vicente... 
Teimoso, ele nunca quis fazer uma artroplastia das ancas... 
A velhice (e o blogue) aproximou-nos
por volta dos oitenta e tal anos... 
Tarde, 
mas valeu a pena...



Provavelmente, sem o blogue, 
ele teria morrido, como morreu, 
há quatro anos atrás, 
sem eu ter sabido mais nada 
sobre os três anos e tal de vida 
que ele passou na tropa e na guerra, 
os seus medos, temores, amores, desamores,
saudades da terra e das uvas em setembro, 
as cartas que escreveu, 
centenas e centenas para os seus caramadas
que não sabiam ler nem escrever,
os versos de amor que mandou para a minha mãe,
os problemas de saúde, 
as amizades, 
as cumplicidades,
as histórias de vida daqueles homens,
abandonados no meio do Atlântico, 
em plena II Guerra Mundial,
e, mais tarde, os convívios do seu batalhão,
até que a morte os levou, um a um,
ano após ano...
Estão todos sepultados na vala comum do esquecimento...





Lourinhã > Abril de 1999 > Luís Henriques (1920-2012), com 78 anos,  e Maria da Graça (1922-2014), com 76



Espantoso, 
ouvi o meu pai, horas e dias a fio,
falar de Cabo Verde,
mas eu continuei sem nunca lhe falar da Guiné...
Acho que vou levar esta mágoa comigo
na última viagem que irei fazer,
através do rio Caronte,
o tal que, segundo os gregos antigos, 
todos os homens vão ter que atravessar um dia, 
e que só tem uma margem, 
a do lado de cá,
viagem da qual ninguém regressa,
a não ser os deuses e os heróis.

Afinal, boa pergunta: 
por que te calas, camarada ?


Lisboa, 20/4/2014 | Lourinhã, 28/5/2016


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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16134: (In)citações (91): "Um gajo não sabe o que foi a guerra colonial", diz Marcos Cruz, filho do Dr. Adão Cruz, um dos médicos do BCAÇ 1887 (Francisco Baptista, ex-Alf Mil)

(*) Último poste da série > 9 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16067: Manuscrito(s) (Luís Graça) (83): As nossas máscaras, ontem e hoje... Apontamentos sobre o XI Festival Internacional da Máscara Ibérica (Lisboa, 6-8 de maio de 2016)


sábado, 28 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16141: In Memoriam (258): Soldado Ilídio Fidalgo Rodrigues, o "Esgota Pipas" da CCAÇ 2382, morto por um estilhaço de um projéctil IN (Manuel Traquina, ex-Fur Mil)



1. Mensagem do nosso camarada Manuel Traquina (ex-Fur Mil da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70), com data de 17 de Maio de 2016:


Ilídio Fidalgo Rodrigues

O Infeliz “ Esgota Pipas”

Na tropa, de um modo geral todos têm um alcunha, na maior parte das vezes são chamados por esse alcunha, ou pelo número que lhee foi atribuído. Em muitos casos é pelo seu verdadeiro nome, que são menos conhecidos.

Neste caso o soldado de nome (Ilídio?) Elídio Fidalgo Rodrigues, foi ele próprio que escolheu a sua alcunha, nem mais nem menos “Esgota pipas”. Foi esta a alcunha que ele próprio escolheu.

Efectivamente, recordámo-lo na Guiné, ele gostava de beber o seu copo, a sua cerveja, porém não se poderia dizer que fosse grande bebedor! Poderemos dizer que esta alcunha, era mais uma brincadeira que outra coisa.

Era um bom rapaz, natural da zona de Palmela, considerado a figura típica da Companhia 2382, e que passou a ser conhecido por todos, pela sua simplicidade humorística, a tropa para ele não contava, cada passo que dava era por “brincadeira”.

Talvez por ser simples de mais, no aquartelamento de Buba ele foi dispensado das saídas para o ”mato”, e assim ficou como ajudante de cozinha. Mas a Guerra na Guiné era assim e, só porque a sua actividade se resumia a trabalhos auxiliares dentro do aquartelamento, não quer dizer que não corresse riscos.
Assim aconteceu na fatídica noite de 14 do mês de Fevereiro de 1969, em que o aquartelamento sofreu um dos maiores ataques.

Ao fim da tarde o soldado Ilídio ocupava-se da limpeza do refeitório quando rebentou o ataque, como habitual correu a abrigar-se na vala que circundava o refeitório, porém o infortúnio acompanhou-o e, muito perto explodiu um projéctil em que alguns estilhaços lhe atingiram seriamente um órgão vital.
Evacuado na manhã seguinte, passados dias veio a falecer no Hospital Militar de Bissau, sem tempo sequer para mais uma “laracha” com os amigos.

(Do livro “Os Tempos de Guerra - De Abrantes à Guiné” de Manuel Batista Traquina)


 Fuselagem do projéctil do inimigo que terá causado morte ao Ilídio

Alguns membros do Núcleo da Liga dos Combatentes de Pinhal Novo e da CÇaç 2382 junto à campa do infeliz Ilídio no cemitério de Palmela, por ocasião do Almoço / Convívio da Companhia que se realizou no dia 7 de maio em Fernão Ferro.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16057: In Memoriam (257): José Eduardo dos Santos Alves, o "Leça" (1950-2016), ex-sold cond auto, CART 6250, Mampatá (1972/74): homenagem da Tabanca Grande

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16140: Nota de leitura (842): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,
O trabalho de investigação de João de Melo foi tão rigoroso e cuidado, que publicados estes dois volumes sobre a literatura das três frentes em 1988 a sua leitura continua a ser imprescindível, bem entendido para quem pretenda conhecer as primeiras décadas da literatura da guerra.
O jornalista e escritor Joaquim Vieira contextualiza os acontecimentos, seguem-se as antologias.
Deixamos para a próxima incursão a revelação de um conto de Álvaro de Guerra de altíssima qualidade, e até agora não divulgado entre nós, "O Tempo em Uane".

Um abraço do
Mário


Os Anos da Guerra, por João de Melo (2)

Beja Santos

“Os Anos da Guerra”, com organização de João de Melo, dois volumes, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988, constitui o primeiro e até agora o mais significativo levantamento sobre a literatura da guerra colonial, nas suas três frentes. No primeiro volume, o escritor João de Melo passa em revista as principais etapas que conduziram os movimentos de libertação à luta armada, percorrem-se os itinerários da preparação militar e analisa-se a literatura de Angola. Este segundo volume integra as literaturas de Moçambique e da Guiné e diferentes olhares sobre e no regresso da guerra. Como sempre, Joaquim Vieira procede às introduções dos respetivos conflitos. No caso de Moçambique, refere que em 1964 a FRELIMO procurou lançar a insurreição em cinco distritos, descobrirá que não possuía forças suficientes e concentra-se em Cabo Delgado e Niassa, aproveita-se dos apoios situados na Tanzânia. A FRELIMO demorou a impor-se, sofreu divergências internas, tinha no seu seio duas grandes correntes, a pró-ocidental e a francamente pró-chinesa. O projeto de Cahora Bassa, no distrito de Tete alterou por completo o ruma da situação em Moçambique. Eduardo Mondlane foi assassinado nos escritórios da FRELIMO em Dar-es-Salam, Samora Machel sucede-lhe na presidência no ano seguinte e a ala mais moderada do partido é afastada, tendo-se alguns dos seus dirigentes entregue às autoridades coloniais. O período do Comandante-Chefe Kaúlza de Arriaga irá ficar assinalado pela operação Nó Górdio, proclama que a guerrilha está à beira do aniquilamento, numa altura em que a FRELIMO se concentra no distrito de Tete e ameaça a construção da barragem de Cahora Bassa. A guerra avança, o equipamento da FRELIMO melhora e em 11 de Abril é disparado o primeiro míssil Strella. Escreve Joaquim Vieira:
“O relatório do quartel-general da Região Militar de Moçambique, referente aos quatro primeiros meses de 1974, indica um acréscimo global da atividade da guerrilha, um pouco por toda a parte. Impressionado pela deterioração da situação, Costa Gomes decide afastar o Comandante-Chefe”.

Vários são os autores referenciados, mas a figura principal é necessariamente Carlos Vale Ferraz e o seu “Nó Cego”, aqui fica um estrato:
“Ao Passos pareceu-lhe distinguir silhuetas de palhotas, de gente entre os arbustos. Parou, avisou os soldados da sua equipa, o alferes e o capitão. Agachados, dispostos num rosário de contas ao longo do trilho, pressentindo a chegada do momento, retida a respiração, os homens, em equipas de cinco, foram-se desfiando em linha.
Prontos? Interrogaram os olhos antes de se lançarem ao assalto correndo e disparando sobre tudo o que bulisse, sombras e corpos. Atiravam as granadas de mão para o interior das palhotas como garotas assustando galinhas, rebentavam a pontapé as frágeis portas enquanto atravessavam o pequeno aldeamento, agarravam pelos panos os corpos dos negros que não tinam conseguido fugir.
- Encosta esse par de jarras aí a essa árvore para lhes retirar o retrato! – gritava o Pierre o para o Vergas, que passava arrastando um casal de negros velhos, ela, a cocuana, de tronco nu, as mamas descaídas quase até à cintura, a pele cinzenta escamada do calor e da sujidade, ele, curvado e dorido, as articulações deformadas.
O Vergas hesitou em entregá-los ao Pierre, sentia-se estranho, já não possuía as mesmas certezas dos primeiros meses de guerra, abriu a mão para os deixar entregues ao pequeno tripeiro e ficou de olhos parados vendo-o colocá-los a jeito antes de disparar uma rajada curta. Seguiu o descair lento deles até se enrolaram sobre a terra nos últimos estertores.
- Esta não! – rugiu o Passos, com uma negra jovem agarrada por um braço, para o Pierre a rir-se ainda com a G3 a fumegar, preparando-se para repetir a cena. 
– Esta vai pagar-mas doutra maneira! Puxou-a para trás de um arbusto enquanto os homens da companhia continuavam a disparar e a partir os potes de barro. Deitou-a sobre o capim seco, escutando deliciado os gritos e os tiros, arregaçou-lhe o pano da saia, abriu-lhe as pernas e enfiou-se nela. Resfolgou que nem um toiro cobridor.
A negra continua deitada depois de ele se levantar limpando-se antes de apertar as calças, os panos enrolados na cintura, os olhos parados, muito abertos, apenas os músculos tensos do pescoço erguiam ligeiramente a cabeça fixando inexpressiva, a cara dos soldados que se aproximavam.
- Vá, ó Transmissões de um cabrão, vá, agora tu! – berrava o furriel.
O Brandão, pálido como sempre, cuspiu e passou adiante. Foi o Freixo quem lhe tomou a vez, deitou a G3 ao lado do corpo e bombeou-se para cima e para baixo, rápido a despachar antes que outros viessem ou o capitão passasse por aquele canto escondido na periferia do aldeamento assaltado”.

E chegamos ao contexto da Guiné, Joaquim Vieira fala do significado comercial da colónia, da pujança da ofensiva rebelde, da desarticulação do território, da chegada de Spínola, da sua ofensiva psicológica e militar, são informações que todos nós já dispomos no blogue. A escolha de João de Melo para a literatura inclui nomes grados como Álvaro Guerra e José Martins Garcia. Começa logo por destacar o conto “O Tempo em Uane”, que veio incluído em Histórias Breves de Escritores Ribatejanos, antologia organizada por António Borga, Lisboa, 1968, mas que apareceu também numa antologia de literatura ultramarina organizada por Amândio César em 1966. É uma narrativa belíssima, merece destaque no próximo texto, nunca dela se falou aqui. Uma das razões fundamentais por que se deve procurar conhecer os textos que João de Melo escolheu para esta obra incontornável é a visão do depois da guerra a diferentes vozes e aí depõem escritores como Olga Gonçalves, António Lobo Antunes e Lídia Jorge, entre outros. “Os Anos da Guerra” incluem a bibliografia geral sobre a guerra colonial e a cronologia sobre as lutas de libertação, evidentemente tudo reportado a 1988. É ocioso dizer que muitíssima água correu depois sob as pontes.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16124: Nota de leitura (841): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (1) (Mário Beja Santos)