segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16694: Agenda cultural (513): Apresentação do livro "Quatro Rios e um Destino", da autoria de Fernando de Jesus Sousa (DFA), ex-1.º Cabo da CCAÇ 6, dia 10 de Novembro de 2016, pelas 15 horas, na Messe Militar do Porto, sita na Praça da Batalha


O nosso camarada Manuel Barão da Cunha, Coronel de Cav Ref, que foi CMDT da CCAV 704 / BCAV 705, Guiné, 1964/66, dá-nos notícia da apresentação de mais um livro, integrada no 16.º Ciclo de Tertúlias Fim do Império, a levar a efeito na próxima quinta-feira, dia 10 de Novembro, na Messe Militar do Porto.
Desta feita trata-se de mais um livro já nosso conhecido, "Quatro Rios e um Destino", da autoria do nosso camarada Fernando de Jesus Sousa.





16.º CICLO DE TERTÚLIAS FIM DO IMPÉRIO

149.ª TERTÚLIA

PORTO, 10 DE NOVEMBRO, 5.ª FEIRA, ÀS 15 HORAS

MESSE MILITAR DO PORTO



"Quatro Rios e um Destino", da autoria de Fernando de Jesus Sousa (DFA), ex-1.º Cabo da CCAÇ 6, Bedanda, 1970/71

Edição: Chiado Editora
Setembro de 2014
Número de páginas: 304
Género: Biografia

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Prefácio do livro "Quatros Rios e um Destino", da autoria do Professor Doutor Amaral Bernardo, à data, Alferes Miliciano Médico em Bedanda.

“Julgo que ninguém que viu ou venha a ver este filme na plateia seja capaz de compreender estas situações e muito menos senti-las, porque vão muito para além da imaginação humana! Os horrores por mim ali vividos naquelas antecâmaras da morte!...”

“Hoje atrevo-me a dizer que foram os gritos de revolta destes deserdados da sorte que abriram as consciências! Foi com as lágrimas destes inconformados que foram regados os craveiros que fizeram florescer os cravos do 25 de Abril…” 

Fernando de Sousa


Se alguma legitimidade há para deixar aqui umas palavras prévias ao início destas Memórias de um período estigmatizante da vida do Sousa, ela poderá advir de duas circunstâncias.
Uma prende-se com o facto de termos sido contemporâneos em Bedanda durante seis meses (dos treze que lá passei), querendo isto dizer que além de camaradas ex-combatentes, estamos irmanados pelas vivências partilhadas no dia-a-dia de um aquartelamento (leia-se redil de arame farpado e pouco mais, mas uma praça militar fortíssima) daquela Região do Sul da então Guiné, naquele período; acresce que a CCAÇ6, ”Os Onças Negras”, que guarnecia este aquartelamento e garantia a segurança naquela zona, era uma Companhia de soldados africanos com quadros europeus - penso que não seríamos mais de vinte no total. Fizemos, pois, ambos, parte desta restrita família.
A outra, porque aquando do acidente grave relatado nestas Memórias, os cuidados de saúde estavam sob a minha responsabilidade naquela zona e, portanto, também estive naquele angustiante momento que fez com que o Sousa ficasse sem uma parte dele (leia-se, parte da vida dele). Primeiro, via rádio, enquanto lhe foram prestados os primeiros e fundamentais socorros no local, e depois no posto de socorros da unidade, com os demais elementos da equipe, e até à evacuação para o Hospital Militar em Bissau. Esta vivência foi profissional e emocionalmente muito marcante.

O facto que, certamente, esteve na génese do nascimento deste testemunho vivo que o Sousa nos dá, data de Julho de 1971 e, desde então, nunca mais tinha sabido nada dele (visitei-o em fins de Julho desse mesmo ano no Hospital Militar em Bissau - ele não se recorda). Só quarenta e um anos depois nos reencontramos na Mealhada, no almoço anual da Tabanca de Bedanda, que junta os ex-combatentes que lá estiveram - a família grande de Bedanda! Conheci, então, o homem que hoje é.

E quem é este homem? Onde e como cresceu e se fez, como foi preparado para uma guerra que nunca entendeu, que lhe arrancou parte da vida, que por pouco não o matou? E como chegou lá? A sua estadia nessas terras desconhecidas que vivências lhe ia dando? Como era o dia-a-dia num aquartelamento em zona de guerra? E passados todos estes anos, o que ficou?

Estas Memorias, escritas, melhor, faladas para o papel, de uma forma natural, espontânea e fluída…. Um filme bucólico e idílico e a cores por vezes, outras a preto e branco pesado, dão-nos as respostas.
Contam-nos como um jovem aldeão, com uma vida simples mas dura, embora cheia de esperança, é transformado num soldado, um número, e quais foram os caminhos que o levaram para a guerra, que nunca entendeu.
Denunciam com críticas pertinentes, adequadas e bem fundamentadas, que ecoam ora como um grito de alerta e revolta ora com grande desespero e pesar, os multifacetados aspectos deste monstro insaciável que é a guerra: políticos, económicos e sociais de uns, e a robotização e sofrimento dos que são a estrutura base desta máquina infernal de matar e morrer, a troco de nada.
Relembram-nos os imperdoável e injustamente esquecidos desta guerra - os soldados africanos mortos nas nossas fileiras e que não têm direito a constar ao lado dos nossos nos memoriais públicos.
Revelam-nos o pungente testemunho do regresso e permanência no Anexo do Hospital Militar em Lisboa que é, no mínimo, kafkiano.

“Para mim, esta fatalidade chegou! Como um deus em jeito de raio caído do céu, ou um demónio saído das profundezas da terra. Ou, até, talvez os dois juntos, cada um deles exigindo parte de mim, do meu corpo, da minha carne, do meu sangue, ….”

“Que pena não terem conseguido tudo, mas mesmo tudo de mim, para não mais os poder maldizer e amaldiçoar, como desde então o tenho feito, e o faço aqui e agora.”

“Era precisamente ali, dentro daqueles muros de três e quatro metros de altura, que o poder político nos escondia miseravelmente de tudo e da sociedade, totalmente alheia e indiferente à miséria humana, por todos nós, ali vivida! …”

“Era precisamente para ali que vinham em lindas caixas de madeira transportadas em cada regresso dos barcos os pobres soldados. Era dali que durante a calada da noite saíam, para os cemitérios de Portugal, os restos mortais daqueles que os deuses nos jogos da sorte e do azar condenara".

Dão-nos também outras vivências e emoções do dia-a-dia por que passa ou constata, salientando as que o exotismo africano lhe dá – populações, hábitos e costumes .
Mostram-nos a sua veia poética, com poesias a propósito e plenas de sentido, como a que explicita as consequências dos momentos de desprendimento onde a força das pulsões da natureza, num meio cheio de ambiência e receptividade para a sua libertação se concretizam, num dramático e actual poema - Criados à Margem.

Sementes do tuga
Foram tantos em amor escondidos
Lisonjeiros amores de soldado
De amores em pecados dormidos
Por filhos do vento hoje tratados
Entregues a si e abandonados
Órfãos de pai sem o amor merecido

E ainda nos dizem como atingiu a plenitude serena com a vitória sobre “os deuses e demónios” que o queriam aniquilar, ao renascer das cinzas que sobraram para uma nova vida.

“Esta viagem terminou na estação de Santa Apolónia, fisicamente, há quarenta e três anos. Porém, esta viagem, para mim, nunca terminará. Vai continuar, não tem fim! Apenas e só na última estação, no fim da linha, quando este comboio fantasmagórico, já velho, com todas as carruagens repletas de recordações e nostalgia percorrer toda a linha, com seu maquinista já vencido pelo cansaço, se deixar tombar com a mente adormecida num sono profundo”

Assim será com todos os ex-combatentes, “maquinistas” de ”comboios fantasmagóricos”, ou como disse o psiquiatra Afonso de Albuquerque: “Estes rapazes continuam na guerra”

Amaral Bernardo
(Ex-Alf.Mil Médico)
Porto 27 Julho de 2014
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de Novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16691: Agenda cultural (506): SIC: Programa Perdidos e Achados, em 29 de outubro passado: onde estavam os repórteres da guerra colonial, onde estavam os nossos fotocines?

Guiné 63/74 - P16693: Carta aberta a... (14): ...ao Comandante Supremo das Forças Armadas Portuguesas, Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil da CCAV 703 / BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66)

Portugal > Presidência da República > Havana, 26/10/2016 > O Presidente da República encontrou-se com Fidel Castro

O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa reuniu-se, em Havana, com o antigo Presidente cubano, Fidel Castro, um encontro que durou cerca de uma hora.

Foto (e legenda): Presidência da República (com a devida vénia)


1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, BissauCufar e Buruntuma, 1964/66) com data de 5 de Novembro de 2016, trazendo, para publicar, uma carta aberta ao Comandante Supremo das Forças Armadas Portuguesas, Presidente da Rerpública Marcelo Rebelo de Sousa.

[ Foto à direita: Manuel Luís Lomba, residente em Barcelos,  autor do livro "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu".  Barcelos: Terras de Faria, 2012, 340 pp. (Email: terrafaria@iol.pt)].


CARTA ABERTA - 14

Espécie de carta aberta ao nosso compatriota Marcelo Rebelo de Sousa:

Excelência:

Como Presidente da República e Comandante Supremo das FA Portuguesas, prescindiu do meu respeito!

Como é de boa prática, faço uma declaração de interesses. Não votei no jurista e mediático comentador Marcelo, por o considerar uma flor da estufa social de Lisboa-Cascais; votei no engenheiro e trabalhador Henrique Neto, por o considerar uma espécie de esteva no resto da paisagem.

A minha geração deu em escrutinar o currículo militar aos “valores emergentes” do 25 de Abril. Em 1974, Marcelo, filho de ministro, tinha 26 anos e sem assentar praça, quando o povo comum se tornava magala aos 21 anos! Terá sido um dos honrosos refractários de facto, mas não de direito, obviamente…

A curiosidade pela vida militar dos que se promovem ou são promovidos ao topo político não revela tendência militarista. O nosso orgulho de ex-combatentes não é de actores nos palcos da Guerra do Ultramar, mas de camaradas de D. Afonso Henriques, o primeiro soldado de Portugal, 800 anos depois de ele ter fundado a nacionalidade portuguesa e dado à luz a nossa independência política. E sem inibições em manifestar o nosso respeito aos que, movidos por idêntica aspiração, nos deram combate nessa guerra.

Como Presidente da República de plena legitimidade, como o meu ADN é lusitano passei a dedicar o devido respeito e a tributar a minha lealdade a S. Ex.ª, com unhas (os dentes já não são capazes). A romagem de S. Ex.ª a Fátima e a Roma poderá entender-se um acto positivo. É que enquanto Portugal e os Portugueses dedicaram os seus afectos e devoção a Nossa Senhora, de Oliveira, da Conceição ou de Fátima, tornou-se independente, construiu-se, expandiu-se ao Mundo – e foi Império durante 500 anos! Decretada a sua orfandade, os “portuguesinhos” venderam o país e a sua alma, Portugal perdeu tudo – sobretudo a vergonha! – para se tornar um protectorado da União Europeia, dependente e venerador da Troika e da Senhora Merkl…

Que S. Ex.ª vá a Cuba em visita de Estado, são atribuições do seu cargo, e compreensíveis são os sorrisos amistosos e os cumprimentos mediáticos que dispensou ao seu chefe, por maior tratante que tenha sido para com os Portugueses e continue a ser para os cubanos. Ossos do ofício. Mas que vá prestar menagem e veneração ao fossilizado Fidel Castro – e espere um dia para ser recebido por ele – é inadmissível! Porquê? O Presidente da República de Portugal tem obrigação de saber, o dever de sentir e de ter a coragem moral de tomar as dores das ofensas militares ao seu país!

“Quem não se sente, não é filho de boa gente” – sabedoria popular portuguesa.

Reconhecidamente paciente desse complexo de superioridade de revolucionário, o cubano Fidel Castro tornou-se agente da morte, sofrimento e privações do povo cubano, impondo-lhe o culto da sua personalidade e a ditadura ideológica e social, feroz e oligárquica, que o oprime há quase 60 anos! E a estruturação do seu pensamento revolucionário começara por colocar a Humanidade à beira do apocalipse nuclear USA-URSS e a passar 14 anos a matar Portugueses, pelas ofensas militares ao nosso país, por assuntos que não lhe diziam respeito.

No tempo em que andei em perigos e guerras esforçados ao longo da fronteira Leste e Sul da Guiné, com os corajosos e eficientes guerrilheiros do PAIGC, como o seu chefe Amílcar Cabral apregoava já controlar dois terços do território, Fidel Castro tentou convencer o presidente da República da Guiné a ceder o seu país como plataforma da invasão pelo exército cubano. Sekou Touré era verdadeiro inimigo de Portugal, mas ditou:
- Como o Cabral já controla dois terços do território, tens muito por onde lançar a invasão, entre o Geba e o Cacheu…

Enquanto os outros patrocinadores, desde a Europa do Norte, passando pela URSS e satélites, à China e aos Estados Unidos, cooperavam com a guerrilha, mas não autorizavam os seus nacionais a pisar território português, Fidel Castro enviava oficiais e especialistas do exército regular de Cuba, para planear e supervisionar as operações para matar soldados portugueses nas fronteiras da Guiné.

Excelência:

Para atalhar o tema, atente em dois factos, anda bem frescos na memória de milhões de Portugueses e que ainda amarguram os corações de centenas de milhares, imputáveis ao “el comandante en jefe” cubano da sua devoção.

Os ataques massivos contra as tabancas fronteiriças de Guileje, Gadamael, Guidaje, Canquelifá, etc, planeados, supervisionados e desencadeados por elementos do exército regular de Cuba, durante o primeiro semestre de 1973, provocaram cerca de 2000 vítimas portuguesas, entre os nativos residentes e os nativos atacantes, incluindo cerca de 200 soldados portugueses metropolitanos.

É ao exército cubano que os Portugueses e os Angolanos devem, infelizmente com a cumplicidade do MFA português, a materialização da inveja e da sanha internacionalista, que visava a desconstrução da realidade física e social, atingida pelo Estado de Angola, como subempreiteiro por conta dos interesses dos imperialismos – Rússia, Estados Unidos e China. Nos 13 anos da guerra sustentada por Portugal, o progresso económico e social de Angola foi exponencial; nos 16 anos da guerra alimentada pelos cubanos, a destruição económica e o retrocesso civilizacional de Angola bateram no fundo.

E lembramos a sua responsabilidade na desnatação dos quadros, que alavancavam o progresso angolano e das suas vidas - os 800 000 refugiados, que Portugal recebeu sob o eufemismo de “retornados” – como vítimas do maior roubo da História, apenas superado pelo confisco nazi aos Judeus.

Excelência: É devoto de Fidel Castro? Aquela rapaziada do Governo que foi ver os jogos do Campeonato da Europa à borla, também era devota – e da Selecção Nacional! E já fez a sua autocrítica.

Faça como eles…
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16310: Carta aberta a... (13): ...ao Senhor Presidente da Republica Portuguesa e Comandante Supremo das Forças Armadas (José Martins, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 5)

Guiné 63/74 - P16692: Notas de leitura (899): “Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,
Na sequência das análises que se tem feito a um importante livro que é um homenagem a um grande investigador, Patrick Chabal, dois autores apreciam as instituições da sociedade rural e a sua proverbial estabilidade que agora estão em mudança graças a vários fatores: a arbitrariedade dos preços do caju, a crescente procura de trabalho no exterior, a ameaça de segurança alimentar (entenda-se o risco e não haver comida para todos, até agora tem havido, a ameaça permanente é a subnutrição).
Outros dois autores dão-nos um quadro bem curioso do pluralismo religioso e da convivência interétnica, que permite a previsão de que não há condições para a presença avassaladora do terrorismo e fundamentalismo islâmico.
Por último, outro autor aborda a descriminação de género, um dos aspetos mais grotescos do incumprimento das promessas de Amílcar Cabral, isto quando a mulher combateu ao lado do homem, destemidamente, na luta de libertação.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: de Micro-Estado a Narco-Estado (3)

Beja Santos

“Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016, é constituído por um acervo de estudos dedicados à memória de Patrick Chabal, falecido em Janeiro de 2014, e que idealizou até ao fim dos seus dias a organização desta obra com Toby Green. Obra constituída por três partes (fragilidades históricas; manifestações da crise e consequências políticas da crise) convocou nomes importantes da historiografia da Guiné-Bissau no plano internacional como Toby Green, Joshua B. Forrest, Philip J. Havik, entre outros.

A introdução e a primeira parte, dedicada às fragilidades históricas, motivaram os dois primeiros textos. Iniciamos hoje a segunda parte, centrada nas manifestações de crise. Marina Parão Temudo e Manuel Bivar Abrantes retomam a questão da estabilidade social e do modo de viver rural. Tenha-se em conta o que outros autores já referiram: o caráter suave do Estado da Guiné-Bissau, a sua ineficácia no processo de elaboração de políticas, o seu gradual desfasamento fazer chegar as instâncias do PAIGC à sociedade rural, aos poucos a participação política foi-se restringindo; foram exíguos os investimentos na agricultura, soçobraram as medidas de nacionalização do import/export e a nacionalização das terras não passou de uma utopia. Para estes dois autores as sociedades rurais guineenses foram resilientes, fizeram frente aos desaires do Estado, resistiram às suas prepotências e irresponsabilidades com a política agrícola. Mas o conflito político-militar de 1998-1999 apanhou as sociedades rurais já na monocultura do caju, as deslocações maciças de população desestabilizaram as formas de viver, uma coisa é a pobreza com alimentação e mesmo focos de subnutrição, outra coisa é subitamente as tabancas do interior serem confrontadas com insegurança alimentar. Até recentemente, estes pequenos agricultores e os ponteiros conseguiam uma harmonia precária entre a comida de subsistência e a produção de troca e a exportação, nomeadamente o caju. Está devidamente estudado que a intervenção colonial não desarticulou, dentro de certos limites, este precário equilíbrio nas sociedades rurais. O amendoim foi o produto de exportação por excelência entre 1846 e 1974. Houve igualmente exportação de arroz para a Europa, que se iniciou na década de 1930, a guerra de libertação inverteu esta tendência. Distinguem-se fundamentalmente os modos de sobrevivência alimentar dos povos animistas (com os Balantas e os Manjacos à cabeça) dos muçulmanos. Seja como for, é na diversidade étnica que se encontram formas complementares destes sistemas de modo de vida que integram cereais, coconote, óleo de palma, arroz, com uma correspondente economia de troca, onde pode entrar carne, pescas, frutos e outros produtos. A guerra de 1998 levou a que mais de 200 mil guineenses urbanos tenham procurado refúgio nos campos, houve que encontrar acolhimento e amortecimento ao choque de providenciar comida em tão grandes quantidades aos refugiados. Os autores abordam o fenómeno das pontas exploradas ao tempo em que houve financiamentos durante o processo de ajustamento estrutural, agravou as desigualdades sociais e criou uma nova elite política e financeira que, de um modo geral não pagou ao Estado os créditos concedidos pelas linhas generosas desse dinheiro vindo do exterior. Os autores fazem uma análise demorada das mudanças sociais que se estão a operar na vida comunitária cuja evidência é a explosão migratória, a perda da autoridade dos mais velhos e o crescente número de casamentos interétnicos. A monocultura do caju está a revelar-se um desastre, os agricultores estão cada vez mais dependentes de compradores que jogam com as baixas cotações do mercado internacional, a Índia está a tornar-se um feroz competidor e o mercado dos cereais é cada vez mais instável. As mudanças em curso estão a reduzir a solidariedade nas comunidades rurais.

Bem curioso é o artigo de Ramon Sarró e de Miguel de Barros sobre a convivência entre credos religiosos, entre crentes monoteístas e animistas. É crescente a presença da religião na esfera pública e o pluralismo de opiniões é uma moeda corrente. Os autores dão como exemplo a povoação de Enxalé onde há 8 diferentes línguas, uma mesquita, uma igreja católica, um templo protestante, neopentecostais e balobeiras, membros do movimento profético Kyang-yang, onde se misturam elementos simbólicos do Islão, da cristandade e da religião Balanta. Eles analisam historicamente o mapa religioso da Guiné-Bissau a partir das etnias, das práticas religiosas, para concluir que até ao presente têm funcionado com sucesso todos os processos de mediação entre convicções religiosas, acentuando que em pleno conflito político militar todos os atores se reuniram fazendo um apelo à paz.

O último artigo é da responsabilidade de Aliou Ly que analisa as relações de género na Guiné-Bissau destacando que todas as promessas de Cabral no campo da promoção da mulher têm sido ignoradas pelos sucessivos poderes, ao longo de 40 anos. A mulher continua marginalizada do sistema político, o seu contributo nas estruturas sociais e económicas está praticamente limitado ao trabalho braçal e a obedecer sem reticências ao homem, estão sub-representadas no sistema educativo, administrativo e nas instituições políticas de todo o tipo. Estuda o impacto da marginalização da mulher na Guiné pós-independente, a despeito de muitas licenciadas que se impõem no mundo dos negócios. As leis contra a discriminação de género não são respeitadas, é notória a resistência masculina como se mantêm inúmeras desigualdades de classe e étnicas que agravam a condição da mulher. Nos primeiros anos da independência ainda se falava nas heroínas como Titina Sila, referindo-se sempre com respeito mulheres como Francisca Pereira ou Carmen Pereira. O autor atribui responsabilidades a este fenómeno discriminatório logo à governação de Luís Cabral, teria começado aqui o círculo vicioso da desigualdade de género e da imposição da ordem masculina. Os homens emigram para os países limítrofes, as mulheres ficam com cada vez mais trabalho na tabanca e na vida familiar. O paradoxo de tudo é que Amílcar Cabral tinha prometido que se construiria um país com igualdade e melhor vida para todos.

O próximo e último artigo centra-se na diáspora guineense depois de 1998, as consequências políticas da crise e o aparecimento do Narco-Estado e Toby Green apresenta as suas conclusões.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16681: Notas de leitura (898): “Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P16691: Agenda cultural (512): SIC: Programa Perdidos e Achados, em 29 de outubro passado: onde estavam os repórteres da guerra colonial, onde estavam os nossos fotocines?


Fotograma do vídeo "Os repórteres da guerra colonial", que passou no passado dia 29 de outubro na SIC, no programa "Perdidos e Achados". (Reproduzido com a devida vénia.)


1. No passado 29 de outubro passou na SIC o programa "Perdidos e Achados", para a produção do qual o nosso blogue também deu alguns contributos (*)

SIC | Programa Perdidos e Achados > "Os Repórteres da Guerra Colonial"

29.10.2016 | 22h19


Vídeo 16' 53'', aqui disponível

Sinopse

O Perdidos e Achados dão a conhecer os jornalistas e militares que relataram e retrataram a guerra colonial. Deixaram fotografias, filmes e crónicas, que ajudam hoje a compreender o que se passou em Angola, Moçambique e na Guiné entre 1961 e 1974. Reencontrámos quem esteve na guerra para contar o que via, e questionar o que se passava, mesmo que muitas das notícias fossem sujeitas à censura do regime.

Como aconteceu com as peças que Fernando Correia enviava a partir de Angola. Aquele que hoje é um reconhecido jornalista desportivo, chegou a ser repórter de guerra, mas mudou de área jornalística para não pactuar com a mentira.

Fomos também ao encontro daqueles que filmavam as tradicionais mensagens de Natal dos soldados e encontrámos o repórter de guerra que esteve durante 13 anos, tantos quanto durou  o conflito.


2. Comentários dos nossos camaradas Alcídio Marinho e José Colaço (*)

(i) Alcídio Marinho

Quando a nossa Companhia  foi formada, 24 de setembro de 1962 (em Chaves),  foi chamada de Companhia de Caçadores Independente nº 412, aliás como a 411 e  mais outras três Companhias, pela simples razão de que tinham pessoal de  todas as especialidades; carpinteiros, pedreiros, alfaiate, cozinheiros, etc., e até fotocine. 

Era o 1.º Cabo Fotocine, Virgílio Albino Casaca Barradas, natural de Lisboa, que tinha a especialidade de fotocine, mas material foto e cine, só o que era dele, pois na vida civil era fotógrafo. Na Guiné serviu apenas como  atirador como os outros. Infelizmente ele já faleceu há alguns anos com um tumor no pâncreas. Mas a curiosidade maior é a sua viúva (D. Antónia) e suas  filhas, genros e netos que continuam a honrar-nos, todos os anos, com a sua  presença nos nossos almoços comemorativos.


(ii) José Colaço

Também a CCAÇ 557 tinha um 1.º Cabo Fotocine que apareceu lá no Cachil passados aí uns 3 meses,  já depois de concluída a Operação Tridente, mas de material para exercer a especialidade nada e durante a comissão também não o recebeu, ainda hoje me interrogo para que servia aquela especialidade sem material para exercer "publicidade enganosa".

Mas, como eu tinha uma máquina fotográfica, fomos grandes amigos até conseguimos fazer um pequeno estúdio de revelação dentro do posto rádio onde eu, por inerência da especialidade, cumpria 12 horas seguidas de serviço.

O capitão, como ele não era atirador,  também não o escalava nas saídas para o mato.
Não veio connosco, ficou a trabalhar na Foto Serra, em Bissau, e por lá faleceu ainda novo, mais ou menos entre os 50 e 60 anos de idade.  


 (iii) Editor LG:

Fomos nós que chamámos a atenção da produtora Madalena Perdigão para o nosso poste P7734, de  6 de fevereiro de 2011 (**).

E mais uma vez lá passaram pelos nossos ecrãs as imagens da equipa da ORTF, a televisão francesa, que filmou as cenas dramáticas, já no final,  da Op Ostra Amarga... Infelizmente, não havia lá nenhum fotocine português... E, o que é mais revoltante, é sabermos hoje, pela boca de antigo fotocine Joaquim Pessoa, que se encenavam operações, se não erro, na ilha de Bubaque, no arquipélago de Bijagós, para "mostrar" ao Zé Povinho, na RTP, o único canal de televisão que tínhamos, como é que os bravos soldados portugueses faziam a guerra na portuguesíssima Guiné...

O que é que os pobres fotocines podiam fazer, senão alinhar na farsa, amouchar como nós amouchávamos quando apanhávamos uma emboscada, um sinal de resto que só revelava inteligência emocional, serenidade, realismo, bom senso... e bravura! (***),

Obrigado ao Alcídio Marinho e ao José Colaço pelas preciosas informações sobre os camaradas fotocines das suas companhias...  No meu tempo (1969/71), não tenham ideia de haver fotocines nas CCS dos batalhões. Aliás, pode-se confirmar pela composição orgânica dos batalhões. Já existiriam então os Destacamentos de Fotografia e Cinema (DFC), dependentes do QG, suponho.

Em 2008 foi criado um blogue, de vida efémera, chamado “Fotocines”, por alguém que esteve, em Luanda, no Destacamento de Fotografia e Cinema (DFC) nº 3011 (1972/74)… Até à data publicaram-se 3 postes… Tratava-se de um “espaço criado para reunir todos os Foto-Cines que prestaram serviço militar obrigatório no Exército Português, tendo sido distribuídos na altura por Destacamentos Foto-Cines em Angola, Guiné e Moçambique, para além dos premiados que conseguiram passar toda a sua comissão de serviço nos SCE-Serviços Cartográficos do Exército que agregava toda a comunidade Fotocine debaixo da égide do saudoso major Baptista Rosa [Niza, 1925- Lisboa, 1982], e por onde passaram parte dos expoentes do cinema feito em Portugal.”
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de setembro de 2016 Guiné 63/74 - P16542: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (38): Ajuda para reportagem da SIC, antigos militares fotocines que tenham gravado as mensagens de Natal da RTP... precisam-se! (Madalena Durão, produtora)

(**) Vd. postes de

8 de novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2250: Vídeos da guerra (3): Bastidores da Op Ostra Amarga ou Op Paris Match (Bula, 18Out1969) (Virgínio Briote / Luís Graça)


10 de dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7415: (Ex)citações (118): A propósito do vídeo da ORTF sobre a Op Ostra Amarga: "As imagens que vi, foram uma espécie de murro no estômago e cimentaram a admiração que nutro por todos aqueles que sentiram o silêncio bem no meio do capim" (Miguel Sentieiro)



domingo, 6 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16690: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (19): Quando homens e armas estavam "à carga", sendo necessário levantar um auto, no caso de desaparecerem... A história do condutor auto, do EREC 2350, que não voltou de férias em 1969... (Fernando Gouveia, ex-alf mil, Rec e Inf, Cmd Agr 2957 Bafatá, 1968/70)



Guiné > Zona Leste > Bafatá > Esquadrão de Reconhecimento 2640 (1969/71) > Uma autometralhadora Fox, em reparação na oficina do Esquadrão... Este tipo de viaturas blindadas adaptava-se mal às difíceis condições do terreno na Guiné... Não me lembro de ter visto muitas a andar pelos seus próprios meios nos sítios por onde andei... Imagino a trabalheira que terá sido trazê-las até aqui. Na  foto, o 1º cabo Mauel Mata


Guiné > Zona Leste > Bafatá > Esquadrão de Reconhecimento 2640 (1969/71)  >  Na foto, o nosso camarada Manuel Mata de pé, em cima de uma viatura autometralhadora Daimler. Ao fundo, o famoso cartaz, visível dos ares: "Aqui mora a cavalaria!"...


Lisboa > O N/M Uíge, que transportou o Esq Rec Fox 2640, mais o Pel Rec Fox 2175 até Bissau, em 15 de novembro de 1969. Mas nem todos compareceram: um oficial desertou... O EREC 2640 foi render o EREC 2350. em Bafatá.

Fotos (e legendas): © Manuel Mata (2006). Todos ops direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue ;Luís Greaça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Fernando Gouveia, com data de 5 do corrente:


[Foto à esquerda, Fernando Gouveia foi alf mil rec e inf, Cmd Agr 2957 Bafatá, 1968/70: é arquiteto da CM Porto, reformado; e membro da nossa Tabanca Grande desde 9/4/2009]

Carlos:

Os dois casos de desertores que considerei no inquérito não sei muito bem se realmente o são ou não, face ao que tem sido dito e repetido no blogue.

Se consideras que realmente o são, talvez seja assunto interessante para "alimentar o voraz blogue".

O primeiro caso é o descrito no poste P4637 (*), sobre um elemento pertencente ao EREC 2350, ao nosso lado em Bafatá, que,  vindo de férias,  não mais voltou. Como digo nesse texto,  talvez a sua decisão tivesse a ver com a morte de dois camaradas, calcinados, dentro de uma FOX, uns tempos antes, lá para os lados de Piche.

O outro caso, referido no meu livro "Na Kontra Ka Kontra", a páginas 139,  foi-me contado, como autêntico, pelo próprio, de que não sei o nome, durante um almoço na "Tabanca dos Melros".

Ficará ao teu critério fazer um poste com essa matéria, e da forma que entenderes.

Um grande abraço,
Fernando Gouveia


Cortesia de Carlos Coutinho
2. Quando homens e armas estavam "à carga", sendo necessário  levantar um auto, no caso de desaparecerem... A história condutor auto do Erec 2350, que não  voltou de férias... 

por Fernando Gouveia

Hoje em dia, nos escritórios, quer do Estado, quer privados, é comum ver aquelas etiquetas autocolantes com código de barras, colocadas em todo o mobiliário e objectos de trabalho, a querer dizer que têm dono, que estão "à carga".

Há quarenta anos ainda não era assim nas empresas ou nas repartições públicas, mas na tropa já se processava esse zelo, como todos muito bem sabem. Tudo estava "à carga".

Vou contar, de forma simples, o que aconteceu, com o material "à carga" no Esquadrão de Rec Fox 2350 (Bafatá, 1967/69),  instalado ao lado do Comando de Agrupamento de Bafatá [, nº 2957, Bafatá, 1968/70], em 1969.

Os três alferes (às vezes 4 ou 5) do Agrupamento iam comer ao Esquadrão, daí que eu tenha assistido a todas as fases desta estória caricata.

Em determinada altura um condutor duma autometralhadora Fox veio de férias à Metrópole e não voltou, desertou. (Não me lembro se já tinha acontecido aquela emboscada em que um rocket IN perfurou a blindagem duma Fox e carbonizou os seus dois ocupantes.)

Correu o respectivo auto de deserção. Já depois do auto concluído, alguém se lembrou que esse condutor tinha uma pistola distribuída. Todos os responsáveis directos entraram em pânico. Havia que resolver a situação.

Os alferes do Esquadrão, Rodrigues, Sena, Grosso e Amaral,  depois de discutirem vários dias como resolver esse berbicacho decidiram que se daria baixa da pistola no próximo ataque IN a Piche ("Dien Bien Piche",  como também era conhecido dada a quantidade de ataques lá verificada, e por similitude com Dien Bien Phu, no Vietname), onde tinham um destacamento.

Ao fim de pouco tempo o ataque deu-se e,  para os nossos cavaleiros,  o assunto parecia ter sido resolvido em beleza.

Puro engano, alguém descobriu que o desertor possuía um armário fechado e, lá dentro, entre outros pertences, que aliás também deveriam ter sido discriminados no auto, estava, a agora, famigerada pistola.

Muito nos divertimos, os alferes do Agrupamento, com esta última situação criada. Era ver os alferes do Esquadrão a não quererem, cada um, nas suas mãos a dita pistola. Parecia que queimava.

Passados quarenta anos, não recordo como resolveram este último problema, mas das duas uma, ou alguém se presenteou com uma pistola que já não estava "à carga",  ou então tiveram que esperar por um novo ataque a Piche e fazer um novo auto do achamento de uma pistola. (**)
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Guiné 63/74 - P16689: Blogpoesia (479): "Quero lá saber..."; "Minhas trouxas..." e "Melodia dum piano e duma orquestra...", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. O nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) vai-nos enviando ao longo da semana belíssimos poemas da sua autoria, dos quais publicamos estes, ao acaso, com prazer:


Quero lá saber…

Se chove ou neva, quero lá saber.
O que importa é viver.
Ser-se feliz… o mais que se puder.

Uma hora triste
É nuvem que passa.
Depois virá a alegria
Ao nascer do sol.

Vejam as flores
Como são alegres.
Vivem do perfume
Que nos inebria
E lhes aviva as cores.

Ouve o passarinho
Como canta belo,
Mesmo na gaiola.
Como é bom viver.

Como é linda e fresca
Aquela cascata de água
A jorrar da serra.

E a seara verde a bailar ao vento
A crescer ao sol.
Esperando o oiro loiro
Que a há-de adornar….

Quero lá saber se lá fora chove.

Ouvindo Susan Boyle

Berlim, 2 de Novembro de 2016
JLMG

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Minhas trouxas…

Empilhei as minhas trouxas e parti ao mundo.
Não quero ficar no mesmo sítio onde nasci.
Quero abrangê-lo.
Outras gentes. Outras culturas.
Além das serras, além dos mares.

O espaço donde vem o sol.
E aquele onde se põe.

Ver as cores da Natureza,
Conforme as terras
E os seus odores.
Contemplar flores 
E as cores que têm.

Os frutos e seus sabores.

O falar das gentes, na própria fonte.

Ver os rastos dos tempos passados.
Por esse mundo.

Sentir a experiência única
De me ver de longe.

Regressar cansado,
Mas enriquecido,
Ao meu tugúrio.

Só assim, eu serei feliz…

Berlim, 4 de Novembro de 2016
10h21m
JLMG

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Melodia dum piano e duma orquestra...

Deixo-me embalar pela doce melodia do concerto.
Oiço um piano que me encanta.
Abstraio das agruras deste mundo.

Chego aos cumes da divindade.
Minha alma plana leve
Sobre a brisa verde da primavera.

Escorrem as vertentes em torrentes 
Abundantes.
Me inundam de alegria.

É a hora exacta em que me oiço e alcanço,
Aqui na terra,
A paz suave da eternidade...

ouvindo Beethoven com Hélène Grimaud e uma orquestra, concerto nº 4

Berlim, 5 de Novembro de 2016
9h38m
JLMG
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16670: Blogpoesia (478): Neste Dia de Finados - "Campo Santo", da autoria de Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1546

Guiné 63/74 - P16688: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XIV Parte: Cap VII: Guerra I: O PAIGC passa a alcunhar-nos de "Lassas" (as abelhas que só são agressivas, quando as chateiam)



Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) >  Os Lassas cambando um rio


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > Os Lassas na abertura da estrada Cufar-Cobumba.

Fotos (e legendas): © Mário Fitas   (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



[Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. Foto à abaixo à esquerda, março de 2016, Oitavos, Guincho, Cascais]




Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XIII Parte > Cap VII - Guerra 1:  Os "lassas", alcunha que lhes é dada pelo PAIGC... (pp. 46-48)

por Mário Vicente 

 Sinopse:


(i) Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8),

(ii) o "Vagabundo" faz o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra"):

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix)  início da atividdae, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta  CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN.



Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XIV Parte > VII - Guerra 1:   Os "lassas", alcunha que lhes é dada pelo PAIGC... (pp. 46-48)
  
 
Vagabundo estava extenuado, precisava beber qualquer coisa e dormir um pouco para atenuar o cansaço físico e psíquico em que se encontrava. Foi ao abrigo, deixou arma e cartucheiras e pegando num cobertor, rumou ao bar, bebeu uma garrafa de água e levou uma cerveja que foi bebendo até à parte nova do aquartelamento em construção. Esticou a manta no chão, debaixo de um cajueiro junto ao futuro abrigo da sua secção e quase de imediato adormeceu. Deve ter acontecido o mesmo com toda a gente porque duas horas e tal passadas quando acordou, o silêncio era total. Cufar parecia terra fantas­ma abandonada. Levantou-se e desceu até ao abrigo de novo, para aí deixar o cobertor. Encontrou o Orlando limpando a sua arma e a dele. Vagabundo ajudou um pouco na tarefa, mas a cabeça ainda continuava muito oca, pelo que disse ao soldado:
– Olha! Vou tomar um banho. Acaba com isso e vai até à messe para bebermos qualquer coisa!

Pegou na toalha e dirigiu-se para os chuveiros. Meteu-se vestido debaixo de água e assim foi retirando a lama que ainda enchia o camuflado. Lavou as botas de lona e só depois se despiu e tomou o seu duche quente. O calor fazia a água quase ferver, nos bidões dos chuveiros. Sim, porque esse luxo tinham aqueles desgraçados, água sempre quentinha. Calçou as botas mesmo molhadas, enrolou a toalha ao corpo e dirigiu-se para o abrigo onde vestiu uns cal­ções e uma camisa de caqui. Orlando esperava pelo furriel, os dois encaminharam-se para o improvisado bar. Quando subi­am os degraus da velha fábrica de descasque de arroz, ouviram um tiro mesmo nas suas costas. Viraram-se rapidamente, mas não viram ninguém. O tiro partira de certeza, do abrigo em frente! Correram para lá. A meio do caminho, surgiu do abrigo o Barreirense. Muito pálido, abrindo os braços qual Cristo crucifi­cado, começou a gritar:
– Estou morto! estou morto!
– É pá, o que é que foi que aconteceu?– perguntou-lhe Orlando.
– Estou morto! Estou morto!

Era única e simplesmente o que saía da sua boca. Pegaram nele, sentaram-no nos degraus e a malta começou a rodeá-lo querendo saber o que estava acontecendo, mas o amigo Barreirense, nada mais dizia para além de que estava morto. Vagabundo, mirando bem o lívido soldado, não vislumbrou qualquer sinal de feri­mento ou coisa parecida. O furriel pegou-lhe no braço, abanou-o com rigidez e gritou-lhe:
– Porra! Barreirense,  que merda é esta? Se nem ferido estás, como podes estar morto?! ..
Escorrendo suor por todos os poros, o soldado olhou para Vaga­bundo e, num sussurro, que foi aumentando, começou:
– Estou vivo? Eu estou vivo, meu furriel?
– Sim! Pelo menos respiras e falas. O que é que tens, homem?

Quase meia companhia rodeava já o soldado Barreirense. Entre­tanto já alguém tinha trazido um copo de água que Barreirense bebeu, babando-se todo. Após ingerir parte da água, virou-se novamente para o furriel, e então contou:
–Ai que eu ia-me matando, meu furriel!... Estava lim­pando a arma e quando fui mirar o cano, ainda não tinha acerta­do o olho, a G3 disparou sem eu saber como!

Teve sorte o Barreirense, pois limpar uma arma sem verificar primeiro se havia algum projéctil dentro da câmara, é noventa por cento de hipótese de acidente.

Agora já toda a gente ria, incluindo o próprio, com a sua figura de Cristo andante, gritando que estava morto.
–Vá, vamos lá beber uma cerveja à conta da tua morte! – disse o furriel puxan­do o soldado pelo braço.
– Meu furriel, eu não bebo cerveja que não gosto, mas bebo um copo de vinho, e eu é que pago já que estou vivo!
– Não, eu é que convidei – ripostou  Vagabundo.

Era interessante este rapaz, Barreirense de alcunha. Latoeiro de profissão, percorria todo o Alentejo arranjando alguidares, pa­nelas rotas, pondo pingos ou fundos. Por vezes lá falava das ter­ras do concelho de Elvas e costumava brincar com Vagabundo dizendo:
– O meu furriel é malandro, tem a escola toda, aprendeu na Colónia! ...

Mais tarde o Barreirense tomou-se o vaqueiro da companhia, cuidadoso lá seguia, G3 às costas com o seu gado para junto da lagoa, onde o pasto era farto.

À noite, já refeitos e já com etílicas vaporizações de whisky e cerveja, a malta festejou então a vitória em Cufar Nalu. Chico Zé, António Pedro, Jata, Vagabundo e o Artilheiro, um homem da guitarra, cantaram os seus fadinhos de Coimbra. Chico Zé adorava:
“Do Penedo até à Lapa
Foi Coimbra os meus amores.”


Conheciam-se-lhe alguns fados mas este de Coimbra, devia ser secreto. Enfim, todos teriam os seus e algum seria sempre secreto.
Em termos operacionais a CCAÇ  não parava: patrulha­mentos, golpes de mão, controle da população a sul... Ainda se saboreava a vitória de Cufar Nalu e já na semana seguinte se volta a desbravar caminho, ao colaborar na desobstrução da estrada de Bedanda, escoltando uma coluna auto para o efeito. Até às dez da manhã já se tinham retirado mais de trinta abatises, e tudo árvores de grande porte. Enquanto continua a desobstrução da estrada, agora a escolta é feita por outra compa­nhia, a Companhia recebe a missão de se deslocar para a região de Cabolol que deveria reconhecer. Foi aqui em Cabolol, conti­nuação do corredor de Guilege por onde o PAIGC fazia o seu abastecimento para o interior, que a CCAÇ. se comportou heroi­camente, mas também onde levou nos cornos até dizer chega. Se a oportunidade não nos faltar, havemos de contar algumas histórias tristes e outras alegres também, desta merda de Ca­bolol.

Seguindo a missão recebida, a CCAÇ. dirige-se para a tabanca de Cabolol Balanta, encontrando-a deserta. Como norma qualquer povoação que fosse encontrada deserta era destruída. Quando se procedia à destruição, a CCAÇ foi atacada, mas a pronta reacção e envolvimento da malta, moralmente bem e já com um entrosamento razoável, pôs o IN em fuga. 

Daqui rumou para Cabolol Lande onde, da mesma forma a povoação se encontrava deserta. Novamente atacados quando se efectuava o ritual da destruição, IN posto em fuga, Carlos cheirou-lhe a "bate e foge" para diversão, pelo que ordenou pela rádio para redobrada atenção, pois os grupos que nos perseguiam e chateavam podiam estar unicamente a fazer diversão. Atingiu no alvo. Quando preparávamos a retirada, da mata ao lado, foi do bom e do bonito: até armas pesadas e RPG2 metia. Lá se pediu o apoio da força Aérea e só depois da intervenção dos velhotes T6, é que se conseguiu calar a banda, contra atacar e desalojar o IN. A operação foi interrompida, dado o número de abatises ser enorme e a impossibilidade da desobstrução em tempo útil.

Por informações recebidas, a CCAÇ 763 será conhecida no PAIGC com a alcunha de “Lassas”. Pelo que se veio a saber, “lassa” será uma espécie de abelha existente na Guiné que,  não sendo molestada, não provoca problemas, mas se for atacada é terri­velmente perigosa,  ficando enraivecida. 

Esta alcunha resultaria, portanto, da actuação da Companhia, pois quando chegava a uma tabanca, em que a população estivesse e não fugisse, não haveria problemas, pois falava-se com essa gente e tentava-se resol­ver os problemas que houvesse. Se, caso contrário,  a população fugisse e abandonasse as suas moranças, as mesmas eram literal­mente destruídas. Pelo que ficou a partir deste momento a CCAÇ crismada como "Lassas".

Continua-se a patrulhar Cufar Nalu e agora Boche Mende também. Faz-se nomadização e temos informações que o IN está a obrigar as populações a dirigirem-se para a região de Cabolol, mais a norte. Solicita-se uma equipa administrativa de Catió para proceder ao recenseamento das tabancas controla­das. Este recenseamento é útil pois, através dele, conseguimos a identificação de alguns cooperantes e guerrilheiros pertencentes ao ex-bando de Cufar Nalu. É imperioso não largarmos este controlo, já que sabemos haver gente infiltrada na população. Em Iusse, o chefe de tabanca desaparece, fuga ou rapto? Na mesma tabanca Suza na Mone, dado como desertor do PAIGC, é abatido ao fugir à aproximação de um grupo de combate que fazia a tentativa da sua recuperação. Num golpe de mão a Fantone, é feita prisioneira Dite na Baque, a mulher chefe do Partido. O PAIGC sabe que não facilitamos e isso é muito importante.

Nesta altura o moral é de tal ordem que nos deslocamos às tabancas controladas de jeep com apenas dois ou três ele­mentos e vamos a Catió sem descer das viaturas e sem seguran­ça. É necessário todavia, não entrar em euforia, a guerrilha não é para brincar e deve ter-se mais cuidado para não haver surpre­sas.

(Continua)
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Nota do editor:

Últimos postes da série > 22 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16512: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XIII Parte: Cap VII: Guerra I: 15 de maio de 1965, op Razia: a mata de Cufar Nalu agora é nossa!... Viva a merda da guerra!...

Guiné 63/74 - P16687: Parabéns a você (1157): Jorge Cabral, ex-Alf Mil Art, CMDT do Pel Caç Nat 63 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16676: Parabéns a você (1156): António Martins de Matos, Tenente-General PilAv Ref, ex-Tenente PilAv da BA 12 (Guiné, 1972/74)

sábado, 5 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16686: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (18): Mais um caso "atípico", o de David [Ferreira de Jesus] Costa, ex-sold at art, CART 1660, Mansoa, 1967/68 (Virgínio Briote)


Capa do livro Desertor ou patriota : a extraordinária aventura de um soldado raso / David Costa. - 1ª ed. - Vila Nova de Gaia : Ausência, 2004. - 157, [2] p. : il. ; 21 cm. - (Passado recente ; 3). - ISBN 989-553-078-1 [Preço, 12 €]


1. É uma história do "arco da velha", rocambolesca, trágico-cómica, absurda, kafkiana, impiedosa... de um homem, um camarada nosso, que bebeu o cálice da amargura, na sequência de uma leviandade que lhe custou a liberdade, a honra e anos de vida.... Que lhe poderia ter custado, inclusive, a vida!


Desertor, sim, técnica e juridicamente falando... Mais um desertor "atípico", usado e abusado pelo PAIGC [e aqui, o português e médico, Mário Pádua, também não fica bem, na fotografia... ou será que na guerra revolucionária vale tudo ?!... O PAIGC tem obviamente todo o interesse em instrumentalizar, politizar, aproveitar, para efeitos de propaganda, a "infeliz" deserção do David Gomes...

Em boa verdade,  o pobre do David Costa desertou e não desertou... Foi apanhado pelo PAIGC fora do seu aquartelamento, por estar desorientado, emcionalnamente perturbado, à beira do "burnout", da exaustão física e emocional...  Não se entregou ao PAIGC, fez o "número" que lhe convinha quando foi feito prisioneiro... E manteve esse "número" por uns tempos. Passou a ser considerado, lisongeado, ganhou inclusive a liberdade... E aqui brincou com o fogo, mais uma vez...

A "carta à mulher"  que é dura de roer... Será possível que um homem, com a craveira intelectual, humana e profissional, do dr. Mário Pádua, lhe tenha feito "essa maldade" ? Um guineense ou um caboverdiano do PAIGC podia fazê-lo... Mas um português sabia que o David tão cedo não poderia juntar-se livremente à mulher e aos filhos... O David, meu caro dr. Mário Pádua,  não era um intelectual, um antifascista, um homem politizado, informado, consciente!... Era, tão apenas, na época, um pobre diabo de um soldado raso... [, Enfim, não sei se esta história está mal contada,  ou mesmo se a  versão dos acontecimentos não pode estar  enviesada pela distância temporal: o livro é publiavdo em 2004, quase 40 anos depois dos factos ocorridos]...

É uma história ao mesmo tempo exemplar... que merece ser revista, revisitada, relida, meditada... O David Costa, David Ferreira de Jesus Costa, de seu nome completo, ex-sold at art, CART 1660 (Mansoa, 1967/68), redime-se, do seu passado de "déserteur malgré-lui" [, desertor, por mero acaso, ou à força],  escrevendo um livro de memórias, que já foi aqui objeto de recensão crítica, primeiro pelo  por Virgínio Briote (*) e, mais tarde,  por Mário Beja Santos (**).

Por ser a primeira,  e a mais antiga, vamos reproduzir aqui a "nota de leitura" que o o nosso querido editor, hoje jubilado , V. Briote, escreveu em 2008, acrescido de alguns comentários de um camarada do David Costa, o ex-1º cabo Jorge Lobo, feitos na altura ou em 2010, no poste do Beja Santos (**).



Desertor ou Patriota, de David Costa: da brincadeira ao pesadelo... 

por Virgínio  Briote



A extraordinária aventura de um soldado raso


David Costa nasceu na freguesia de Fânzeres, concelho de Gondomar, a 12 de dezembro de 1945. Incorporado em julho de 1966, casado à pressa para ver se se livrava da mobilização, nem com um filho recém-nascido e outro a caminho escapou. Como ele diz a certa altura, só os cegos e os paralíticos podiam ter alguma esperança.

Tudo começou em Fevereiro de 1967. No cais da Rocha Conde de Óbidos ouviu a prelecção habitual:
– Soldados de Portugal! É grande a vossa honra, pois a Pátria chama-vos a defender aquelas terras tão orgulhosamente portuguesas.

Embarcou no Uíge num daqueles dias frios para cinco dias depois respirar o ar quente de Bissau. Nem deu tempo para dar uma volta pela cidade. Encaixotados nas viaturas, lá rumaram, ele e os camaradas, a caminho de Mansoa.

Um tipo cheio de sorte. Ainda em Lisboa deram-lhe a notícia:
– O teu serviço vai ser trabalhar na secretaria, incorporado na CART 1660.

Em Mansoa encontrou-se com os velhinhos do BCAÇ 1912, que não deixaram passar a oportunidade de praxar a periquitada:
– A vossa chegada não tarda vai ser condignamente festejada...Não vai faltar molho! – E, de facto, assim aconteceu.

Numa daquelas noites, a gozar o cinema ao ar livre, aí vai aço, tugas de um raio! “Corríamos inseguros à procura de qualquer coisa que nos abrigasse”, remata o infeliz amanuense condutor que, afinal, estava a ver que também sobrava alguma coisa para ele.


Uma brincadeira de mau gosto, que lhe saiu cara


Mas nessa noite como em outras que se seguiram estava longe de adivinhar o que, dezenas de anos depois, chamou “a extraordinária aventura que eu vivi”. Foi no fatídico dia 17 de maio de 1967 que começou a odisseia do David. Brincalhão, cheio de arte e manha, era o encarregado do transporte do correio, o que o levava a Bissau sempre que havia avião.

“Tudo não passou de uma simples brincadeira com uma carta mal fechada, da qual caíra uma foto de uma linda rapariga. Com essa fotografia, destinada ao Floriano, resolvi fazer umas graças, exibindo-a como troféu de grande conquistador que eu era. Brincadeira de mau gosto, certamente, imperdoável também, com certeza, mas que me saiu tão cara!...”

Condenado pelos camaradas que lhe viraram as costas, resolveu ir dar uma volta pela povoação. Foi andando, diz ele, a matutar, acabrunhado, andando até dar por ela que era noite e já estava fora de Mansoa e sem sequer vislumbrar qualquer referência. Em pânico, desorientado, meteu-se pelo mato, andou para trás e para a frente e para os lados possivelmente, até que pela madrugada viu um holofote a girar. Era um destacamento das NT que ele não fazia ideia qual fosse.

Entra, não entra, arrisca a entrar por baixo do arame farpado, a desaparecer pelo chão, quando lhe vem à cabeça a ideia de poder ser visto à distância por alguma sentinela que, certamente, não o identificaria e, o mais certo, pensou para ele, "fura-me todo".

Escapa-se do aquartelamento (ao longo de toda a história vê-se que conjuga o verbo escapar de trás para a frente) e decidiu internar-se no mato ao encontro, não sabia ainda, de uma pequena coluna da guerrilha. Estava ele a dizer “Tem calma David!”, quando uns vultos estacam à frente dele. Curvados, observam-lhe a cara, murmuram entre eles, até que um se chega à frente de um David a tremer por todos os lados.
–  Que andas aqui a fazer fora do quartel?
– Fugi, ontem à noite –  saiu-lhe pela boca, sem pensar, diz ele.

Apanhado pelo PAIGC, levado para o Morés e, depois, para o Senegal. Começa assim a odisseia do soldado raso David Costa. Levado pelo comandante Alexandre Dias Correia e mais seis elementos bem armados e equipados com fato camuflado, dirige-se à mata de Morés. Sempre bem tratado pela guerrilha e pela população, conhece José Landim, que se apresenta como chefe militar da base de Morés.

Depois foi a viagem por trilhos, bolanhas e ribeiros, em direcção ao Senegal. No trajecto ainda conheceu em Iracunda, bem perto do Olossato, o Aristides Pereira, futuro Presidente da República de Cabo Verde que, contente pela deserção do soldado, o abraçou e tratou com muita simpatia. Foi aí que assistiu a uma sessão política, que o deixou boquiaberto. Acarinhado por todos, rumou novamente em direcção à linha de fronteira, conduzido pelo comandante Alexandre Correia e pelos seus homens. Dois ou três dias depois chegaram.

Antes de embarcar numa camioneta que o aguardava, chorou abraçado ao comandante, que à despedida lhe disse:
– Vai em paz e que Deus te acompanhe. Obrigado por seres dos nossos…

Em Ziguinchor teve honras de ser recebido por Luís Cabral e pelo Mário Pádua, um médico português que desertara do Exército Português em Angola e tratava agora dos feridos e doentes do PAIGC. Levaram-no a um alfaiate, tirou medidas para um fato, comprou camisas e sapatos, fumou Craven-A e Rothelmans, parecia-lhe tudo surreal, diz ele.

Numa noite, após jantar com Luís Cabral, duas senhoras e o Mário Pádua, este entrou-lhe no quarto e perguntou-lhe a quem queria dar notícias. Que pergunta! O David não parava de pensar na sua jovem mulher. Então, o Pádua passou-lhe para as mãos uma carta escrita e uma folha de papel de avião em branco com o respectivo envelope.

“Quando me deixou só, comecei a ler aquela folha e fiquei muito desanimado. À medida que a ia lendo, ia perdendo a vontade de continuar. Não entendia nada de política, mas qualquer um perceberia que aquela carta era uma condenação. Eu ia dizer à minha mulher para não se preocupar comigo. Que estava muitíssimo bem e não me faltava nada. Que tivesse confiança, pois mais tarde ou mais cedo iria ter comigo, onde quer que eu estivesse. E pelo meio destas mensagens cheias de esperança dizia-se que quem tinha a culpa de tudo era Salazar…Que Salazar e Tomás eram doidos e o Cardeal Cerejeira também. Mesmo ignorante, logo percebi que jamais voltaria a Portugal sem problemas gravíssimos…”, escreve o David no seu livro.

Fez o que lhe sugeriram, copiou com a sua letra a folha que o Pádua lhe entregara. Depois o David continua a contar as atribulações que diz ter passado. Deram-lhe uma espécie de dinheiro de bolso e deixavam-no passear sozinho. Dias depois, diz ter escrito uma carta para a mulher,  contando a sua própria versão e pedindo que fizesse a entrega da carta no QG, no Porto.

A aventura no Senegal continua em Dakar para onde foi levado e conhece na sede do PAIGC um tal José Augusto, natural de Braga, ex-apontador de morteiro de uma unidade militar portuguesa, que desertara em tempos e que vivia no Senegal com a mulher e a avó.


Da Gâmbia até Bissau: o início de outro pesadelo, 
incluo a célebre chapada de Spínola


A odisseia do David no Senegal acaba num convento em Dakar, levado por um padre que o encontrara desanimado numa igreja. Não falta nesta história uma freira, jovem e bonita… Foi, aliás, através das freiras que obteve um passaporte e foi levado para Bathurst, Gâmbia, de onde depois de ter enviado um telegrama ao Comando Chefe das FA em Bissau, regressou numa avioneta civil à Guiné.

Bom, depois começou outra história. Prisão, interrogatórios, julgamento, condenação por deserção, chapada de Spínola... 

Ironia ou não, o David regressou em 20 de junho de 1971 no mesmo navio que, em fevereiro de 1967, o transportara para a Guiné...Passou à disponibilidade em 29 de agosto de 1971.



2. Seleção de comentários


Jorge Lobo  [ex-1º cabo at art, CART 1660 (Mansoa, 1967/68), nosso grã-tabanqueiro desde  10/1/2011]

[24 de novembro de 2010 às 14:56 
Jorge Lobo


Fui colega do David Costa,   na CART 1660,  em Mansoa,  e assisti ao vivo e a cores ao incidente que levou o rapaz a desertar do quartel e bem assim, acompanhei o caso até ao meu embarque para a metrópole, tendo mesmo o escoltado e assistido ao vivo ao seu julgamento no tribunal militar de Bissau.

Tudo se começou na caserna. O 1º cabo enfermeiro Chantre vinha-se queixando não ter recebido duas cartas de datas diferentes ambas com foto da namorada. Quem por norma trazia o correio era o David Costa mas, naquele dia  (trágico para o David) não tinha sido ele a ir a Bissau trazer o correio onde mais uma vez, a namorada enviava ao Chantre uma 3ª foto sua dentro da carta.

Desta vez então, o Chantre recebeu a carta e feliz com a foto,  mostrava-a aos colegas de caserna.
Porém, uns dias antes, o David...tinha mostrado a um dos colegas uma foto igualzinha à que o Chantre acabava de receber e mostrava a esse mesmo colega que já tinha visto a outra foto nas mãos do David.

Daí até se descobrir que tinha sido o David quem violou as cartas com as fotos anteriores, foi um pequeno passo. Ao ver-se descoberto, o David desapareceu do quartel e,  a partir daí, só ele mesmo sabe o que se passou.

Depois dele ter regressado, três meses depois do início da sua odisseia, contou-nos lá em Mansoa a versão da sua aventura de forma diferente a uns e a outros dos colegas.(Isto já em prisão, claro.)

Sinceramente,  eu passei a desacreditá-lo e mais desacredito hoje em dia, depois de ler em diversos blogs da internet, versões diferentes, segundo parece deixadas por si ou com o seu conhecimento.

Há coisas que não coincidem. Nuns lados ele diz que passou por uns locais e noutros porém fala em outros bem diferentes... Num lado diz que dormitava quando foi capturado pelo IN, e noutras ele diz ter-se esbarrado de frente com os guerrilheiros do PAIGC.

Tambem me parece estranho como é que ele foi parar a Morés, quando ele tinha dito que,  ao sair de Mansoa.  tinha entrado na estrada de Bissorã,  a qual o levaria a um destino bem diferente de Morés.
Estas e outras contradições tornaram o seu livro pouco credível.


Jorge  Lobo [.23 de novembro de 2010 às 21:36 ]

Caro David Costa, sou o 1º cabo  Lobo,  da CArt 1660,  e presenciei toda a cena da carta com a fotografia da namorada do Chantre, isto na caserna da CArt 1660,  em Mansoa.

Sabia vagamente o que te aconteceu mas não com todos esses pormenores. Em Bissau quando de cabo de dia antes da partida para a Metrópole, cheguei a levar-te as refeições ao presidio.

Desejo do coração que tenhas já esquecido a pior parte dessa tua odisseia e que sejas muito feliz na companhia dos teus.

David Costa [6 de dezembro de 2014 às 14:21]

Sou o David Costa e lembro-me perfeitamente de ti,  cabo Lobo, recebi com agrado tuas palavras e envio te um grande abraco com muitas saudades e o desejo de um dia te encontrar. Abraço David

Jorge  Lobo [ 30 de setembro de 2016 às 15:10 ]

Só hoje li a tua mensagem,  amigo David! Também espero um dia destes encontrarmo-nos algures para bater um papo e matar saudades daqueles tempos longínquos da guerra na Guiné. 

Admiro o teu sacrifício ao teres passado mais do dobro do tempo que o pessoal da CArt 1660 passou na Guiné. Ainda hoje recordo com mágoa as palavras daquele coronel,  juiz do tribunal militar, quando ele dizia que foste condenado a 2 anos, um mês e ...um dia de prisão. quando uma semana depois a nossa companhia regressava à metrópole. 

Muita coisa aconteceu na minha e na tua vida nesse entretanto,  entre 11 de novembro de 1968 até à altura em que tu regressaste depois dessa tua odisseia digna de um qualquer Alexandre o Grande....

 Um grande abraço e,  se me quiseres contatar,  podes faze-lo através do meu facebook  Jorge Pereira,  https://www.facebook.com/jorge.lobo.77715 

E depois combinaremos algo. Até breve, amigo. Jorge Lobo, 1º cabo, 1º pelotão da CART  1660. (****)

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Notas do editor:

(*) Vd, poste de 28 de outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3371: Bibliografia de uma guerra (35): Desertor ou Patriota, de David Costa: da brincadeira ao pesadelo... (V. Briote)