Acabas de atravessar o rio Caronte, nessa viagem sem regresso para qualquer mortal. Todos já temíamos o pior, a tua família e os teus amigos do peito, quando em 14 de agosto de 2017 nos juntámos na tua casa da Lourinhã para celebrar a vida, o amor, a amizade e... a esperança. Fazías então 69 anos.
Foi uma luta desigual, mas digna e corajosa, a tua, contra a morte anunciada. Não tenho cabeça, às cinco da manhã do dia seguinte, para te escrever a "oração fúnebre" que te é devida. Outros farão muito melhor do que eu o elogio do homem público, do cidadão, do português e sobretudo do médico, do psiquiatra, do psicanalista, do professor, do chefe de serviço hospitalar, do gestor e reformador da saúde mental. Infelizmente, já não estarás cá, em 2019, quando se comemorar os 40 anos do serviço nacional de saúde, para cuja génese e desenvolvimento também deste a tua quota parte, decisiva. Mas o teu exemplo, em termos de ação e pensamento, continuará a ser inspirador para todos nós,
Deixa-me reproduzir aqui, meu querido Alvarinho, as palavras que eu te disse, no teu dia de anos. É uma pequena, singela, homenagem de um dos teus amigos de infância que ficaram, discretamente, amigos para sempre. Estas palavras, ditas num círculo íntimo em 14/8/2017, passam a ser públicas, se não me levas a mal, do outro lado da margem do rio. E espero que possam ser também um lenitivo para a perda devastadora que é a tua morte, extemporânea, aos 69 anos, para todos nós, a começar pelos teus filhos, Miguel, Joana e Sara, e os teus netos, demais família e amigos, sem esquecer a grande comunidade da saúde mental (e da saúde pública), o teu país, a tua terra. E as mulheres que te amaram. Sim, tu foste feliz entre os homens e as mulheres. Foste feliz no amor e na amizade,
2. Soneto de amizade, dedicado por Luís Graça ao Álvaro de Carvalho no seu 69º aniversário:
Meu caro Álvaro,
meu bom e velho amigo,
querido Alvarinho:
Raramente me esqueço de te dar os parabéns,
no teu dia de anos,
desde há mais de sessenta anos.
A data, de resto, coincide com um dia glorioso da nossa história,
o da batalha de Aljubarrota, em 14 de agosto de 1385.
Se o nosso exército não tem derrotado o dos nossos vizinhos,
hoje estaríamos aqui a “hablar en castellano de la amistad entre nosotros”…
Nasceste num sábado, em 14 de agosto de 1948,
que foi de alegria para os teus pais,
pessoas de quem tive o privilégio de serem minhas amigas.
O dia, em termos metereológicos, não terá sido muito diferente do de hoje,
talvez um pouco melhor,
pelo que pude ler na
2ª edição do “Diário de Lisboa”
(, edição de 8 páginas, de que te mando um exemplar em formato digital).
Na costa norte e centro, o céu estava limpo,
por vezes com algumas nuvens,
vento norte bonançoso a fresco,
visibilidade boa,
ondulação norte noroeste moderada.
Foi um ano de estiagem, o de 1948…
Tinha havido, ao menos, umas chuvadas fortes uns dias antes…
E pelo mundo, as notícias eram aparentemente as de rotina:
acabavam os jogos olímpicos em Londres,
chovia torrencialmente em Berlim,
afetando a ponte aérea anglo-americana,
estávamos em plena guerra fria
e chegavam também ao fim, depois de 3 anos, os julgamentos de Nuremberg…
Em Portugal, na ponta mais ocidental e acidental da Europa, nada de novo…
Ah!, éramos bicampeões europeu e mundiais de hóquei em patins…
E claro comemorava-se o 14 de agosto, “dia da infantaria”…
Não quero ser maçador, e abusar do meu tempo de antena,
em dia que é teu, da tua família, dos teus filhos e netos,
e todos aqueles que te querem bem
e que fazem votos para ver-te de novo em boa forma,
ativo, produtivo e saudável…
Estamos aqui para darmos graças à vida
e festejar o amor, a amizade…e a esperança!
Mas tenho que te dizer, com ternura, algumas palavras
na tua festinha das 69 primaveras…
Não sei se alguma vez houve um poeta ou uma poetisa
que te tenha escrito um soneto…
Aceita aquele que eu te acabo de escrever,
e que é uma singela declaração de amizade,
em meu nome, e em nome da minha família,
a Alice, a Joana e o João.
Foste importante para mim,
por muitas razões que tu e eu sabemos,
na minha infância, adolescência e juventude,
e já depois de ter vindo da Guiné, ter casado e voltado a estudar…
Mas também foste importante para eles.
Foste, mais do que visita da nossa casa,
também um médico, um conselheiro e um grande amigo.
A Alice e eu estamos-te muito gratos,
a ti e à Ana Jorge,
pelo João que também ajudaste a nascer,
e que hoje é teu colega, psiquiatra.
Músico, seguiu esta manhã para Espanha, para um concerto,
e manda-te um xi-coração de parabéns.
Separados por duas ruas,
vivemos a nossa infância, adolescência e parte da juventude
na mesma terra, Lourinhã.
Estudámos na mesma escolinha do Conde de Ferreira,
brincámos no mesmo largo do coreto,
uma e outro há muito vítimas do camartelo camarário.
Lemos, na tua casa, os mesmos livrinhos aos quadradinhos,
dos cobóis às séries do “Cavaleiro Andante”…
Depois da 4ª classe e do exame de admissão (que fizemos juntos em Lisboa),
seguimos caminhos diferentes,
mas encontrávamo-nos nas férias grandes.
Desde cedo mostraste espírito de líder
(aquele que vai à frente mostrando o caminho),
criando o “Alvorada” juvenil,
e depois colaborando intensamente na redação do jornal.
Foi aqui, no jornal "Alvorada", que eu tive a minha primeira atividade remunerada.
Foi aqui também nosso colega de escola, amigo e teu primo,
o saudoso Rui Tovar de Carvalho (Lourinhã, 1948-Lisboa, 2014),
começou a dar os primeiros passos na sua carreira de jornalista desportivo.
À criação de uma secção, ou de uma página,
a que chamámos "Alvorada Juvenil",
seguiram-se outras:
abrimos espaço ao correio dos soldados do ultramar,
e demos voz aos nossos emigrantes.
No "Alvorada Juvenil", abrimos um inquérito aos jovens lourinhanenses
e alimentámos o "cantinho dos poetas"...
Tu e eu, assinámos em conjunto diversas reportagens,
para além de artigos de opinião que subscrevemos individualmente.
Havia alguma irreverência e inquietação,
próprias da idade e da época que vivíamos.
Acabei por exercer as funções de redator chefe deste jornal, quinzenário regionalista,
que ainda hoje se publica.
Foi fundado ao em 1960, como sabes,
pelo padre António Pereira Escudeiro (Tomar, 1917-Lisboa, 1994),
um homem a quem a Lourinhã muito deve
e que fez uma aposta forte na formação das elites, ou seja, na educação.
Foi igualmente fundador do jornal "Redes e Moinhos" (1954-1960).
Antes de vir para a Lourinhã como pároco, em 1953,
esteve em Alcanena onde fundou o jornal quinzenário "O Alviela",
entretanto suspenso pela censura por ousar publicar um artigo
sob o título "A fome em Alcanena"...
Estava-se em plena campanha do general Norton de Matos.
Retomou a publicação depois de ser autorizado a versar também "assuntos sociais"...
À frente do "Alvorado", como redator-coordenador, de 1964 a 1966,
"fiz-me esquecido"
e deixei de mandar o jornal à censura...
A entrada de jovens fora uma pedrada do charco da pasmaceira e do conformismo
em que se vivia nesta terra do oeste-estremenho.
Estava-se em plena guerra colonial
mas já na fase de fim de ciclo...
"Cadáver adiado", o regime do Estado Novo ainda estrebuchava
e metia medo a muitos.
Não admira que o diretor do jornal tenha recebido
um intimidatório ofício da direção geral de censura
a perguntar porque é que se permitia o luxo de ultrapassar a lei...
Metade do ofício, que era apenas de duas linhas,
correspondia a uma assinatura em letra garrafal,
símbolo máximo da arrogância de quem se sentia dono e senhor deste país...
Tudo "a bem da Nação", pois claro.
O pobre do padre vigário, já com ficha na PIDE (por causa do "Alviela"),
lá teve que arranjar uma desculpa esfarrapada aos senhores coronéis da censura
e, a mim, puxou-me as orelhas...
Doravante, tínhamos que mandar os artigos em duplicado para a tipografia
que por sua vez submetia uma cópia à censura...
E no entanto nunca nenhum de nós escreveu o que quer que fosse
que pudesse pôr a causa a sacrossanta trilogia Deus, Pátria e Família...
Eu acho que os censores embirravam sobretudo com os nossos jovens poetas.
Não entendiam nada da poesia moderna
e receavam à brava que os jovens lourinhanenses e outros,
que colaboravam connosco,
escrevessem também nas "entrelinhas"...
Nunca se sabe o que se passa na cabeça irrequieta dos poetas
nem muito menos na mente perversa dos censores...
Um dia vais gostar de rever este período das nossas vidas,
em que fomos jornalistas amadores
e ganhámos o gosto pela escrita, pela ação cívica e pela animação cultural….
Prometo fazer-te uma seleção dos teus e dos nossos escritos de adolescência…
Está na hora, por fim, de te ler o poema que te fiz esta noite.
E que te dedico com todo o meu apreço, gratidão, amizade e fraternidade.
É o meu pequeno contributo para a tua festa.
Soneto de amizade
por Luís Graça
Alvarinho, deixa-me te dizer,
Hoje, este soneto de amizade:
Amigo é um irmão, podes crer,
Para lá do sangue e da idade.
Nada tem de declaração senil:
Amigos para sempre, desde a infância,
A escola e o “Alvorada” juvenil,
Somos irmãos em última instância.
Amigo é partilhar dor e alegria,
Nos bons e maus momentos da vida,
É cumplicidade, é empatia.
E que mais, meu irmão e meu amigo ?
É saber dar-te a valia devida,
É ter tempo, afinal, para estar contigo!
Lourinhã, 14 de agosto de 2017.
PS – Parabéns, muita saúde e longa vida,
Porque tu mereces tudo!
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Nota do editor:
Último poste da série > 28 de dezembro de 2017 >
Guiné 61/74 - P18149: In Memoriam (309): Alf inf QP Augusto Manuel Casimiro Gamboa, CCAÇ 1586 (Piche, Nova Lamego, Canjadude, Madina do Boé, Béli, Bajocunda, 1966/68), nascido em São Tomé , morto em combate, em 14/12/1967, em Uelingará, entre Canjadude e Nova Lamego (José Martins / Virgílio Teixeira / António J. Pereira da Costa / José Corceiro)