Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Cerimónia do içar a Bandeira Nacional.
Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
[ Foto à esquerda:
Domingos Robalo, ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71; comandante do 22º Pel Art, em Fulacunda]
[Imagem à direita, guião da 2482, "Boinas Negras", subunidade que esteve em Fulacunda, entre 30 de junho de 1969 e 14 de dezembro de 1970, regressando nesta data a Bissau; esta subunidade foi mobilizada pelo RC 3, pertencia ao BCAV 2867 (Tite,1969/70); partida: 23/2/69; regresso: 23/12/70; antes de Fulacunda, esteve em Tite; comandante: cap cav Henrique de Carvalho Mais]
Fonte: Cortesia de © Carlos Coutinho (2007).
Já não sei precisar, mas uns dias depois da minha chegada a Fulacunda (*), em finais de setembro de 1969, o Comandante [, do CCAV 2482,] vai de férias à Metrópole. Entretanto, eu sou escalado para “sargento de dia”.
Efetuou-se o ritual militar para a rendição e o içar da Bandeira Nacional. Recebi a braçadeira de “sargento de dia” do furriel que tinha feito o serviço antecedente.
Terminada a cerimónia/ritual, há um soldado “Boina Negra” que me diz que havia que tratar do preso.
- Do “preso”?! - retorqui.
- Sim, meu Furriel, temos ali (, apontando para um edifício,) um preso.
Na altura fiquei lívido. O Furriel que me tinha passado o serviço não me avisara de tal situação e é um soldado que me informa que há um preso para tratar? Terá pensado que eu tivesse conhecimento?!...
- Vamos lá!... E a chave da prisão?
- Está aqui, meu Furriel.
Abre-se a porta e lá estava o prisioneiro que se encontrava deitado no chão térreo amarrado pelos pulsos. Os soldados mostraram alguma agressividade e descarregaram no coitado.
Rapidamente tive de intervir e ordenei que cessassem de imediato tais atos. Eu não tinha sido militarmente preparado para aquelas situações e os negros não eram para ser tratados daquela forma. Esta era a realidade que o general Spínola nos incutia, para além de que os meus soldados eram africanos e alguns estavam presentes comigo
Estava em curso por toda a Província a “Psico”, uma ação que tinha em vista “que para se ganhar a guerra tinha de se ganhar a adesão da população”.
Os soldados tentaram reagir à ordem,gritando;
- Meu Furriel, por causa destes turras, “filhos da puta”, é que nós estamos aqui.
Eu percebi que aquela reação era do foro íntimo e pessoal, porque sabia que também eles não tinham sido preparados para terem aquela reação. Só que eu não podia permitir tais atitudes, mas compreendia perfeitamente aqueles soldados. Eram contra tudo o que o Governador da Província e Comandante-chefe pretendia. A "Psico" estava por todo o território. Havia necessidade e era imperioso que o Povo Guineense fosse recuperado para a nossa bandeira. O General Spínola estava a iniciar um trabalho de fundo.
Fui ajudado por dois ou três soldados “Boinas Negras” que colaboraram na minha posição de acalmar a situação.
No fim desta confusão toda, deparo com o “turra” que estava simplesmente de boca aberta. Alguém o tinha safo de ser pontapeado e sei lá o que mais poderia ter acontecido. Eu próprio desamarrei os pulsos e requeri a presença do enfermeiro para que o “preso” fosse tratado. Mandei providenciar o pequeno-almoço junto da cantina e o “preso” nem queria acreditar no que estava acontecendo.
Entretanto, aproximaram-se mais uns soldados juntamente com soldados do meu pelotão testemunharam os restantes factos. Perguntei ao preso o nome, o que este respondeu:
- Eusébio.
Os pulsos já tratados pelo enfermeiro, e com o pequeno-almoço tomado, davam algum conforto ao Eusébio. Aí, o Eusébio pede para fazer chichi. Apercebendo-me eu que existia uma lata onde este urinava e defecava, percebi que aquilo não eram as condições mínimas para tais necessidades. Tomo a iniciativa de o deixar ir aos urinóis ali ao lado da prisão.
- Furriel, ele vai fugir - alguém questionou.
Mentalmente apercebi-me do risco que eu estava a correr. Virei-me para o Eusébio e com voz autoritária disse-lhe:
- Tu vais aos sanitários, mas vão dois homens atrás de ti, com G3 em punho e prontos a disparar se tentares fugir.
Cabisbaixo, foi aos sanitários, regressou e permaneceu o dia fechado na prisão com banco, almoço e jantar. Tinha diariamente as refeições, não apresentando sinais que indicassem o contrário. Durante o dia e à noite não ficou com os pulsos amarrados. Os pulsos foram tratados novamente ao fim do dia e colocados dois sentinelas posicionados à porta da prisão.
Passados estes momentos de tensão, tudo se acalmou. Os soldados perceberam que não tinham agido corretamente e a situação não mais se repetiu.
- Mas, porque estava o Eusébio preso? - comecei eu a questionar-me a mim próprio.
Perguntei aos meus camaradas, que me contaram:
O Eusébio fazia parte de um grupo de milícias que colaborava com a Companhia. Antes de eu ter chegado a Fulacunda, havia na prisão uma “turra” que terá sido apanhado. Numa noite chuvosa, estando o Eusébio de sentinela ao “turra” preso, este foge. As condições meteorológicas terão ajudado a esta situação. A forma como tudo ocorreu, ao certo, nunca soube.
Porém, o Eusébio afirmava que o “turra” tinha fugido aproveitando a noite de chuva e trovoada, mas é a ele que é imputada a responsabilidade e a “facilidade” concedida para a fuga do “turra” preso.
Por algum tempo o Eusébio continua preso e periodicamente lá vou fazer o meu “Sargento de Dia”. O Eusébio estava bem, fisicamente, já que psicologicamente “sentia-se preso”. Pouco tempo depois foi enviado para Bissau, debaixo de prisão.
(Continua)
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Nota do editor:
Último poste da série > 12 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20232: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte V: Rumo a Fulacunda, com o 22º Pel Art, passando por Bolama, e com batismo de fogo