Foto (e legenda): © Gonçalo Inocentes (20w0) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Este é o tipo de livrinho de memórias que todos gostaríamos de poder escrever e publicar em papel, reportando-nos à nossa experiência como militares na Guiné, entre 1961 e 1974. O que o nosso camarada Gonçalo Inocentes fez foi fazer uma seleção das fotos do seu álbum, tendo em conta o conteúdo temático e a qualidade da imagem... Ele é dos que acham que uma imagem vale muito, mas só por si não chega: é preciso uma legenda, uma data, um local, uma pequena história...
Damos alguns exemplos das suas pequenas crónicas, ilustradas por um grupo de imagens com valor documental... A ordem, sequencial, é meramente exemplificativa. De resto, o autor não apresenta nenhum índice:
(i) Quartel da CCAÇ 423, em São João , região de Quínara] (p. 21);
(ii) O batptismo de fogo (pp. 32.34);
(iii) Rendição (ao cansaço) (pp. 38-39);
(iv) Aerograma (pp. 42-43);
(v) Os tornados (pp. 56-57);
(vi) Minas e fornilhos (pp. 60-61);
(vii) Os guias (pp, 66-67);
(viii) Nova Sintra- Serra Leoa (pp, 71-73);
(ix) Ponta de Jabadá: os dias difíceis (pp. 76-77);
(x) Os chefes dos residentes, Malan Cassamá e Secu Camará (pp. 78-79);
(xi) Capitão Monroy (pp. 81-82);
(xii) O médico [, dr. Torcato Adriano Serpa Pinto, natural do Porto] (pp. 86-88);
(xiii) Dia negro (pp. 89-90);
(xiv) A grande bolanha (pp. 92-93);
(xv) Alegria de viver (pp. 95-96);
(xvi) A despedida (da CCAÇ 423) (pp. 99-100);
(xvii) Com a marinha (pp. 103-105);
(xviii) CCAV 488 (pp. 106-107);
(xix) João Landim (pp. 108-109);
(xx) São Vicente (p. 110);
(xxi) Eu vi um banho na Guiné (pp 111-113);
(xxii) The end (pp. 115-118);
(xxiii) Cruz Potenteia (pp. 122-123).
A técnica é simples e está ao alcance de todos: basta pegar em lápis e papel (ou no teclado do computador) e passar à escrita o turbilhão de memórias que ainda temos na cabeça: memórias dos lugares, das pessoas, da geografia, da a fauna e da flora, das peripécias da tropa e da guerra, etc., à mistura com os sentimentos (, de alegria, de tristeza, de medo, de euforia, de descoberta, de revolta, de esperança, de amizade, de camaradagem, etc.) que todos experimentámos, ao longo de quase três anos, envergando a farda do exército português naquela "terra verde-rubra"... Depois, todos temos algumas notas escritas, nas fotos, nos aerogramas, em cadernos, em diários, etc.
O título do livro pode (e deve) basear-se numa imagem ou ideia fortes: por exemplo, o som das "costureirinhas", servindo de fio condutor à narrativa...
No caso do Gonçalo Inocentes, julgo que ele aproveitou bem o confinamento imposto pela pandemia de covid-19, e teve também o nosso blogue como auxiliar de memória, recorrendo por exemplo aos mapas do território, que disponibilizamos "on line". As suas memórias são muito importantes, até por que se trata de um camarada, nascido em 1940, e que ainda é do tempo da farda amarela (o camuflado veio depois) e do início da G3... Chegou à Guiné em abril de 1964, num altura em que os "periquitos" ainda eram "maçaricos"...
2. Mas retomando o fio à meada (*), vemos o nosso camarada, com dois anos de tropa passados em Santarém, na Escola Prática de Cavalaria, e um 12 de nota final do CSM, o curso de sargentos milicianos, ser mobilizado para o TO da Guiné, em rendição individual, ser metido num DC6, aterrar em Bissalanca, ficar uma noite em Brá, e partir, no dia seguinte, de barco, para Bolama e, depois, para São João, seu destino final (pp. 16-21).
Pormenor delicioso: durante a viagem, no DC6 (,carregando "carne para canhão", homens para a guerra no mato, mas também senhoras de graduados que iam para as "intermináveis sessões de canasta" de Bissau), o Gonçalo Inocentes conhece um outro angolano, o
capitão 'comando' [Maurício] Saraiva, que não está com meias tintas, quando sabe o seu destino, e lhe dispara: "Estás fodido, pá. Tem um capitão que é uma merda e já tem uma mão cheia de mortos"... Referia-se à CCAÇ 423, que estava em São João...
Não sei se o autor confirmou esta impressão à chegada à sua nova unidade, "sua nova morada e nova família" (p. 19)... Mas as fotografias que publica na pág. 21 são elucidativas; aquilo não era um quartel, era um "bidonville tropical"... E a sua receção está de acordo com as NEP:
"Na varanda da única casa existente. estava o capitão Nuno Basto Gonçalves, sentado, com uma toalha ao pescoço e era barbeado por um soldado. Tinha a seu lado sentada uma mulher chinesa. À volta era um quartel de lata (...). Apresentei-me, como é norma no exército. O capitão com aquela secura que é própria dos capitães, apenas me disse: 'Está apresentado'. Nem mais uma palavra" (p. 20).
E mais à frente uma estendal improvisado, com roupa ímtima feminina estendida... E havia uma impedido para tratar da roupa da senhora...
Não menos calorosa foi, num outro dia, a saudação que veio do ar, do na altura furril mil pil Honório Brito da Costa. Eram já amigos um do outro, do tempo da Escola de Regentes Agrícolas de Santarém. Um angolano, outro cabo-verdiano. Nas férias, em Lisboa, encontravam-se no Café Palladium, nos Restauradores, ou na Suíça, no Rossio. E tinham por hábito, ir a pé até à Portela de Sacavém, tomar uma bica na varanda do 1.º andar do aeroporto, só para "ver... os aviões".
Quis o destino que se encontrassem na Guiné, na mesma altura... mas sem o Honório saber onde estava o amigo... Até que o descobriu e fez-lhe uma surpresa... Numa manhã, o aquartelamento de São João foi sobrevoado, em voo rasante, por um T6 Harvard, pondo a tropa em sobressalto. Pela rádio, ouviu-se o piloto a pedir para chamar o furriel Inocentes. Finalmente, em contacto via rádio, o Honório em fúria desanca no Inocentes: "Cabrão, cabrão, cabrão! Ando doido à tua procura! Não sabias dizer onde estavas ?"... E deu-lhe um abraço "by air" que se ouviu em toda a Guiné... e em Bissalanca.
Claro que o Honório deve ter levado uma porrada... Mas esta é uma das histórias deliciosas que o Inocentes nos conta, e que eu resumo aqui para os nossos leitores.
Mas há mais (p. 24): meses depois, com o Inocentes de férias, em Bissau, ele e o Honório foram ao baile dos finalistas do Liceu Honório Barreto [, lapso: eram da Escola Técnica de Bissau...], na "inesquecível noite de sábado do dia 5 de junho de 1965"... Ambos entram sem convite porque o Honório era... um senhor e era cabo-verdiano!... Mas ao Virgínio Briote e outros comandos foi-lhes barrada a entrada!... Acabou tudo à pancadaria, como sabemos (**).
Falando do Honório (***) "como senhor", o seu amigo acrescenta:
"(...) O Honório ficou conhecido por toda a Guiné. Era o único furriel que tinha entrada na messe de oficiais da marinha, onde a discriminação de 'ranks' era pior que racismo"(p. 24).
Guiné > Bissau > Associação Comercial, Industrial e Agrícola > 5 de junho de 1965 >O baile dos alunos finalistas da Escola Técnica de Bissau. Imagem da revista "Plateia", de julho de 1965, digitalizada e gentilmente cedida pelo Virgínio Briote.