terça-feira, 19 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25288: O Cancioneiro da Nossa Guerra (16): "Aldeia Formosa" e "Adeus Aldeia Formosa" (CCAÇ 2614 / BCAÇ 2892, Nhala e Aldeia Formosa, 1969/71)


Guiné > Região de Quínara> Buba > 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Bula, 1973/74) > Proteção aos trabalhos de construção da nova estrada Buba - Aldeia Formosa (via Nhala).

Foto (e legenda): © António Alves da Cruz (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. No seu singelo ļivro de memórias "Os Resistentes de Nhala, 1969/71" (ed. de autor,  s/l, 2005, 144 pp.) (*), o nosso camarada Manuel Mesquita (CCAÇ 2614 
/ BCAÇ 2892, Bissau, Nhala e Aldeia Formosa, 1969/71) transcreve a letra de duas canções, que se cantarolavam em Aldeia Formosa:

(...) "Em Aldeia  o pessoal canta, para esquecer a saudade, ou porque já estamos perto do fim. Pegaram na melodia da marcha do Bairro Alto, vencedora em 1960 (talvez), 'Bairro Alto e seus amores tão delicados'...) (op. cit, pág, 120). 

Nenhuma das duas letras em título...  Mas também circulam por aí como "Aldeia Formosa" e "Adeus, Aldeia Formosa"...  A primeira é uma paródia às colunas auto na temível picada Buba - Aldeia Formosa (que no final da guerra passou a aser uma estrada alcatroada)... Vamos acrescentá-las ao Cancioneiro da Nossa Guerrra  (**).


ALDEIA FORMOSA 

Aldeia e as colunas a seguir
Para Buba,  com a malta,
Sujeita a ir para não vir
Com aquilo que nos falta.

São emboscadas e minas,
Bolanhas e covazinhas,
Viaturas rebocadas.
Deitaram - nos isto à sorte
De procurarmos a morte
Nestas tão reles estradas,

Refrão:

Viaturas velhas, mesmo a cair,
E, mesmo assim, a malta tem que seguir,
São tristes chaços, em procissão,
Andam mecânicos com as chaves de mão em mão.


(Nota: Na página "A viola é do fado", lê-se que "esta marcha data de 1938 e é da autoria de Carlos Neves. Diz-nos Daniel Gouveia, no seu excelente livro ' No fado tudo se canta' que a letra original de Nuno de Aguiar foi várias vezes alterada pelos fadistas. Sugere-se, a esse respeito, a leitura da variante cantada por Carlos do Carmo."). 

2. A segunda letra é já relativa ao fim da comissão, e ao  "regresso"  do pessoal da CCAÇ 2614, que se vai processar, numa primeira fase,  em coluna auto,  de Aldeia Formosa até Buba, passando por Mampatá, Uane e Nhala (que ficou no coração dos "resistentes")  (op. cit, pp 124/125).


ADEUS, ALDEIA FORMOSA

Adeus, Aldeia,  Formosa mas feia,
Com turras a atacar,
Adeus, Aldeia, que eu levo na ideia
De não mais cá voltar.

Despedi-me das bolanhas sem igual, 

Das bajudas da Tabanca, 
Dos alfaiates do rio Corubal,
Antes quero a minha branca.

Ai, ai, ai!...,
Não me importo de ir à toa,
O que eu quero é ver Lisboa
E a terra que eu cá sei.

Ai, ai, ai!...,
Já deixei as matacanhas, 
Pântanos e montanhas
E a Nhala que eu amei.

(Nota: A letra encaixa-se na  música da "Canção da Papoila", do filme "Maria Papoila", de Leitão de Barros, 1937: música de Raul Ferrão, letra de Alberto Barbosa, José Galhardo e Vasco Santana; Lisboa, Sassetii & C.ª Editores, 1937. Fonte: Museu do Fado)

(Seleção, revisão / fixação de texto, notas: LG)



Capa do livro do Manel Mesquita, 
"Os Resistentes de Nhala", ed. de autor, 2005, s/l, 2055, 144 pp. 
(Gráfica: Quadra - Produções Gráficas Lda, Vila Nova de Gaia.)
(Contactos do autor: tel 22 762 07 36 | telem 963 525 912)
____________

Notas do editor:

Guiné 61/74 - P25287: Manuscrito(s) (Luís Graça) (248): Dia do Pai...

Foto de casamento dos meus pais, Maria da Graça (1922-2014) e Luís Henriques (1920-2012): Lourinhã, 2 de fevereiro de 1946



Foto (e legenda): © Luís Graça (2024). Todos os direitos reservados. [Edição:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Na nossa cultura, na nossa tradição, na nossa oralidade, na nossa poesia, na nossa pintura, etc.,  a figura do pai está muito menos presente do que a figura da mãe...

Talvez por que, durante séculos e séculos, os portugueses cresceram, não sem o pai, mas com o pai bem longe de casa, mais no mar do que na terra, a caminho das Indias e dos Brasis, lavrando o mar, juntando estrelinhas, desenhando mapas, construíndo naus e caravelas,  abrindo a primeira grande estrada da globalização, unindo os continentes, ligando povos... mas também na guerra, no exílio, no desterro, na prisão, na emigração... 

E, em não poucos casos, era mesmo uma figura completamente ausente, ou inexistente, quando se nascia, com o ferrete de "filho de pai incógnito"... O número de filhos fora do casamento, considerados "ilegítimos", e "sem pai" (na pia batismal e depois no registo civil) sempre foi relativamente grande ao longo da nossa história...   E havia também a situação de orfandade. Mas hoje temos novas situações... 

Citando o sítio do Manual da Família, podemos considerar que "a matéria dos filhos de pai incógnito subdivide-se, essencialmente, em três grandes fatias":

(i) "a das crianças geradas por metodologias de procriação medicamente assistida, como a fertilização 'in vitro', realizada por mães solteiras";

(ii) " a das mulheres com vários parceiros sexuais que desconhecem quem foi o dador de material orgânico para aquela gestação";

(iii) "e os casos em que o pai se recusa a assumir a paternidade da criança." (...)

Infelizmente já não temos entre nós o prof Jorge Cabral, o nosso camaradas Jorge Cabral (1944-2023), que era especialista em direito da família e menores... 

Mas não é da paternidade em sentido biológico e jurídico que  queremos aqui falar hoje, dia do Pai ( que para os cristão é o dia de São José, curiosamente uma pai que não terá sido  "biológico", mas "socioafetivo")... 
d
Sabemos que, mais importante que o "progenitor", é o pai socioafetivo, aquele que desempenha o verdadeiro papel de pai...  (Ou os vários papéis de pai.)

E às vezes faltam os dois, o progenitor e o pai socioafetivo...  E somos criados entre mulheres e tios... Ou o avô  preenche o papel de pai, ausente ou inexistente ou precocemente desaparecido...

Como nos recorda aqui o Zé Teixeira, num nos seus belos microcontos, do seu mais recente livro, "O universo que habita em nós" (Lisboa, Astrolábio, 2023, pág. 38):

(...) "O Miguelito tinha um problema existencial que o fazia sofrer. Gostava de ter um pai, como todas as crianças, suas colegas de brincadeira, naquela mata cheia de tojos e maias, o sítio ideal para construírem as suas casinhas e jogarem ao caça ao tesouro ou às escondidas. Não tinha pai. A família evitava falar desse assunto, por mais que ele insistisse, até porque os próprios colegas de brincadeira, talvez inocentemente, o provocavam. O Miguelito ficava triste e chorava. Quem lhe acudia, de imediato, e o acarinhava, era a Milocas de Cavelhos. que o antecedera uns dias na chegada a este mundo, e talvez por isso lhe tivesse um carinho muito especial.” (…)

Olhando, contudo, para trás, para a nossa geração e a geração dos nossos pais e avós,  sabemos que as nossas mães tiveram que ser mães e pais, tiveram que nos dar o pão, o amor, a educação... para, mais tarde, podermos pegar na trouxa , zarpar e ir no encalce da figura paterna... nas navegações, na odisseia da pesca do bacalhau, no comércio marítimo, na colonização, na guerra, no exílio, na emigração... 

 Foi um ciclo longo, de séculos, que estará longe de ter terminado com o chamado "fim do Império" ou a "descolonização"...

E não foi por acaso que até criámos, aqui, no nosso blogue, uma série que se chama "Meu Pai, meu Velho, meu Camarada"... Temos camaradas que também tiveram pais e até avós combatentes...

Infelizmente, a nossa geração, a que fez a guerra colonial / guerra do ultramar/ guerra de África, de 1961/75, já não tem os seus pais vivos... Se o fossem, seriam centenários (como o meu, nascido em 1920)... 

Mas continuamos a gostar de celebrar o Dia do Pa (o biológico e o socioafetivo), todos os anos, em 19 de março... Porque "recordar é preciso", e a saudade, se não é um produto "made in Portugal", é uma palavra única, e é portuguesa... 

Dizem que "já não temos idade para celebrar o Dia do Pai"...  Mas não é  verdade: ainda gostamos que os nossos filhos se lembrem de nós,  neste dia.... Com uma olá,  uma telefonadela, uma flor,  um poema, um convite para jantar... 

Temos saudades, isso, sim,  do nosso pai, da nossa mãe, dos que nos deram o ser... Temos saudades de quando éramos pequeninos, e tinhamos pais e avós e tios que gostavam de nós.... E queremos, afinal, transmitir essa doce ideia aos nossos filhos e netos...

___________________

Nota do editor;

Úlltimo poste da série > 18 de matrço de 2024 > Guiné 61/74 - P25282: Manuscrito(s) (Luís Graça) (247): Quando os ventos sopravam em Assuão...

Guiné 61/74 - P25286: Facebook...ando (52): António Pina, ex-sold, CCAÇ 3399 / BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1971/73); natural de Loriga, Seia, vive em São João da Talha, Loures, e é membro da Tabanca da Linha



 
"Eu também estive no mato 26 meses e 8 dias...foram tempos muito dificeis que nunca foram ultrapassados e jamais o serão... 71/73"


"Esta foto foi tirada junto ao 'Hotel'... a chamada caserna, onde dormíamos"


"Foto tirada no meio do capim, passados uns dias depois de saber que a minha querida mãe tinha falecido... quando eu mais precisava dela."


"Foto tirada, com o dilagrama, junto ao arame farpado, em Aldeia Formosa"


"Esta foto foi tirada em cima de um 'bunker' onde era guardado o materal de guerra (paiol)" (...) "Esta era a minha arma de defesa nas matas da Guiné... Tinha que ter um grande sentido de responsabilidade porque era uma arma eficaz em clareiras mas imensamente perigosa em matas muito densas  porque havia perigo de embater em qualquer vegetação e ferir os nossos irmãos de guerra quando caímos numa emboscada" (...)


Em dia de ir à lenha, numa velha GMC


Junto  ao obus 14, em Aldeia Formosa


Patrulha por Mampatá


"Como se pode ver na foto, eu e os meus irmãos de guerra estamos no restaurante, ao mais alto nivel, em Aldeia Formosa."... Um dos companheiros é o António Alberto Salgado Raposo, que era soldado condutor.  

Não sabemos qual foi o petisco, mas  foi bem regado, não faltando o vinho português, incluindo um Dão... A mesa é feita com tábuas de restos de caixas que acondicionavam géneros alimentícios, num delas pode ler-se: "Massa superior. Esparguete. Pacoteas"... O famoso "esparguete" que foi a tábua de salvação dos nossos vagomestres, juntamente com as conservas peixe (atum,  cavala...).


"Esta foto foi tirada em março de 1973, estava eu aqui com meus irmãos de guerra todos felizes...pois estávamos á porta de armas esperando a companhia que nos vinha render"...

Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa >: CCAÇ 3399 (1971/73) >  Seleção de fotos do álbum do António Pina

 Fotos (e legendas): © António Pina (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Oeiras > Algés > Restaurante Ca4ravelaq de Ouro > 55º almoço-conmvívio da Magnífica Tabanjca da Linha > 14 de marçlo de 2024 > O João Crisóstomo (Nova Iorque), o José Colaço e o António Pina, ambos de  São João da Talha (Loures).

Foto: © Manuel Resende (2024). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O Alberto Bastos (1948-2022), ex-alf mil op esp, é até à data o único representante da CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), na nossa Tabanca Grande (embora tenha entrado a título póstumo, e "por mão" do Joaquim Pinto Carvalho) há dois anos atrás (*).

Gostaríamos que outros seus camaradas, da CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 , pudessem vir a preencher o vazio deixado pela sua morte. Descobrimos há dias que o António Pina (ou António Santos Pina) foi também desta subunidade, tendo estado a maior parte da sua comissão em Aldeia Formosa. 

É membro da Magnífica Tabanca da Linha (**), que frequenta com regularidade, e gostavámos de o convidar a integrar o nosso blogue. Já participou, em 15 de abril de 2015, no X Encontro Nacional da Tabanca Grande, em Monte Real, juntamente com o seu amigo e vizinho José Botelho Colaço. 

Peço ao Colaço, que é um histórico do nosso blogue, que "apadrinhe" a sua entrada, no ano em  que comemoramos os 20 anos da Tabanca Grande (e estamos a fazer uma campanha para chegar aos 900...).  

O Pina é também amigo da página do Facebook da Tabanca Grande  (temos mais de uma centena de amigos comuns).  

Sabemos que é natural de Loriga, Seia, e vive em São da Talha, tal como seu  amigo José Botelho Colaço. Profissionalmente foi mecânico de apoio de avião na TAP Air Portugal.  

Da sua página no Facebook selecionámos algumas das fotos do seu álbum, para partilhar com os nossos leitores. (***)

___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 11 de janeiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22897: Tabanca Grande (529): Alberto Bastos (1948-2022), ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), natural de Vale Cambra, o primeiro grã-tabanqueiro do ano, o nº 856, embora infelizmente a título póstumo

(**) Vd. poste de 16 de março de 2024 >  Guiné 61/74 - P25277: Convívios (984): 55.º Almoço-convívio da Magnífica Tabanca da Linha, Algés, 14 de março de 2024 - Parte I

(***) 16 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25175: Faceboook...ando (51): seleção do álbum fotográfico de Nicolau Esteves, o "brasileiro de Cinfães", ex-1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 797 (Tite, São João e Nhacra, 1965/67) - II (e última)

segunda-feira, 18 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25285: Os 50 anos do 25 de Abril (3): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Março de 2024:

Queridos amigos,
É uma agradável surpresa, Carlos de Matos Gomes é ele próprio, com infância, vida familiar, a decisão tomada de ser oficial do quadro permanente, a sua passagem por Angola, como combateu em Moçambique, faz um compasso de espera em Lisboa e oferece-se para a Guiné, aí contribuirá para o desempenho do MFA. E irá contar como se processou a sua participação no processo revolucionário. O leitor será subjugado do princípio ao fim, eviscera-se a instituição militar com os seus valores, a sua burocracia, contam-se histórias hilariantes, perdas humanas, e aquele jovem capitão pergunta-se seriamente o que estava a fazer ali. Perguntado sobre o que o movia, responderá: "Não tinha um pensamento crítico organizado, e isso não dizia nada. A tropa é a tropa, é a malta. É o que a gente tem de fazer, vamos a eles e tal, aquela conversa. A seguir à primeira comissão, quando não estava na guerra, estava na Escola Prática de Cavalaria a dar instrução. O que dizia aos jovens que andavam a tirar o curso de oficiais milicianos: 'Vamo-vos preparar para vocês não morrerem. Vão para lá, são obrigados a ir, é preciso é que não morram e voltem." Um livro primoroso, um abençoado complemento para tornar mais cristalino o romance Nó Cego, a indiscutível obra-prima absoluta da literatura da guerra colonial.

Um abraço do
Mário


Porventura o testemunho mais eloquente sobre a guerra colonial e o depois,
Palma de ouro para a literatura nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (1)


Mário Beja Santos

Carlos de Matos Gomes é o romancista Carlos Vale Ferraz, autor do romance mais influente de toda a literatura de guerra colonial. Agora muda de rosto, volta a ter perto de 20 anos, faz comissões em Angola, Moçambique e na Guiné, prepara muita gente para a guerra, pertenceu ao grupo mais ativo do MFA na Guiné. Posteriormente, envolveu-se no processo revolucionário, chegou a hora de fazer um balanço do que viveu e do que se lembra.

Acaba de sair o seu livro de memórias "Geração D, Da Ditadura à Democracia", agora é, sem margem para equívocos, Carlos de Matos Gomes, Porto Editora, 2024, um assombroso ecrã sobre as primícias da guerra, os seus bastidores, o funcionamento da hierarquia castrense, a burocracia, sobretudo o exame de consciência do que é que um oficial do quadro permanente ia assimilando nas matas e nos quartéis quanto ao tremendo equívoco que era procurar até ao desespero urdir uma ficção sobre a propaganda doutrinal do Estado Novo sobre uma “guerra justa” para aquele império com pés de barro. É esta a parte das memórias construídas com uma assombrosa arquitetura literária que aqui se procura, aos poucos, desvelar.

Logo no arranque da obra, aquele jovem oficial é levado a pôr uma interrogação quem tem a espessura de um cataclismo moral, está no Tete:
“Num dia de maio de 1971, perguntei-me o que estava a fazer numa paisagem lunar, cinzenta e alaranjada, de rochas escaldantes, árvores de ramos secos, enquanto comia uma lata de conserva da ração de combate, sob uma temperatura superior a 40ºC, nas imediações dos morros de Cabora Bassa. Suava e afastava mosquitos. Não me queixava das condições da natureza. Prepara-me para a enfrentar e aos inimigos, mas chegara o momento das interrogações. Era um intruso. Que causas me haviam trazido até ali? Estar ali resultava da minha vontade e da minha liberdade, ou fora fruto de um conjunto de acasos, pelo que tanto podia estar naquele como noutro lugar ou situação, segundo o meu livre-arbítrio?”

E este jovem oficial que abriu o veio à consciência, apresenta-se:

“Tinha 24 anos, o posto de capitão comandante de uma companhia das tropas especiais, os Comandos, com o nome totémico de ‘Escorpiões’. Estava a terminar os dois anos de comissão. Chegara a Moçambique em 1969, como tenente, vindo do Centro de Instrução de Comandos de Angola, a casa-mãe daquelas tropas. Formara esta companhia em Montepuez com voluntários, havíamos combatido nas grandes operações do Norte em Cabo Delgado, no planalto dos Macondes. Os dirigentes da FRELIMO haviam decidido abrir a frente de guerra em Tete, e para ali viera eu enfrentá-los com os meus experientes, silenciosos e atentos comandos.”

Está para ali acompanhado de duas equipas de pisteiros rodesianos, é costume fazerem operações conjuntas. Acompanha-o um desses seres humanos sujeito a duas causas:

“Perto de mim, um negro esfarrapado, descalço, magro, sem idade identificável, quase uma múmia de pele seca e escamada. O guia que a PIDE me tinha envergado para me levar ao acampamento dos guerrilheiros, vindos do Norte, que haviam atravessado o rio Zambeze. O negro, sentado sob os calcanhares, amarrado pela cintura a um soldado, comia em silêncio o que lhe tínhamos dado – mastigava lentamente, com a boca de lábios rebentados pela pancada no interrogatório de há dois dias, numa tenda, na povoação de Estima, na base dos morros do Songo, no quartel-general do Comando Operacional das Forças de Intervenção.

Perguntei-me de novo o que fazia naquele fim do mundo, no interior de África, com um negro atado pela cintura a um soldado, transformando-o num moderno caçador de escravos e a mim num negreiro.

Aquela não era a terra a que eu pertencia. Nada me ligava àquele negro, nem àquelas rochas, nem àquele sol abrasador, nem aos mosquitos que entravam pela boca, nem aos rodesianos brancos que mandavam os seus militares combater ao nosso lado, no lado de cá da nossa fronteira, para evitar que os guerrilheiros anti-apartheid realizassem ações do seu lado.
Que causa me ligava àquele negro e aos homens que estavam sob o meu comando?”


A PIDE insistia na existência de uma base naquela região, a missão era aniquilá-la. Depois de muito caminhar encontraram-se na orla de uma mata no fundo de um pequeno vale, não havia base nenhuma, escreve o autor, manda o soldado soltar o preso, houve quem perguntasse ao capitão se o guia devia ser abatido, o capitão disse que não. E disserta sobre o Exercício Alcora, um protocolo estabelecido entre a África do Sul, a Rodésia e Portugal, os brancos da África Austral sonhavam com a criação de um bloco branco. Depois do 25 de Abril, o autor teve a oportunidade de ler os relatórios secretos dos aliados rodesianos, pouco generosos para nós: que tínhamos pouca vontade de combater, que não perseguíamos rapidamente as forças da guerrilha.

A graduação de memórias oscila entre o teatro de operações moçambicano e o curso que ele fez na Academia Militar, assim caminhamos para uma história brejeira, a da tropa de Lione, destacamento que distava poucos quilómetros em linha reta da fronteira com Maláui, vale a pena contar a história:

“A interpretação tática do comandante da companhia do Lione de não sair da quadrícula do seu aquartelamento, definida por uma ferrugenta rede de arame farpado pendurada em troncos apodrecidos, foi aceite como um facto pelo comando militar de Vila Cabral. Como tratar uma birra? O capitão miliciano comportava-se com a maior civilidade, revelava um espírito alegre, indiferença pela situação política, mandava vir revistas e jornais de Inglaterra e resumia o seu comportamento declarando que estava bem, na medida em que não podia estar pior. Se o punissem iria para outro local que seria, com elevada probabilidade, melhor do que o Lione.”

Carlos de Matos Gomes sai de Lione e vai em direção ao Malawi, cerca uma aldeia, quem lá vive não mostra temor, alguém se aproxima e se apresenta como polícia rural do Malawi. O capitão toma a decisão de pôr toda aquela gente numa coluna até Vila Cabral. Os comandos ficam petrificados quando dão conta do tremendo engano, aquela gente do Malawi após uma refeição oferecida foi reconduzida à sua terra-mãe.

Procede com ironia quando nos fala no Dia da Raça, muda de agulha quando a narrativa se prende com o primeiro morto em combate:

“Embarcámos numa lancha de desembarque pequena da base de Metangula, que oficialmente albergava o Comando da Defesa Marítima dos portos do lago Niassa. Desembarcámos numa pequena praia com o percalço de a lancha ter ficado presa num tronco, o que nos obrigou a sair com água pelo peito e a lancha a fazer muito mais barulho com o esforço dos motores para se libertar. O assalto correu como correm os assaltos: um grupo cercou a base e outro entrou a disparar. Os guerrilheiros deviam esperar-nos e responderam. O Armando, um negro robusto, sereno e de poucas falas, era sipaio da administração e servia de intérprete entre nós e o Zé Palangué (guerreiro capturado). Foi atingido no peito e caiu à minha frente. Julgo que os guerrilheiros o quiseram visar. Pertencia à tribo dos ajaua, um dos grupos étnicos da região. O Zé Palangué podia ter fugido, mas manteve-se connosco, não sei por que razão. Integrou-se na comunidade de Meponda e no espírito português de cumprir regras segundo as conveniências, apesar de islamizado preferia as latas de conserva de chouriço em óleo de mendubi às de atum ou sardinhas. Iniciámos o difícil regresso pelos montes e vales das margens do lago, com o corpo do Armando para o entregarmos à família, com toda a dignidade. Eu tinha 20 anos e também cumpri a minha escala de trazer o Armando às costas, na maca improvisada com dois troncos e panos de tenda".

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25279: Os 50 anos do 25 de Abril (2): O meu primo Luís Sacadura, furriel miliciano, natural de Alcobaça, hoje a viver nos EUA, estava lá, no RI 5, Caldas da Rainha, no 16 de marco de 1974, e mandou-me fotos dos acontecimentos (Juvenal Amado)

Guiné 61/74 - P25284: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Inf Bettencourt Rodrigues, Governador-geral e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XI: Nhala, 23 de abril, a última visita a um quartel no mato (António Murta, ex-alf mil, 2ª C/BCAÇ 4513, Nhala, 1973/74)


Foto 4 > Guiné > Região de Tombali > Sector S2 (Aldeia Formosa) > Nhala >  2ª C/BCAÇ 4513 (Nhala, 1973/74) >  23 de Abril de 1974 > Já no centro do aquartelamento o general dialoga com o cmdt de Nhala; de costas, o coronel Hugo da Silva, Chefe do Estado-Maior.


Foto 8 > Guiné > Região de Tombali > Sector S2 (Aldeia Formosa) > Nhala > 2ª C/BCAÇ 4513 (Nhala, 1973/74) > 23 de Abril de 1974 > Diálogo à porta do cmdt de companhia, com a presença de um "homem grande" que deve ser um “notável” da tabanca, mas de quem não me recordo.



Foto 11 > Guiné > Região de Tombali > Sector S2 (Aldeia Formosa) > Nhala > 2ª C/BCAÇ 4513 (Nhala, 1973/74) > 23 de Abril de 1974 >  As visitas preparam-se para partir; oo volante do jipe, o cmdt do Batalhão, ten cor Carlos Ramalheira e, ainda a subir, à esquerda, o cmdt de Operações, capitão Cerveira; de cigarro na boca, à direita, o coronel Hugo da Silva; no jipe de trás o resto da comitiva, apenas se reconhecendo ao volante o major Dias Marques; a comitiva dirigiu-se a Aldeia Formosa, onde o general almoçou regressando logo a seguir a Bissau.

Fotos (e legendas): © António Murta (2015). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Terá sido mesmo a última visita que o Com-Chefe, gen Bettencourt  Rodrigues, fez a guarnições no mato: referimo-no à sua ida ao Sector S2, e nomeadamente a Aldeia Formosa  e Nhala. Chegou de manhã, visitou a frente de trabalhos da estrada Aldeia Formosa-Buba, e regressou a Bissau depois do almoço.

O nosso camarada António Murta, ex-alf mil, 2ª C/BCAÇ 4513 (Nhala, 1973/74) tem uma reportagem completa sobre a visita a Nhala (*). Selecionámos 11  das suas 18 fotos, para esta série de "A 23ª hora" (**)




(i) Apontamento: O general Bettencourt Rodrigues.

O General Bettencourt Rodrigues foi um militar brilhante e teve uma carreira longa e preenchida de altos cargos, ensombrada apenas por um final inesperado e sem glória, quem sabe, por preferir manter-se coeso com os seus ideais a aderir ao Movimento das Forças Armadas que acabara de depor o governo de Lisboa. 

Por via deste desfecho, nunca saberemos que impacto teria a sua acção na administração da Guiné e no evoluir da guerra que, naquela época e nalguns sectores, atingia estádios decisivos e preocupantes, mormente no meu Sector S-2, (com informações ainda muito secretas mas alarmantes sobre os planos do PAIGC), como mais tarde darei conta.(...)


 (ii) História da Unidade do BCAÇ 4513:

(...) "23Abr74 – Pelas 08h00 chegou a Aldeia Formosa  Sua Excelência o General e Comandante-Chefe, acompanhado pelo seu Chefe do Estado Maior, cor Hugo da Silva, comandante do BENG,  ten cor Maia e Costa,  e ajudante de campo, a fim de visitarem a frente de trabalhos da estrada Aldeia Formosa - Buba. 

Depois de serem prestadas as honras do estilo, Sua Excelência percorreu demoradamente o aquartelamento, apreciando as obras em curso. 

Depois de um briefing no Gabinete de Operações, e acompanhado pelo comandante e 2º comandante do Batalhão e restante comitiva deslocou-se à frente de estrada e ao aquartelamento de Nhala.

Na frente de trabalhos reuniu-se com o pessoal de Engenharia, a qual felicitou pelo trabalho desenvolvido. Após esta visita regressou a Aldeia Formosa, onde almoçou, seguindo depois do mesmo para Bissaum.  (...)."

(iii) Das minhas memórias desse dia:

(...) 23 de Abril de 1974, terça-feira:  A visita do General.

A visita do General Bettencourt Rodrigues a Aldeia Formosa e a Nhala foi, provavelmente, a última que fez na Guiné na qualidade de Comandante-Chefe. 

Pareceu-me uma pessoa muito acessível, afável e atenta aos problemas que lhe eram colocados. Mas foi a impressão de um contacto muito breve.

Nas imagens que mostrarei a seguir, “reportagem” que não é de todo exaustiva, pode notar-se uma certa ausência de tropa em Nhala, pela mesma razão da ocorrida aquando da visita da Cilinha, mas que não referi no relato que dela fiz. Essa ausência deve-se ao que a História da Unidade do BCAÇ 4513 expressa sem rodeios:

“(...) 23Abr74 – (...). Em virtude da visita de Sua Excelência o Comandante-Chefe, foi montado na estrada Aldeia Formosa-Buba  um dispositivo especial de segurança, com forças da 1.ª CCAÇ, 2.ª CCAÇ, 3.ª CCAÇ/4513, CART 6250”.(...)

Como última nota referente a este dia, diz ainda o seguinte a História da Unidade:

“Pelas 22h30 Gr IN destruiu um pontão da estrada alcatroada Buba-Nhala, em região XITOLE 2 G 7-39”.

Mas o senhor General já não ouviria o grande estouro, recatado em Bissau para onde regressou após ter almoçado em Aldeia Formosa.  (...)



Foto 1 > Guiné > Região de Tombali > Sector S2 (Aldeia Fomosa) > Nhala >  2ª NC/BCAÇ 4513 (Nhala, 1973/74) >  23 de Abril de 1974 >  Chegada do gen Bettencourt Rodrigues às imediações do aquartelamento, descendo a base recente da estrada nova; na frente do jeep, preparando-se para descer, o comandante do BCAÇ 4513, ten cor Carlos Alberto Ramalheira.



Foto 2 > Guiné > Região de Tombali > Sector S2 (Aldeia Fomosa) > Nhala >  2ª C/BCAÇ 4513 (Nhala, 1973/74) >  23 de Abril de 1974 > Depois das honras militares o general cumprimenta o cmdt  de Nhala, Cap Braga da Cruz, da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513. Atrás de si, o Oficial de Dia, Alf Mil Campos Pereira.


Foto 3 > Guiné > Região de Tombali > Sector S2 (Aldeia Fomosa) > Nhala >  2ª C/BCAÇ 4513 (Nhala, 1973/74) > 23 de Abril de 1974 > A comitiva dirige-se para o aquartelamento. À esquerda da imagem o coronel Hugo da Silva, Chefe do Estado-Maior, cumprimenta o Oficial de Dia. Em primeiro plano, de Kalashnikov, o tenente Ajudante de Campo. E guarda-costas, pareceu-me.



Foto 5   
 > Guiné > Região de Tombali > Sector S2 (Aldeia Fomosa) > Nhala >  2ª C/BCAÇ 4513 (Nhala, 1973/74) >  23 de Abril de 1974 > O tenente guarda-costas (que ostenta o crachá dos cmds na boinma, e está equipado com uma Kalash),  aproveita para ler uma carta chegada da Metrópole, quero crer. Porquê? Porque o envelope é debruado pelo tracejado característico do correio aéreo.
~


Foto 6    > Guiné > Região de Tombali > Sector S2 (Aldeia Fomosa) > Nhala >  2ª C/BCAÇ 4513 (Nhala, 1973/74) >23 de Abril de 1974 > Por uma mania que ainda uso quando calha, fechei num círculo visitantes e anfitriões. De bigode, fitando-me, o mjor Dias Marques, que percebeu a maldade (inocente, diga-se), parece pensar: "Lá está este gajo outra vez com as suas maluqueiras"...


Foto 7    > Guiné > Região de Tombali > Sector S2 (Aldeia Fomosa) > Nhala >  2ª C/BCAÇ 4513 (Nhala, 1973/74) > 23 de Abril de 1974 > Após inspecção ao depósito de géneros (com cão a sair), da responsabilidade do fur mil vagomestre Sebastião Oliveira.




Fotos 9/10   > Guiné > Região de Tombali > Sector S2 (Aldeia Fomosa) > Nhala >  2ª C/BCAÇ 4513 (Nhala, 1973/74) >  23 de Abril de 1974 > Outro homem grande chega-se à conversa, enquanto começam a aparecer as mulheres da tabanca com ar decidido, começa o ajuntamento popular movido pela curiosidade e pelo tributo de honra ao homem grande da tropa, manga de ronco; j
á não vai haver hipótese de reunir no gabinete; tudo irá a “despacho” ali à porta.

 (Seleção, revisão / fixação de texto, edição parcial  e renumerção das fotos: LG)

_______________

Notas do editor: 

Guiné 61/74 – P25283: Efemérides (431): 51º Aniversário de instruendos que passaram pelo CIOE, em Penude, Lamego (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


13º Convívio de camaradas do 1º Curso/Turno de 1973, de Penudo/Lamego

Um tempo, sem tempo, que ainda ousa reunir camaradas de armas e seus familiares

Não obstante os agrestes e eventuais contratempos que porventura nos surgem pelo caminho, existe, porém, a certeza que quando o “comandante” Alberto Grácio toca o reunir as tropas, 1º Curso/Turno de 1973 de Operações Especiais/Ranger em Penude/Lamego, nós antigos militares e combatentes da antiga guerra colonial que se espalhou por Angola, Moçambique e Guiné, respondemos, com prontidão e, num tom fortemente unissonante, respondemos: SIM, presente!

Desta feita, o evento, o 13º, teve lugar em Palmela e por lá apareceram muitos camaradas, sendo que alguns deles se fizeram acompanhar por familiares. Foi, no fundo, trazer às nossas reminiscências o que fora a dureza de uma especialidade que nos acompanhou ao longo das nossas vivências militares, assim como o palco de guerra por onde andámos.

Ali falou-se de tudo um pouco. Dos bons e dos maus momentos pelos quais passámos. Éramos jovens e essa postura militar, sendo então obrigatória, foi-nos mais enriquecida pela passagem pelos Rangers, que nos deu novas “armas” para enfrentarmos as mais díspares situações que nos surgiram pela frente nos campos onde as batalhas naturalmente proliferavam.

Mas o mundo no qual hoje vivemos, a guerra, aquela em que os vossos avós e pais foram obrigados em participar, são agora guardados em baús onde essas memórias foram paulatinamente corroídas com o evoluir das épocas passadas, ainda que elas não sejam assim tão distantes no tempo. Todavia, existe uma nuvem negra que tenta escamotear a realidade pela qual infalivelmente passámos.

Atualmente o pouco que resta a este povo português, que parece esquecido do recente conflito armado em terras de além-mar, sejam relatos escritos em livros que avivam as memórias dos ainda interessados numa valorização dos seus conhecimentos pessoais.

Catarina Gomes, jornalista/escritora, trouxe a público um livro chamado “Pai, tiveste medo? Uma obra que cita, precisamente o camarada Gomes, já falecido, pertencente ao nosso Curso, 1º de 1973, que prestou serviço militar em Angola, como alferes. Paz à tua alma, camarada. Ah, houve um momento em que se fez silêncio pela tua inesperada partida. Ficou o simplório gesto dos companheiros com os quais partilhaste as dificuldades, físicas e mentais, no sopé da Serra das Meadas. Nós, os teus camaradas, já septuagenários, que, por ora, continuam a fazer peso à terra, prosseguirão essa divina missão em rever os presentes e, singelamente, recordar os ausentes, isto é, aqueles que um dia partiram para o infalível caminho rumo a outros nimbos, mas com outras dimensões, sendo estas deveras cruéis.

Amigos de sempre e para sempre, lembremo-nos que as vidas, sendo demasiado curtas, serão, contudo, elevadas com celebridade enquanto as nossas vozes solfejem o condão de estarmos vivos. Para trás ficaram memórias, de todo inesquecíveis, numa guerra que nos foram demasiado cruéis, quer em Angola, Moçambique ou Guiné, onde muitos destes camaradas presentes no evento por lá militaram.

Que venha o próximo Convívio, este a Norte!



Eu, Zé Saúde, com o meu companheiro por terras de Gabu, Guiné, Rui Álvares, onde comandamos, em simultâneo, o mesmo grupo de intervenção



Alberto Grácio, o “Comandante” em pleno campo de “batalha” e a preparar as “armas” para um “assalto à mão” a uma mesa recheada de “rações de combate”. Grácio, um antigo combatente na Guiné







Catarina Gomes, jornalista/escritora, esteve presente e deu a conhecer um dos seus livros:

Pai, tiveste medo?

Os convivas



Uma outra parte da sala



Catarina Gomes a partir o bolo do nosso 13º Convívio 

Abraços camaradas e um até breve.
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
___________

Nota de M.R.:

Vd. últimos postes desta série em:

26 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25214: Efemérides (430): O "making of" do livro de Spínola, "Portugal e o Futuro", publicado há 50 anos (revelações do biógrafo, Luís Nuno Rodrigues)

 

Guiné 61/74 - P25282: Manuscrito(s) (Luís Graça) (247): Quando os ventos sopravam em Assuão...

 

Egito > Assuão > Templos de Abu-Simbel > Cortesia de Wikipedia e Panoramio (foto)

 

Quando os ventos sopravam em Assuão era verão

por Luís Graça


Aqui o verão era fértil,
O verão era fútil,
O verão era fértil em coisas fúteis.
Fértil no Vale do Nilo,  fútil em Abu Simbel.

Era no Verão que se comia melancia ao quilo,
E, enquanto amadureciam as tâmaras,
Vendia-se a inultura geral a granel 
Em folhas de falso papiro:

... "Welcome, sejam bem vindos a Assuão!"

Senhores e senhoras do Norte, 
Em agosto resiste-se melhor 
À melancolia do entardecer em África,
Bem como ao medo das câmaras escuras da morte,
Na linha do horizonte, abaixo do Trópico de Câncer.

Em Abu Simbel, o verão era ostentação.
Tu preferias os óstracos
Onde o operário de Deir el-Medina
Falava da sua condição,
De produtor, de artesão,
De construtor de túmulos,
De escultor de esfinges, 
De guardador de segredos,
De malandro e de grevista,
De salteador e de ladrão,
De violador de medos
E de barqueiro Caronte.

Tu sempre achaste que esta estação não rimava com poesia.
Mas tu não eras o Ramsés Segundo
Nem conhecias o caminho irreversível para a imortalidade.

Aqui o verão era fértil em coisas fúteis
Como o escriba acocorado
Perante o espectáculo risível do mundo globalizado.

..."Na terra prometida do pão e do mel,
Tenham cuidado, meus senhores, com os vegetais,
Bebam águas minerais, encapsuladas, 
Levem dimicina e ultralevure
Por causa dos desarranjos intestinais
E das sete pragas do Egito!

... "E o vírus do Nilo, senhor barqueiro  ? É mortal ?"

... "Descanse, my lady, que o barco tem escolta policial."


Na Ilha Elefantina nâo havia manicure,
Havia apenas pessoas  inúteis
Que adoravam subir aos píncaros do verão.
De camelo.

... "Sobretudo não tome uísque com gelo",

Podia ler-se numa tabuleta à beira do lago Nasser.

... "Meus senhores, estamos em África, be careful"

Aqui o verão era, por excelência, o paraíso 
Com o ocre como pano de fundo.
E sob os carris de ferro das dunas
O barco, bêbedo, do poeta Rimbaud.
O verão era uma casa de adobe e uma esteira no chão
E os altos muros do deserto
Estrangulando o fio de água da vida.

... "Ah, o nascer e o pôr do sol, 
Não esquecer de pagar tributo ao deus-sol".

Porque o verão no Egipto era a rosa do mundo.
O misticismo. A demência. 
Os calores 
De Santa Teresa d’Ávila em trabalho de múltiplos orgasmos.
No Vale dos Reis. E das Rainhas. E dos Nobres.

... "Esqueçam, por favor, a mastabas dos pobres!

... "Ah! Não vêm nos roteiros turísticos ?

... "I'm sorry"!

O verão era o sexo distendido.
O músculo relaxado. A alma em carne viva.
A praia. O creme Nívea. O postal ilustrado.
O repelente para os mosquitos,
A alegre promiscuidade dos cinco sentidos.
O carrossel do Cairo em três dimensões.
O teu gin tónico com limão.
A carne em decomposição. O desastre humanitário.
Mais, ao fundo do mapa,  a Núbia, o Sudão.
Os dóceis núbios. As volúpteis núbias.
A mutilação genital feminina das futa-fulas da Guiné.
A tragédia de Darfur.
Tudo trivialidades.

... E ainda a louca montanha russa. O bazar.
A dança do ventre dançada por travestis, canastrões.
A mesquita de alabastro.
O mítico mar vermelho.
A Sagrada Família. Jesus, Maria e José.
O burrinho puxando a nora.
A felicidade a preço de saldo.
O exotismo com molho de bechamel.
O oásis no deserto. 
Todos os estereótipos do mundo.

... "E, por favor, tirem uma fotografia digital,
Da varanda do hotel Marriott."


Bem gostarias de apresentar uma reclamação,
Por escrito, ao senhor vizir:

... "Eu estive em Abu Simbel
E experimentei as dificuldades da comunicação humana."


O verão era o Vale do Nilo, 
Um gigantesco falo que penetrava, fundo,
A terra árida e seca da Mãe África.
Gretada, a terra, a carne.

... "White women, carne branca.
I Egiptian man, fertility man.
Portugal ? Good, Luís Figo!"


Do alto da mesquita de Najaf,
Mais acima no mapa do corpo humano,
Dizia o guia, o teu guia:

... "Alá é Grande!,,,
Mas o meu o coração sangra de dor
Pelos meus irmãos, xiitas, sunitas, ismaelitas.


Do alto das pirâmides de Sacara
Havia um imã que te notificava
Por carta registada com aviso de recepção:

... "Que a vida eterna te chama
E exige a mortificação, a mumificação!"


Recebeste por fi
m notícias de Lisboa
Onde a fertilidade da futilidade
Era então um problema de saúde pública.
Um osso duro de roer.
Tão duro como o granito de Assuão
Donde soprava o vento que modelava o  rosto das esfinges.

De Lisboa ao Cairo erguia-se o templo do futuro
Com paragem técnica em Luxor
Para consultar os arquitectos da eternidade.
A antiga Tebas, a cidade das cem portas,
Era  já um pequeno burgo.
E o teu guia, egípcio, brasileiro, muçulmano,
Dizia que tinha o coração a sangrar.
Marcos chorava pelos seus irmãos
De Najaf, no Iraque,
E confidenciava-te:

... "Eu nunca poderia trabalhar
Para os meus inimigos e vizinhos de Israel.
Por muito dinheiro que me pagassem."

Marcos não tinha preço.
Incorruptivel como o corpo dos faraós.
E recusava-se a atravessar o Mar Vermelho. 

... "Não matarás!,  sentenciava Moisés".

Que tivessem  santa paciência.
Os pobres. Os diabos. Os pobres diabos.
Os santos. Os turistas. Os contribuintes.
Os camponeses. Os escribas. Os escravos,
Os guias turísticos. Os romancistas policiais.
Os arqueólogos. Os caçadores de tesouros.
As esposas dos ricos homens de negócios das arábias.
Os sacerdotes do templo de Kom-Omb
Que eram carecas.

... "E sobretudo os pobres,
Porque deles ainda há de ser o reino da terra!"


Pobre planeta, sem rei nem roque.
E com tantos súbditos e tão poucos sábios.

... "E não se esqueçam de pôr a escrita em dia.
Pesem a alma. Meçam as bolsas.
Leiam o Livro dos Mortos
Ou A Morte no Nilo,
Que o barco vai zarpar!"...

E o Habibo, de mão estendida:

... "Um oiro, um euro, amigo.
Para o Habibo.
E para o camelo do Habibo,
Que tem sede e fome.
Óscar, de seu nome."


E o Estado que já não garantia ser mais Estado no futuro,
E muito menos o Estado-Providência.
E pagar o leitinho às criancinhas.
E o funeral aos velhinhos.
E a baixa por doença ou acidente 
Aos construtores, descartáveis,  de piràmides,
E nem sequer já a múmia ao faraó.

..."Deixem isso às madraças
E à caridade em tempo de Ramadão".


Restava-te a Alta Autoridade do Nilo
Que regulava os influxos e os defluxos dos deuses.
E a exploração do trabalho infantil
Nas escolas-fábricas de tapeçarias em Memphis.

Na verdade, o verão era apenas uma estação.
De comboio.
Do comboio de via estreita
Que ia do nascer ao morrer,
Duna acima duna abaixo.
E quem dizia estação dizia cais. 
De chegar. De apodrecer.
Como esta falua do Nilo à beira Tejo
Que era o rio que passava à tua porta antes de ser desviado
Para ir regar as palmeiras do Éden.

Sexta-feira, treze.
De Agosto. De azar,
Quer quisessem ou não, a indústria do lazer
Iria ser o principal foco de infecção
Naquele pico de verão.

... "Tenham cuidado com o cão
E com a maldição
Do Faraó Tutankamon."


Morrera a indústria dos metais pesados,
Como acabara por decreto o tráfico de escravos
Que alimentava o Novo e o Velho Mundo.
Pois que vivesse, agora, a indústria do lazer.
Leve. Ecológica. 

... "De terceira vaga.
Com homologação. Com certificação.
Com acreditação. Com exemplos de boas práticas.
Com análises de custo/benefício."


Graças ao lóbi da qualidade
O mundo iria bem melhor sem escravos nem metais pesados.

... "Que a vida era dura,
E o que a gente faz para ganhá-la", dizia o Marcos.

Como o búfalo que pastava nas margens do Nilo.
Como qualquer búfalo domesticado
Depois de trabalhar o dia inteiro
Para o seu suserano,
O camponês egípcio.
Que por sua vez alimentava o Faraó 
E as suas esposas e concubinas,
O seu exército, a sua polícia núbia e os seus esbirros,
E a legião de escribas acocorados
Que tinham o monopólio da escrita. E do saber.
Ah!, sem esquecer os engenheiros da barragem de Assuão.

Na época, as partes pudendas, a zona púbica,
A coisa pia, do Portugal contemporâneo,
Iria ser matéria de alto relevo na televisão.
Dizia o Eça, o escriba ainda de pé,
Em missão de reportagem na inauguração do Canal do Suez.

... "Já não tens rei, ó portuguès,
Nem o tique aristocrático do beija-mão.
Nem o Conde de Burnay.
Nem faraó. Nem deuses. Agora é que é,
A república é quem mais ordena.
Senão popular, pelo menos populista.
A coisa pia mais fino no Portugal pequenino
Mas demo...crático."


Imaginavas.
Sem imagem nem voz.
Porque estavas em férias num cruzeiro do Nilo,
A observar o elegante voo da garça real.

... "Onde estará o pelicano ?
E a cegonha preta ? E a abetarda ? E o jagudi da Guiné ?
E os filhos ilegítimos do povo ?"


No barco não apanhavas a RTP, felizmente de todos nós.
Nem sabias se o Porto perdera na supertaça
E o Obikwelo ganhara a medalha de prata dos 100 metros
Nas Olimpíadas de Atenas.

... "Turco, grego, tunisino ?
Espanhol, italiano, palestino ?"...

... "Ah!, não, ah!, sim, português !

... "Ah!, Portugal, Luís Figo! Compra, amigo."

... "Quanto, quanto ? Dez nove oito sete seis cinco...
Quatro três dois, um!"

... "É só um oiro, um euro, amigo.
Que o Habibo tem fome e sede mais o camelo."


Maria do Patrocínio, tua avó materna.
Lembrar-te-ás dela,  a 'ti Patxina ?!
Patxina, de alcunha, 
Por economia de letras do alfabeto.
Morrera cega,
Sem hieroglifos gravados na estela,
'Ti Patxina, apalpando os netos, o  cabelo,  a cara.
E não a mumificaram
Nem muito menos a operaram às cataratas
Que no seu tempo
As obras de misericórdia
Eram sete espirituais e sete corporais.
Como no Egipto dos faraós.
Como as sete pragas do Egipto.
Como naquela triste aldeia núbia
Que era uma espécie de reserva dos últimos núbios
Com crocodilos de plástico
E pretos garanhões de olhos verdes.
E onde havia uma velhota,
Cega como a  ti' Patxina,
Que vendia bugigangas pró turista.

De Assuão a Luxor, tu gostarias de ter escrito
Um poema sobre os teus estados de alma.
Tão contraditórios que se anulavam.
A verdade é que encontraste aqui
Um povo afável.

... "Mas que te  adiantava o pedigree, ó Habibo,
E os cinco milénios de civilização.
E Ramsés Segundo e Nefertiti,
E o templo de Edfu,
 E a barragem de Assuão,
E o museu do Cairo...
Se nada mudara, pobre de ti,
Na tua condição de burro carrejão ?"

Soprava o vento dessecante.
Estavas em Assuão.
Nos píncaros do verão.
E nem sequer havia um gin tónico, refrescante.


Egipto, em cruzeiro pelo Nilo, 22-28 de agosto de 2004. 
Revisto em 16 de março de 2024.

______________

Nota do editor:

Último poste da série > 10 de março de 2024 > Guiné 61/74 - P25260: Manuscrito(s) (Luís Graça) (246): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte V: 3. Da medicina mágico-religiosa do templo de Epidauro aos atuais médicos de família