sexta-feira, 8 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4305: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (3): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (II Parte)

1. Mensagem de Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec Inf, Bafatá, 1968/70, com data de 2 de Maio de 2009:

Porto: 02MAI09

Caro Luís/Caro Carlos:

Com as agulhas acertadas e já em velocidade de cruzeiro, junto envio em anexo a 3.ª estória, 2.ª sobre Madina Xaquili - Parte 2.

ab
Fernando Gouveia



A GUERRA VISTA DE BAFATÁ

3 - UM ALFERES DESTACADO (DESTERRADO) EM MADINA XAQUILI COM UM CANO (SÓ O CANO) DUM MORTEIRO 60 - Parte 2.

Preâmbulo

Como referi anteriormente, na sequência do agravamento da situação no Cossé, fui destacado para Madina Xaquili, onde vivi uma experiência verdadeiramente inesquecível.

No Poste anterior – 4256 (1.º e 2.º dias dessa minha experiência), passei por Bambadinca, onde tive que ir para cima dum abrigo até à uma da manhã, por se estar à espera de um ataque (que por acaso foi no dia seguinte) e também por Galomaro onde não consegui dormir por causa das rãs.



Relato do 3.º dia – 14JUN69:

Nesse dia, bem cedo, lá seguiu uma coluna de uns três ou quatro Unimogs para nos colocar no último buraco habitado em direcção ao Corubal e a Madina do Boé, então já abandonada [, cinco meses antes, em 6 de Fevereiro de 1969].

Pelo caminho e, por indicação dos meus camaradas, tivemos que ir a uma tabanca, suponho que Umaro Cossé, encher uns garrafões com água, pois não se sabia com o que se contava em Madina Xaquili. Lá fui entabular conversações com o chefe da tabanca no sentido de nos fornecer o precioso líquido.

Cabe referir que duma maneira geral achei os nativos na Guiné sempre muito simpáticos e corteses. Não foi o que aconteceu em Umaro Cossé. Fiquei com a ideia que teriam água boa, mas a do poço que nos indicaram parecia leite, cal de pintar ou coisa assim. Dava a ideia que nos queriam despachar. Foi a água que levámos. Mais tarde, já em Madina e porque dispúnhamos de um filtro, essa água até se bebia. Mas era preciso limpá-lo constantemente.

Madina Xaquili vista de Sul (direcção de Padada). Em 1.º plano a lavra de mancarra do João

Chegámos a Madina Xaquili a meio da manhã. Era uma tabanca com umas 20 palhotas. Estava em auto-defesa, com cerca de 40 milícias, comandados pelo também africano João Vieira (sem Bernardo). Havia uma razoável cerca de arame farpado e abrigos construídos recentemente. A população civil (2 ou 3 famílias) e as mulheres dos milícias não tinham abrigos.

Um dos abrigos. Em segundo plano vê-se parte da antena dipolo que montámos

A coluna regressou a Galomaro e ali ficámos sós e isolados. O princípio da época das chuvas estava a deixar impraticáveis as picadas e, como não tardámos a verificar, o rádio que levámos, um daqueles que tinham um gerador manual e com os quais até se conseguia ligar de Bissau para Lisboa, só de dia conseguia contactar Galomaro e apenas em morse. À noite nem isso. Coisa estranhíssima, mas real, tendo em conta uma distância de uns 25 Km.

Estava a chegar o fim da manhã e havia muito a fazer.

Comecei por perguntar ao João Vieira que munições tinham para as suas armas, metade Mausers, metade G3. A resposta foi zero, zero. Tinham gasto tudo na caça e não podiam justificar um novo pedido pois nunca tinha havido contacto com o IN. Insólito… Peguei numa das suas armas e espreitei pelo cano. Estava completamente entupido. De acordo com o João, como aliás sempre aconteceu com as decisões a tomar sobre os problemas da tabanca, lá foram limpar as armas e municiarem-se.

Como havia palhotas vazias, o João indicou-no-las e instalámo-nos. O cozinheiro já sabia que tinha que fazer o almoço e o rádio-telegrafista andava às voltas com a instalação de uma antena.

A minha casa. Ao meu lado o Sajuma, que se viria a oferecer para ajudante de padeiro

A primeira refeição foi com o prato nos joelhos (ver foto) mas ao jantar, com umas tábuas, já se tinham improvisado, uma mesa, dois bancos e um coberto com folhas de palmeira.

A 1.ª refeição, ainda sem refeitório

Depois do almoço, acompanhado com cervejas a uns 30 ou 40 graus, dei as primeiras instruções:

1 – (só aos metropolitanos) Não iria tolerar problemas relacionados com sexo, até porque na tabanca só havia as mulheres dos milícias e nada de bajudas. Que fossem criativos, e foram, como mais tarde descreverei.

2 – (para todos) Quando se sentisse o ruído de viaturas ou de helis, toda a tropa se devia apresentar minimamente fardada e em passo de corrida. Imaginava que lá aparecesse o Caco, mas só apareceu o Cor Hélio Felgas, de heli.

3 – Enquanto não se construíssem latrinas dentro do arame, todo o militar que fosse à orla da mata levaria um camarada armado para lhe fazer a segurança.

A par disso, formei um grupo para fazer uma mesa e uns bancos e outro para começar a abrir o abrigo para o nosso precioso cano de morteiro 60 e suas 16 granadas. Ficou perto da minha palhota pois seria eu que o manobraria (em Mafra tinha tido a oportunidade de fazer bastantes disparos para um velho blindado que existia lá na Tapada).

Por mim, decidi, com a companhia do João, ir ver as cercanias e nomeadamente o local, fora do arame, onde as mulheres se abasteciam de água e lavavam a roupa, pois era urgente arranjar água de melhor qualidade.

A nascente de água onde as mulheres também lavavam a roupa

Fotos e legendas: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados


Já com o fim do 1.º dia a chegar, havia um turbilhão de ideias na minha cabeça sobre as medidas a tomar urgentemente, tanto mais que o rádio-telegrafista me veio informar que não conseguia estabelecer ligação com a sede da Companhia. Sabia, já do Agrupamento, que o IN estava a uns escassos 10 Km, que vim a confirmar mais tarde quando fiz uma operação na zona de Padada.

Antes do pôr-do-sol tomámos a 2.ª refeição preparada pelo nosso cozinheiro, um rapaz atestado, que já tinha estado na Legião Estrangeira. Já jantámos sentados à mesa improvisada, estando eu de calções. Só depois verifiquei que tinha sido massacrado pelos mosquitos. As minhas pernas tinham muitas dezenas de picadas. Passei um pouco mal.

Ver relampejar ao longe e a conversar com alguns milícias, sentado num tronco constituiu o prelúdio da minha 1.ª noite em Madina Xaquili.

Como era sabido, quase todos os ataques e flagelações na zona Leste, eram feitos invariavelmente ao princípio da noite por causa da retirada IN, como aliás aconteceria no 1.º ataque à tabanca, em 24JUL69. Bambadinca constituiu uma excepção pois a aproximação IN não podia ser feita de dia por causa da população Civil das imediações, afecta às NT. Assim sendo, este alferes, sabendo disso, às nove dez horas da noite, enfiava um pijama e dormia que nem um justo. Acho que nessa altura já estava apanhado pelo clima. Se fosse hoje dormiria de camuflado. Não me estou agora a ver ir operar o morteiro em pijama ou muito menos aparecer em Galomaro na mesma figura, o que poderia ter acontecido, como descreverei no último episódio desta estória.

Nos dois dias seguintes, iriam ser levadas à prática as medidas que não deixavam de fervilhar na minha cabeça, mas isso será tema para o próximo poste onde também contarei que desisti de construir latrinas por causa do meu poio que desapareceu.

Até para a semana, camaradas.
__________

Nota de CV:

Vd. os dois postes anteriores desta série>

28 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4256: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia (2): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60
27 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4254: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (1): Três oficiais: um General, um Coronel, um Alferes - suas personalidades

Guiné 63/74 - P4304: (Ex)citações (27): Lembrando a memória de meu tio Manuel Sobreiro, morto por uma mina (Nelson Domingues)

1. Nelson Domingues deixou um novo comentário no poste "Guiné 63/74 - P4296: Espelho meu, diz-me quem sou..." (*):

O texto de António Garcia de Matos, Alf Mil CCAÇ 2790 trouxe-me à memória as peripécias que o meu tio deve ter tido aquando da sua comissão na Guiné, o tal que montava, desmontava, cavilhava, descavilhava (**).

Infelizmente o meu tio perdeu o jogo das minas e armadilhas, porque nesse jogo do montar, desmontar, cavilhar e descavilhar, as formigas decidiram participar nele… e com isso não poderei ouvir histórias como esta.

Texto emblemático sobre a frieza e coragem de quem tinha a especialidade de minas e armadilhas, e ficou-me na retina a frase "O homem é um animal de hábitos e cai frequentemente no erro das rotinas."

Bem-haja António Matos

Guiné > Guileje > BART 1896 > CART 1612 (1967/69) > O Alf Mil de Minas e Armadilhas, Manuel Sobreiro, natural de Leiria, morto numa acidente com um granada defensiva, em Mampatá, em Fevereiro de 1968.

Em tempo

Pelas 22h e 11m de hoje, chegou mais este comentário de Nelson Domingues:

Caro António Matos,
Sou da geração pós guerra, e tive um tio que faleceu ao manusear uma mina, em 24 Fevereiro de 1968 na Guiné, ele era Alferes Miliciano com a especialidade minas e armadilhas, e criei um blogue em sua homenagem, onde descrevo a sua passagem na guerra, com o título As Verdades do Sobreirito, http://sobreirito.blogspot.com/.

Verdades, porque existiram muitas versões (verdades) sobre a morte do meu tio, e o sobreirito, porque era assim que o saudoso Zé Neto o tratava, e assim ficou, as verdades do sobreirito.

Respondendo às suas perguntas:

Interessa-lhe o tema da guerra do ultramar?
Que opinião formou já sobre o assunto ?
De que maneira lhe marcou a vida ?
Quantos familiares seus por lá passaram ? E onde ?


O tema sobre a guerra interessa-me porque permite conhecer o meu tio, a minha gente, o meu País que nunca conheci. Nada dou, e recebo muito….

Mas o que me marca a mim de uma geração que pertence ao pós guerra, é ter o privilégio de poder contactar seres humanos fantásticos como os senhores.

Não me esqueço que ao iniciar o meu blogue em 2007, pedi ajuda na descoberta das verdades do sobreirito, e o Sr. Luís Graça, abriu-me a porta e disponibilizou-me a informação, publicou um post e deu-me palavras de incentivo, foi a arte de bem RECEBER, confesso que pensei o oposto, pensei que as pessoas que lutaram na guerra, fossem pessoas corporativistas, egocêntricas… puro engano os senhores são amáveis, solidários, um património a homenagear.

Venho quase todos os dias espreitar o blogue, a vossa história, é minha história, e desde já agradeço o post do amável Carlos Vinhal, hoje publicado.

Um abraço amigo!
Nelson Sobreira Domingues

Comentário de CV:

Porque não tenho palavras para o qualificar, caro Nelson, deixo-lhe um bem haja e um obrigado pelas suas palavras.
__________

(*) Vd. poste de 7 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4296: Espelho meu, diz-me quem sou eu (2): António Matos

(**) Sobre a morte do Alf Mil Manuel Sobreiro, vd. postes de:

14 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1849: Quero prestar a devida homenagem ao meu tio, o Alf Mil Manuel Sobreiro, da CART 1612, morto em Mampatá em 1968 (Nelson Domingues)

20 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1861: Homenagem ao meu tio, Alf Mil Minas e Armadilhas, Manuel Sobreiro, do BART 1896 / CART 1612 (Nelson Domingues)

6 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2160: Militares mortos em campanha, no sul, entre Fevereiro de 1968 e Janeiro de 1969 (J. C. Abreu dos Santos), onde se pode ler:

Resumo de baixas mortais ocorridas em 24Fev68-27Jan69 no sul da Guiné (Mampatá, Mejo, Quebo, Guileje, Gandembel, Ponte Balana)– sábado 24Fev68 † MANUEL DE JESUS RODRIGUES SOBREIRO nascido em 1942, na freguesia de Souto da Carpalhosa, concelho de Leiria Alf Mil Art M/A, 2ºCmdt da CART 1612/BART 1896-RAP2 (a 6 meses do final da comissão); morre em «acidente» com deflagração de granada defensiva, na região de Mampatá.

5 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3174: Em busca de... (38): Causas da morte do Alf Mil Manuel Sobreiro (Mampatá, 1968) Parte I (José Martins)

7 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3182: Em busca de... (38): Causas da morte do Alf Mil Manuel Sobreiro (Mampatá, 1968) Parte II (José Martins)

Vd. último poste da série de 7 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4297: Comentários que merecem ser postes (5): Falando da condição feminina e das enfermeiras pára-quedistas (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P4303: Convívios (123): 20º Almoço Convívio da 1ª Cia. do BCAV 8323, no dia 30 de Maio de 2009, em Anadia (Amilcar Ventura)


O 20º Almoço Convívio da 1ª Companhia do Batalhão de Cavalaria 8323 vai decorrer no dia 30 Maio 2009, em Anadia, nas Caves Aliança.
O local de reunião será junto às Caves Aliança, na Rua do Comércio, nº 444 – Sangalhos -, pelas 10,30h.
A confirmação deve ser feita até o dia 22 de Maio de 2009, para o José Tomás Fernandes, Rua N.ª Srª Misericordia, nº 10 - Ferreiros, 4705 -315 Braga.
Contactos: 253 672 374 (das 9.00 às 18.00 Horas), 964 241 854 (Paula), ou 253 673 929 (a partir das 21.00 horas).
Amilcar José das Neves Ventura
__________
Nota de MR:

Vd. último poste da série de:

7 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4302: Convívios (120): Pessoal da CCS DO BCAÇ 3872, Confraternizou no dia 3 de Maio de 2009, no Cartaxo (Juvenal Amado)


Guiné 63/74 - P4302: Convívios (122): Pessoal da CCS DO BCAÇ 3872, Confraternizou no dia 3 de Maio de 2009, no Cartaxo (Juvenal Amado)


Almoço da CCS do BCAÇ 3872 no Cartaxo
A CCS do BCAÇ 3872 levou a efeito no passado dia 03.05. 009 o seu almoço e convívio no Cartaxo.
Um belíssimo dia de sol contribuiu, sobremodo, para que a festa fosse óptima.
Apareceram camaradas, que nunca tinham participado, tais como o ex- Alferes Médico Rui Vieira Coelho (que substituíu o médico Pereira Coelho) e o também ex-Alferes de Transmissões Mário Vasconcelos, (que substituiu o Alferes Mota após a morte deste).
Na classe dos ex-sargentos o furriel Adão também participou pela primeira vez.
Estes camaradas levaram um largo espólio fotográfico, que na devida altura porei à disposição do blogue.












Caramba, esposa e a minha mãe - Dois camaradas do Dulombi












De pera o ex-Alferes Médico Vieira Coelho, à sua esquerda o ex-Alferes de Transmissões Vasconcelos e, de bigode, o ex-Furriel de Transmissões Marques - A partir da esquerda: o pessoal das Transmissões - Sousa, Vasconcelos e Silva, e o Sardeira que foi condutor da água.













Silvestre, Costinha e Alfredo Estufa - A partir da esquerda: o ex-Alferes Vasconcelos e os Furriéis Marques, Adão (Escriturário) e o Aurélio (Sapador).
O MENU, muito variado, contou com a seguinte ementa:
1º Prato de..................................................reencontro
2º Prato de..................................................emoção
3º Prato........................................................convívio
Bebeu-se o vinho.........................................da alegria
Teve-se como sobremesa um....................brilho nos olhos
O café.............................................................já saudade
Na despedida, foi servido um licor amargo e doce de: até para o ano.
Foi com esta variedade de pratos, todos superiormente confeccionados, que decorreu o nosso almoço onde participaram alguns camaradas do Dulombi, Saltinho e outros convidados.
As fotos deixam bem expressa a alegria que reinou neste repasto.
Um abraço,
Juvenal Amado

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4301: In Memoriam (22): Carlos Rebelo, a última batalha (Abilio Machado, ex-Alf Mil, CCS / BART 2917, Bambadinca, 1970/72)


Viseu > 16 de Abril de 2008 > O Carlos Rebelo no último convívio do pessoal da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72). Na mesma mesa, assinalado com um rectângulo a verde, o Abílio Machado (*).

Fotos:© Benjamim Durães (2009). Direitos reservados


1. Mensagem do Abílio Machado, ex-Alf Mil, CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72):


Caros amigos:

O Carlos Rebelo jaz agora em descanso (**).
Finalmente.
O seu rosto sereno diz a quem o vê
que ele precisava de descansar.
O filho, Carlos Filipe, disse-me ontem
que esta foi uma guerra dura.
A segunda da vida.
Não a perdeu.
Foi descansar.
O Rebelo foi sempre um homem inquieto,
curioso,
informado,
interventivo.
Assim foi até ao fim.
Não o esqueceremos .

Um abraço a todos,
Abílio Machado (***)

__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste do 16 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2847: Convívios (57): CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72): Viseu, 26 de Abril (Jorge Cabral)

(**) Vd. poste de 6 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4291: In Memoriam (21): Faleceu hoje o nosso camarada Carlos Rebelo, ex-Fur Mil, CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) (Benjamim Durães)

(***) Vd. postes de:

7 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3579: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (7): A Toque de Caixa, com o Abílio Machado, ex-baladeiro de Bambadinca (Luís Graça)

17 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1763: Quando a PIDE/DGS levou o Padre Puim, por causa da homília da paz (Bambadinca, 1 de Janeiro de 1971) (Abílio Machado)

29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1635: Amigos, enquando vos escrevo, bebo um Porto velho à nossa saúde (Abílio Machado, CCS do BART 2917, Bambadinca, 1970/72)

28 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1631: À amizade (Abílio Machado, CCS do BART 2917/ Humberto Reis, CCAÇ 12)

13 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1520: Bambadinca, CCS do BART 2917: Alferes Abílo Ferreira Machado, o Bilocas da Cooperativa (Humberto Reis)

Guiné 63/74 - P4300: Ser solidário (35): Criação da Associação Portuguesa de Apoio Cultural e Económico à Guiné-Bissau (Zé Carioca)

1. Mensagem de José António Carioca, ex-Fur Mil da CCAÇ 3477, Guileje, Nov 1971/Dez 1972, com data de 7 de Maio de 2009: 

Caro Luis 
Tenho contactado com o Zé Teixeira sobre o assunto em referência. Antigamente usava o meu número de conta para a recolha de verbas enquanto a Associação (APAG) não estava devidamente regularizada. Entretanto fui dando mais importância ao trabalho de desenvolvimento dos projectos que tinha em mente, por vezes havia dificuldade em juntar as pessoas no mesmo dia para registar a dita Associação, até os documentos já tratados, por serem provisórios, perdiam a validade. Agora sim, isto está no rumo certo e, mais uns dias, já te posso enviar o número de conta da Associação que se passa a chamar APACEG (Associação Portuguesa de Apoio Cultural e Económico à Guiné-Bissau). 

Obviamente que agradeço àqueles que depositaram confiança em mim quando no ano passado depositaram dinheiro na minha conta particular para que pudesse comprar as sementes (*). Com a APACEG toda a gente pode contribuir com uma cota mensal ou de qualquer outra maneira, e a responsabilidade é de várias pessoas. 

Estou neste momento também a desenvolver um peditório de livros pelas escolas da minha zona, roupas e outros artigos que possam ser úteis para ajudar o povo da Guiné, brevemente te darei mais notícias e todos os dados para que se quiseres divulgar no blogue. 

Um abraço 
José Carioca

  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Iemberém > Simpósio Internacional de Guileje > Visita ao sul > 2 de Março de 2008 > Três homens com um ar de felicidade... Ei-los aqui fotografados com um tesouro, a estatueta, em metal, da santa protectora dos Gringos de Guileje, encontrada nas escavações arqueológicas do antigo aquartelamento de Guileje... Da esquerda para a direita os valorosos representantes da penúltima unidade quadrícula de Guileje, a CCAÇ 3477 (Nov 1971 / Dez 1972): José Carioca, Abílio Delgado e Sérgio Sousa... O Zé Carioca é actor de teatro (amador?) e sei que vive em Cascais.
 __________ 

Notas de CV: (*) 

Guiné 63/74 - P4299: Histórias de Juvenal Candeias (1): Pirofobia ou a mina que não rebentou por simpatia


Mina antipessoal PMD-6



Mina anticarro TM-46 

 Fotos de David Guimarães e Carlos Vinhal (editadas por Carlos Vinhal)

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 Nota de CV: 



1. Mensagem de Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde, 1971/74, com data de 7 de Abril de 2009: 

 Caro Luís Graça, 

Espero que estejas bem! Não sei se ainda te lembras de mim, mas trocámos mails aqui há algum tempo, a propósito de alguém que o Nuno Rubim procurava! Na altura pediste-me para escrever alguma coisa sobre a minha experiência na Guiné! Acho que já tanta gente escreveu sobre a Guiné, com mais conhecimento do que eu, que não tive coragem!... 

Contudo, os meus filhos insistem há algum tempo, para que escreva algumas historietas, daquelas que eles sempre gostaram!... Comecei, então, a escrever, para eles... Não sei se vês algum interesse neste estilo, mas envio-te um dos textos para analisares! Se tiveres interesse, depois mando mais! Se não... não deixo de ser teu amigo! 

 Um grande abraço. Juvenal Candeias 

  PIROFOBIA 9 Março 1972 

 Cacine: derradeira povoação importante a Sul da Guiné, situada na margem esquerda do rio com o mesmo nome. Predomínio da população de etnia Nalú, convivendo com minorias Sossas e Fulas. Os Sossos, embora minoritários, tinham levado à Sossização dos Nalús, processo de aculturação que consistiu na adopção do dialecto Sosso e na conversão ao Islamismo da quase totalidade da população Nalú, que era feiticista. 

Daqui derivou a instituição do casamento por compensação e a abolição do casamento por troca. A repressão na arte Nálu, fez-se igualmente sentir, dado que o Islamismo proibia qualquer representação figurativa. À época, Mussé Camará era o único artista de arte Nalú existente em toda a Guiné e alguns dos seus maravilhosos exemplares de estatuária de madeira podiam ainda ser apreciados em Cacine, com procura elevada, mesmo do estrangeiro! 

 Cacine constituiu a base da Companhia de Caçadores 3520, um agradável aquartelamento à beira-rio, onde as casernas se distribuíam entre coqueiros, mangueiros e laranjeiras. Daqui saiu em 9 de Março de 1972, numa manhã fresca da época seca, em que, parece impensável, o frio entrava pelos ossos, um Gr Comb reforçado com uma Secção de milícias,  nativa! 

 A missão era simples, uma patrulha de rotina, ao antigo quartel de Cacoca, mesmo na fronteira com a República da Guiné-Conacri. O aquartelamento de Cacoca tinha sido desactivado há anos, dado o seu isolamento e provável ausência de interesse estratégico, mas as construções não tinham sido destruídas, não voltasse o interesse em reactivá-lo! 

 Pelas 7,30h iniciou-se a coluna auto até ao destacamento de Cameconde, donde a patrulha continuou a pé, por picadas e trilhos – a floresta era inexpugnável, salvo à força de catana, mas a uma velocidade que não ultrapassava alguns (poucos!) metros por hora! 

 O caminho foi lento, seguro e silencioso, interrompido, aqui e ali, pela algazarra dos macacos, em especial a ladração dos macacos-cão, o cantar dos periquitos e outra passarada, a rastolhada de javalis e porcos-espinho ou a corrida furtiva das gazelas! 

 Por volta do meio-dia, com o calor equatorial a fazer-se já sentir com intensidade, a segurança é montada para dar lugar ao almoço! Almoço? Que exagero! Quem pode chamar almoço ao conteúdo de uma ração de combate? Se bem me lembro… uma lata de chouriço, uma bisnaga com creme de sabor indefinido para barrar no pão, uma sobremesa constituída por gomas açucaradas e saborosas, um comprimido de café… e algo mais que a memória (oh! que tristeza, para onde foste?) já não me permite recuperar! 

 De novo a caminho, que Cacoca já não estava longe, sendo atingida por volta das 14 horas! A paisagem era desoladora! Qual farwest! Ao fundo os edifícios em completa ruína, antes deles a pista de aviação, de terra batida e completamente esburacada, o capim a crescer por todo o lado!... O tempo de observação foi curto… alguém clamou… miiiiiina! 

 A mensagem passou rápido, da frente para trás, e toda a gente parou, instalando-se em posição de defesa! Os especialistas na matéria, entre os quais o graduado dos milícias, Sarifo de seu nome, mas popularmente conhecido por “Xerife”, para quem as minas eram como ratoeiras, tal a facilidade com que as levantava, avançaram, de pica em riste, pesquisando o terreno que iam pisar! 

 O prémio era tentador! O Estado pagava 1000 pesos (o escudo da Guiné!) por mina anti-pessoal levantada, 3000 por mina anti-carro. Boa oportunidade para aumentar os parcos rendimentos! E afinal… não era apenas uma mina, havia mais, tratava-se de um campo de minas, instalado na pista de aviação, ao que consta por rumores chegados ao PAIGC de que os tugas iam reactivar o aquartelamento de Cacoca! Ai! A contra-informação a funcionar!... 

 Tratava-se, pois, de trabalho mais exigente a que, de imediato, deitámos mão!... As minas, a maioria antipessoal PMD6, foram progressivamente levantadas, mas algumas tinham surpresa, isto é, uma anticarro TM46 por baixo da antipessoal, o que, naturalmente, demorou a acção! 

 Numa destas situações, depois de levantada a antipessoal, pareceu que a anticarro estaria armadilhada, pelo que o seu levantamento provocaria o rebentamento imediato! Optou-se por não a levantar e proceder ao seu rebentamento no local! Espetou-se um pau no chão, junto à mina, no qual seria presa uma granada ofensiva, cuja cavilha seria puxada à distância, com uma corda… que ninguém tinha levado! 

 Nada estava perdido! Há sempre um mestre na arte da improvisação e alguém se lembrou que para o efeito seriam suficientes as ligaduras do cabo enfermeiro, que rapidamente chegou ao local! Presa a ligadura à cavilha da granada e escondido o mestre da improvisação atrás de um bagabaga (forte construção de terra feita por formigas), foi só puxar a ligadura e… só rebentou a granada! A mina tinha apenas o sistema de detonação danificado, pelo que se exigia uma segunda tentativa!... Não se consumou! O barulho da granada atraíra duas sentinelas avançadas do PAIGC, que foram vistas nas ruínas do quartel – atrás do quartel era a República da Guiné – o que nos obrigou a abandonar o campo de minas e a tomar posição defensiva e segura!  Tratava-se apenas de sentinelas avançadas que fugiram, não havendo qualquer contacto! 

 O caminho de regresso foi tranquilo, com alguns sorrisos irónicos em relação ao Xerife, que transportava as minas em pilha, à cabeça, como se transporta em África qualquer produto! Voltaríamos a Cacoca, mas isso é história para outra oportunidade! 

 O final foi feliz, com os milícias a aumentarem os seus rendimentos e o pessoal da companhia a beber algumas Sagres suplementares! A patrulha dava pelo nome de código PIROFOBIA! Para que conste… ninguém teve medo do fogo!

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Nota de CV:

Vd. poste de 6 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4294: Tabanca Grande (136): Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde (1972/74)

Guiné 63/74 - P4298: História da CCAÇ 2679 (17): A última partida e Unimog sublimador (José Manuel Dinis)

1. Mensagem de José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 29 de Abril de 2009:

Caros Editores, Carlos em especial.
Aproxima-se a partida de um Corpo expedicionário, com a ilha da Madeira por destino, onde terá como missão, a consolidação das relações entre aquelas gentes autóctones e os continentais. Trata-se de um Corpo bem preparado, com afinada pontaria aos pratos, e sobejas provas dadas na actividade decilítrica, com cursos, estágios e farta experiência em diferentes redutos. Espera-se, legitimamente, o reforço dos laços de solidariedade entre os participantes, oriundos daquela CCaç dignos de Cabrais e quejandos, que cimentaram as boas práticas, partilhando a água da bolanha.

Assim, dia um, pelas catorze horas, ficam informados os indefectíveis admiradores e admiradoras, de que o ponto de encontro é na nova gare de embarque do aeroporto da Portela. Se entre os bloguistas alguém quiser enviar queijos, paios ou presuntos para algum destino daquela Pérola, ofereço-me como portador.

Carlos, sei que ficas triste, mas a tua ocasião há-de chegar. E vamos à História.
Abraços fraternos


A Última Partida

De regresso a Piche, pensava voltar ao quotidiano, à vida alternativa que me impunha, noite sim, noite não, passar no mato ou no aquartelamento. As noites no aquartelamento significavam grande descontração, mau grado aquela pequena possibilidade de termos que sair inopinadamente. Depois de jantar, aproveitava-as para debicar uns gins até à ceia, enquanto lia ou conversava com os camaradas que aportavam à suite três, ou escrevia à namorada se me sentia de imaginação fértil, ou tomava apontamentos no meu diário, quando não me estendia na cama em busca de sonhos que me alimentassem a vida. Nada de especial, portanto.

Já aperitivado de gins chegava a ceia, composta, como usualmente, pelo cabritinho mais as batatinhas assadas no forno, que regávamos copiosamente com vinho branco-sêco do Rêno, cerveja Super-Bock ou dois-éme, até que, por fim, era a vez da parafernália de digestivos, bebidas para aconchegar o estômago, mas, também, para espairecer, como quem levita sobre um ninho de cucos.

Dos Antiquary e Monks, até aos Courvoisier e Napoleão, a sêco, ou com Perrier, negócio estranho que dispensava a nacional água Castelo, tudo bebidas que tinham o magnífico efeito de estimular raciocínios e conversas, porque nessas ocasiões não há matéria que não sirva uma boa discussão, ou estimulavam o sono retemperador do quebranto.

As paredes forradas de coelhinhas da Plyboy, convidavam aos brindes que, às vezes, traduziam-se em distintas bebedeiras, com o paradoxal efeito da aumentar a sede à medida que mais se bebia.

Uma destas noites aconteceu uma flegelação ao destacamento de Cambor, e nós colocámo-nos nas traseiras do edificio dos quartos, de onde assistíamos aos relâmpagos dos rebentamentos e ouvíamos distintamente a balbúrdia de tiros e deflagrações. Tinha bebido uns copos, não estaria muito católico, e o Branco da Silva referiu-se-me assim:

- Aqueles gajos já têm um morto, e tu estás tão bêbado que não podes lá ir ajudá-los.

Mas quero referir-me à última noite de pocker.

Reunimo-nos no quarto do capelão, homem prudente, que encavava cem paus em cada jogada, raramente ganhava, mas permitia-lhe estar sempre pronto para a jogada seguinte. A coisa corria com normalidade. Por entre o fumo espesso e a bebida toldante, cada um prestava atenção à sucessão de cartas, às alterações faciais de cada parceiro, à projecção de cartas que detinham, e estudavam-se pequenas alterações de expressão, que denunciassem o bluff como a confiança. Passadas algumas jogadas, já tinha um peculiozinho.
Até que numa jogada, baldados os parceiros a jogo, resto eu e o Zé Tito. Sobre a mesa estaria qualquer coisa como dois contitos, verba interessante para premiar quem tinha um fullen de ases por reis. Fazíamos as caves de cem paus, e apostávamos mais cem. Já sentia o dinheiro no bolso. O Zé, também igualava e aumentava, algo indiferente, como quem faz bluff, enquanto eu regozijava.

Este maluco vai ficar em cuecas, pensava para comigo. A minha confiança aumentava. Ele não podia ter pócker, a avaliar pelas cartas já vistas, nem o royal street. O gajo está doido, cogitava. Debicava no whisky e aumentava a aposta. Em redor era a espectativa. Estariam, entretanto, uns cinco contos em jogo (na moeda de hoje, cerca de vinte e cinco euros), quando o Zé pagou para ver. Alarve, atirei com as cartas referindo vitoriosamente azes-por-reis. Bom jogo o meu. O Tito, por cima dos óculos, ainda voltou a olhar e a identificar as cartas e, quando me preparava para arrecadar a massa, quase timidamente, ele anunciou que tinha uma sequência. Não podia ser! Mas era.

Fiquei muito envergonhado comigo mesmo, porque tinha identificado o poder da alienação que o jogo exerce. Eu não queria só ganhar. Também queria deixá-lo na penúria.

O Zé Tito aos comandos e eu no lugar do pisteiro, levamos o Unimog por caminhos indizíveis.

O Unimog sublimador

1 -
Com a nossa energia levávamos o Unimog para todas as direcções, em viagens delirantes de sonho e libertação. Facilmente passávamos os obstáculos, tanto na floresta, como na savana. A paisagem passava sem lhe atribuir grande importância. Era a transição. Um dia chegámos ao principado do Mónaco, onde fomos recebidos pelan princesa Grace e as suas lindíssimas filhas. O ambiente esplendoroso foi cortado pela voz macia e delicada da princesa:

- Tomem-nas e partilhem, que elas são boas para partilhar e vão sentir-se muito recompensadas pela satisfação que vos derem.

Em redor, as graciosas cortesãs pareciam suspirar, e contribuíam para ganharmos o céu.
No dia seguinte levantei-me com um sol radioso. Fui à varanda do palácio, e deparei-me com as soberbas montanhas a deslizar como um reposteiro, suavemente, sobre as águas claras do mar. O jardim conferia uma atmosfera cheia de romantismo, e fazia-me pujante. Abaixo da varanda, o casario do principado, pigmentado por árvores e jardins, onde se destacavam construções de elevado recorte arquitectónico, bordejava o litoral até às docas, onde a alvura dos iates pontilhava com estrelas flutuantes.
A terra imponente abraçava o Mediterrâneo, de onde ouvíamos cânticos de apelo ao regresso a África. Por entre os aplausos de esbeltas criaturas, atingimos a costa do outro lado, atravessàmos o deserto até à Guiné, sempre acompanhados de ossanas amorosas.
À chegada corri para o duche, e lavei-me da pomada de poeira levantada da picada, qual creme nas faces transpiradas.

2 - Outra vez, o Unimog deu-nos asas para irmos buscar duas jornalistas italianas, que tinham por objecto reportar a nossa guerra. Eram jovens, em princípio de carreira, uma loira, outra morena, muito bonitas e comunicativas. Entendiamo-nos num misto de franciulano e portonhol. Por momentos sentia comichão na cara, provocada pelo roçar suave dos seus cabelos finos e perfumados. Era o céu no chão fula. Sentia-me nas nuvens.

No caminho, pela picada, fomos emboscados e atirámo-nos para o chão arenoso, como primeira medida de defesa. Sob o cantar ameaçador da metralhalha, as delicadas repórteres agarravam-se-me na procura de protecção. Com alguma dificuldade a manusear a arma, consegui repelir o ataque, do que resultou uma grande alegria. Ali estávamos os três abraçados, e elas abriram-se com beijos e carinhos de sonho.

Mais tarde, depois de nos despedirmos, relatei à minha namorada esta acção humanitária, gloriosa e fantasiosa, e o tiro quase me saíu pela culatra, ruída que ficou pelo ciúme, reforçado pela distância de milhares de quilómetros, e pela relativa ignorância das oportunidades que tínhamos na terra fula, onde, parecia, eu levava uma vida de deleite e facilidades.


3. Comentário de CV:

Caro José Manuel, só um pequeno aparte para te dizer que não está descartada a hipótese de festejarmos no próximo ano, na Pérola do Atlântico, os 40 anos da saída da CART 2732 do Cais do Funchal, com destino à Guiné. Também irá daqui uma delegação bem representativa dos Continentais para confraternizar com aqueles excelentes e inesquecíveis camaradas de armas.
Oxalá se concretize.
Já agora, uma pergunta. Vocês organizaram-se, de algum modo, quanto à viagem de avião?

Parabéns pelas tuas histórias de hoje, tanto a do jogo de Poker, como as do Unimog sublimador são fantásticas.

Um abraço
CV
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4167: História da CCAÇ 2679 (16): Casais fiéis e solidários (José Manuel Dinis)

Guiné 63/74 - P4297: (Ex)citações (26): Falando da condição feminina e das enfermeiras pára-quedistas (Luís Graça)

1. Caros camaradas, desculpem lá, mas interrompi outras coisas que estava a fazer, porque ao ler este comentário do nosso Editor-mor, não pude deixar de o publicar.
Esta lição que o Professor Luís Graça nos ministra até é de borla. Aproveitemos.

Recorrendo à série, por mim criada, Comentários que merecem ser postes, aqui vos deixo as doutas palavras do Chefe.
CV

2. Comentário de Luís Graça ao poste
Guiné 63/74 - P4295: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (9): O dia-a-dia de uma Enf.ª Pára-quedista na Guiné (Giselda Pessoa):

Obrigado, Giselda, por teres querido e sabido responder, com tanta franqueza quanto elegância, às perguntas directas, chatas, quiçá até um pouco voyeuristas do editor-mor do este nosso blogue...

Não é defeito de sociólogo, é feitio, é saudável curiosidade, é querer saber para poder também responder a perguntas que seguramente já fizeram os nossos tabanqueiros...

Começo por sublinhar que continua a ser, para nós, uma honra e um privilégio ter-te nas nossas fileiras, sempre atenta e empenhada, embora discreta...

Muito obrigado pelo teu testemunho, pelo teu depoimento sobre o vosso quotidiano em Bissau e no resto do CTIG...

Deixa-me elogiar-te a tua memória e o teu talento para contar histórias, mais uma vez aqui comprovado.

Adorei esta, que traduz muito bem como vocês se integraram e foram integradas na Força Aérea. Cito o teu poste:

(...) "Para mostrar a empatia existente, dou um exemplo curioso: Dirigia-me a pé para o Grupo Operacional quando passa por mim, a grande velocidade, um jipe com vários pilotos. Vejo o jipe dar a volta e travar bruscamente ao meu lado:
"- Anda daí depressa que já estamos atrasados!

"Pensando que se tratava de uma evacuação meti-me no jipe, mas acabei por perceber que nos dirigíamos ao terminal civil. Quando lhes perguntei o que se passava, explicaram-me que iam ver o avião da TAP que estava a chegar. Argumentei que tinha mais que fazer que ir ver a chegada do avião, pelo que um tentou esclarecer-me:
"- Vamos lá ver as mulheres (as hospedeiras de bordo...) que vêm no avião!.
"- Mas eu também sou uma mulher!, disse eu. E retorquiu-me o outro:
"- Eh pá, tu és igual a nós!"
... (...)

Uma delícia de história, short story, daquelas que eu gostaria de saber contar e a que costumo chamar histórias com mural ao fundo...

Os grupos humanos são exogâmicos, os machos saiem para fora do círculo íntimo do clã ou da família alargada para acasalarem... E as fêmeas funcionam como um bem precioso e raro, constituem uma verdadeira moeda de troca... Daí o dote, o dom, a recompensa, as reparações materiais e simbólicas a que tem direito ao pai da noiva...

E daí também o tabu do incesto... A interdição do desejo dos machos em relação às fêmeas do seu inner circle... As minhas filhas e as minhas irmãs são para eu dar a outros homens, de outros grupos, não são para mim... Por que o casamento é (era) um negócio, uma troca, uma aliança entre dois grupos que reforçam assim, pela cultura, pela economia e pelo parentesco, os seus laços...

Tudo este caldo de cultura socioantropológica para te dizer que é magistral a resposta dos teus matchos:
- É, pá, tu és igual a nós. A gente quer é cocar as gajas da TAP...

Se calhar era nas subunidades do exército, no mato, que havia uma atitude mais machista e marialvista em relação a vocês... Quando vocês apareciam no final de operações, para uma curta visita, para descansar ou tomar uma refeição...

As minhas recordações de Bambadinca têm mais a ver com esses breves momentos em que vocês eram verdadeiras estrelas na parada, e os tais matchos (do tenente-coronel ao major, do capitão ao alferes...) se desdobravam em salamaleques, disputando o vosso lado esquerdo, enquanto se atropelavam uns aos outros e vos encaminhavam para o bar...

Afinal, sempre fomos um país de cavalheiros... E no entanto é preciso lembrar que as primeiras enfermeiras pára-quedistas tinham obrigatoriamente que ser solteirinhas e boas raparigas, com robutez física, bom comportamento moral e teor de vida irrepreensível (sic)... Quando muito, podiam ser viúvas, sem filhos... Viuvinhas, alegres, ma non troppo...

Não seria tanto por serem pára-quedistas, mas sim por serem enfermeiras, mulheres... Deixa-me recordar aqui que foi em plena II Guerra Mundial, no auge do Estado Novo, que se começou a dar início à modernização do ensino e da prática de enfermagem, com o D. L. n.º 32612, de 31 de Dezembro de 1942.

No entanto, este diploma legal veio impor uma medida que alguns especialistas dos estudos de género (historiadores, sociólogos...) consideraram infamante: a proibição de casar...

No mínimo, era uma medida sexista, obscurantista, discriminatória, que só se aplicava às mulheres, e que só será revogada mais de vinte anos depois (D.L. n.º 44 923, de 18 de Março de 1963). Em suma, a enfermeira ainda não era uma verdadeira profissão, mas uma vocação, embora secular...

Sabemos que as enfermeiras pára-quedistas foram um corpo estranho ao Exército. E que foi a Força Aérea a abrir, em 1961, no início da guerra de Angola, as suas fileiras às mulheres (curiosamente por mão de um homem hoje classificado como ultraconservador, o Kaulza de Arriaga).

Historicamente é um exemplo pioneiro... Mas há ainda uma pergunta que eu ainda te queria fazer, desculpa lá estar a ser chato e abelhudo: essa proibição (de casar) ainda se mantinha, no teu tempo (1972/74) ?

Um chicoração. E um Alfa Bravo para o teu matcho.
Com humor e camaradagem,
Luís
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4216: Comentários que merecem ser postes (4): Homenagem à memória do Capitão Pára-quedista João Costa Cordeiro (João Seabra)

Guiné 63/74 - P4296: Espelho meu, diz-me quem sou eu (2): António Matos

O António Garcia de Matos, Alf Mil CCAÇ 2790, Bula, 1970/72 (*) ... Dois momentos, duas fotos: o Matos, acabado de chegar à Guiné (foto de cima), e depois a meio da comissão... (Já completamente apanhado do clima...)

O nosso camarada Matos, na Guiné, era um homem que brincava com o fogo, um sapador, o tal das minas e armadilhas ( o terror de qualquer infante, de um lado e do outro), o tal que montava, desmontava, cavilhava, descavilhava... Felizmente regressou inteiro... Mas deixou lá dois anos de vida (só ?). Ei-lo aqui ao espelho, fazendo a sua autoscopia... Mais um texto de antologia do nosso blogue (entre centenas que temos publicado)... Obrigatório ler para quem quiser conhecer, do lado de cá do monitor, a angústia do sapador em acção... Um abraço para o António Matos e outro para o Luís Faria, que felizmente regressaram para contar aos filhos e aos netos essa estranha história de gente que aos 20 anos andava em cima do fio da navalha (quer eu dizer, da faca de mato)... (LG)


1. Mensagem do António Matos:

Meus caros editores,

Após o desafio do Luís Graça, aqui está uma pequena contribuição minha para o tema (**).
Anexo 4 fotos:

(i) Uma de quando cheguei à Guiné;

(ii) outra a meio da comissão, no campo de minas;

(iii) uma outra da mina descrita no texto;

(iv) e finalmente outra da actualidade.


Façam como entenderem melhor no seu aproveitamento.

Embora ande por aí um texto meu por publicar, gostava de pedir que este fosse mais rápido por uma questão de actualidade com o pedido do Luis.

Se puder, óptimo !

Se tiver que ultrapassar outros textos, .... óptimo !

Se não puder ... Stº António !

Um abraço,
António


2. Espelho meu, diz-me quem sou eu (2) > António Matos


Um dia, vejo-me de faca de mato em riste, camuflado desbotado de tanta lavagem ter suportado, olhando para o céu como que a implorar capacidade de compreensão da situação do momento, rodeado de alguns camaradas mais absortos uns do que outros, numa missão cujas consequências não nos era dado reflectir ainda que as alterações comportamentais pessoais viessem a ser extremamente condicionantes do que seria de supor se se observassem, exaustivamente que fosse, as apetências que o nosso ADN deixaria antever.

Em menino também fui dos que brinquei ao Zorro e ao Tonto (eu era o Zorro !), ao David Crocket, ao chefe da Brigada Montada, ao Major Alvega e neles via os heróis, os justiceiros, os aventureiros que queria imitar...

Eram saudáveis as lutas que travava de espada (de madeira e numa imitação de O Pirata Vermelho protagonizado pelo Burt Lancaster ) ou aos cowboys onde o cavalo mais não era do que o som imitativo dum galope (às vezes umas relinchadelas ) e a postura se assemelhava ao do equídeo a correr numa cadência de trote...

De quando em vez o nosso quintal que dava vida aos desfiladeiros do Grand Cannyon, transformava-se em palco de tiroteio de TÁTÁRÁTÁTÁ TRRRRRÁÁÁÁÁÁ e discutíamos acerrimamente que “tu já morreste !”, “eu acertei-te !”, “tens que morrer !”

Depois começava a escurecer e regressávamos a casa para jantar e fazer uma sabatina com o pai sobre tabuada ou os rios de Portugal...

Um dia, a faca do mato de lâmina afiada, emparelhando com objectos detonantes que não se destinavam às lutas do faz-de-conta, transportava-me para uma realidade abjecta e da qual eu participava activamente, calculando, milimetricamente, a colocação mais adequada do engenho para potenciar a sua eficácia destruidora ….



E ali estava eu, confrontado com o mata-ou-safa-te, não discernindo capazmente entre o Bem e o Mal, o Dever e o não-Dever, entre o conceito de Humanidade e o de não-Humanidade que uma guerra gera ….

E eis-me estupidamente no meio dum mato, a colocar minas estrategicamente pensadas, de acordo com sofisticadas tácticas de destruição, separadas a distância rigorosa umas das outras, numa densidade de penetração no terreno tal que não permitia a veleidade de alguém atravessar aquela zona sem accionar, pelo menos, uma delas...

E eis-me a esboçar um sorriso cada vez que concluía a montagem de mais uma, num claro sinal dos efeitos da guerra na integridade intelectual e psicológica dum menino de 22 anos obrigado a ser homem rapidamente, custasse o que custasse !

- PUM !
- Ah foda-se ! O que foi isto ?

O coração saía pela boca tal a pulsação perante o inesperado rebentamento.

- O que foi, porra ?

Desta vez o caso não foi grave. Tinha sido um macaco que acionara a mina e ficou espalmado no terreno.

Porém, a extrapolação do espectáculo para um cenário cujos protagonistas fossemos nós, criou reacções de grande constrangimento e os efeitos psicológicos não tardaram a aparecer.

O homem é um animal de hábitos e cai frequentemente no erro das rotinas.

Havia que lutar contra esse inimigo o que não era fácil pois a minha situação (como a de todos os outros, diga-se) ao estar envolvido com as “mãos na massa”, não me permitia controlar o pelotão que, entretanto, fazia a segurança.

Essa tarefa era passada para os outros graduados do grupo mas ficava-nos sempre o aperto no peito ao imaginar que as tais regras básicas de segurança pudessem ser alijeiradas .

O dia acabava para aquela equipa passadas que estivessem cerca de 3 ou 4 horas ou se, por outro lado, houvesse um acidente.

Nessa altura seríamos imediatamente recolhidos para tentarmos lavar as más imagens.

É, pois, fácil de imaginar a alteração do estado de estabilidade emocional de cada um. A cada passo, e para não baixarmos a guarda, dava-se mais um acidente e mais um e mais outro...

Tenho para mim que foi a prova mais difícil em toda a minha vida onde tive que dinamizar um grupo de pessoas na concentração num objectivo (regresso à Metrópole ) e, simultaneamente, tê-las despertas para um perigo eminente mas que podia ser avaliado e minorado.

Nessa grande aventura tive sempre a companhia do nosso camarada Luís Faria e com ele protagonizámos uma cena que tem tanto de dramático e aterrador como de patético.

A situação passa-se aquando da desmontagem desse famigerado campo de minas.

Fácil será de compreender que havia factores que tornavam a operação responsável por elevadíssimos níveis de stress e entre eles estava o fim da comissão à vista e o facto de as minas não estarem todas nos sítios onde tinham sido colocadas (chuvadas e animais ocasionaram a deslocação de muitos dos engenhos) e, finalmente, uma catadupa de acidentes que aconteceram nessa altura.

É nesse ambiente que eu e o Luís Faria nos propusemos neutralizar uma determinada mina. Fruto do tempo passado desde a sua instalação até esse dia, a vegetação cresceu à sua volta bem assim como um bagabaga.

Aquela mina estava complicada mas por razões que agora não recordo, não optámos pelo rebentamento puro e simples.

Com a coragem que os 20 anos fazem confundir com irresponsabilidade, começámos a tornear o terreno circundante com o auxílio das facas de mato.

Pé-ante-pé, ou melhor, mão-ante-mão, estávamos a conseguir o objectivo definido –levantá-la com a prévia neutralização.

A cena não foi cronometrada mas hoje arrisco que podem muito bem ter sido uns 20 minutos de tensão ao máximo e com os nervos à beira dum colapso.

Nisto, entrámos numa dimensão etérea... O suor escorria pela cara como se uma torneira se tivesse aberto...

A noção que tenho foi de que entabulámos uma conversa de mortos onde nos questionávamos o que tinha corrido mal para termos morrido...

A escassos dois palmos das nossas caras, nós accionámos a puta da mina !

Reconheço a incapacidade de traduzir por palavras as emoções, os desesperos, as aflições por que passámos naquele momento enquanto não nos apercebemos que aquela mina, AQUELA E NÃO OUTRA ! tinha apodrecido e, embora accionada, não rebentou !

A ter acontecido, e tratando-se da mina que se tratava, julgo que seria difícil a um qualquer instituto de medicina legal recompor o puzzle e dizer quem era quem.

Julgo que esta cena não foi do conhecimento geral e, após fumarmos meia dúzia de cigarros seguidos, respirámos fundo e continuámos, alarvemente, a levantar minas...

António

_______

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 1 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3390 Tabanca Grande (95): António Garcia de Matos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2790, Bula (1970/72)

(**) Vd. poste de 6 de Maio de 2009 >Guiné 63/74 - P4288: Espelho meu, diz-me quem sou eu (1): Joaquim Mexia Alves

Guiné 63/74 - P4295: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (9): O dia-a-dia de uma Enf.ª Pára-quedista na Guiné (Giselda Pessoa)

1. Mensagem da nossa camarada Giselda Pessoa, ex-2.º Srgt Enf.ª Pára-quedista, Guiné, 1972/74, com data de 6 de Maio de 2009:

Caro Luís
Tive em consideração as perguntas que me fizeste, inseridas nos teus comentários a um texto meu já publicado, em que pedias para eu dar uma ideia de como foi a integração das enfermeiras pára-quedistas no ambiente matcho de um Teatro de Operações.

Lembro as perguntas que me fizeste nesse comentário:

"Como é que os "matchos" (como se diz em crioulo da Guiné) se acomodaram, na BA12, em Bissalanca, com a chegada das senhoras enfermeiras pára-quedistas ?
Como era o quotidiano das enfermeiras ? Viviam à parte ? Conviviam ? Quantas eram em 1972/74? Frequentavam a messe e o bar dos oficiais, as que eram oficiais, e a messe e o bar dos sargentos, as que eram sargentos ?
As enfermeiras eram discriminadas pela positiva, como se diz hoje? Ou eram apenas militares, tratadas como militares, à luz do RDM?
Assisti algumas vezes à chegada de hélis com enfermeiras pára-quedistas. Elas tinham um tratamento quase VIP, em função não do posto mas da condição de mulheres... Era o machismo de caserna, o marialvismo castrense, a vir ao de cima... Também tinha muito a ver com a cultura da época, em que as relações entre os homens e as mulheres ainda eram muito desequilibradas, em desfavor delas
..."

Para além de alguns pormenores que achei importante referir também, tentei responder a essas perguntas, embora as minhas respostas possam pecar por ser um ponto de vista pessoal que pode não representar necessariamente o entendimento que outras enfermeiras têm desta vivência.
Giselda Pessoa

Base Aérea 12 > Bissau

Com a devida vénia à página dos
Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 65/74, do nosso camarada Victor Barata, Especialista da FAP.

UMA ENFERMEIRA PÁRA-QUEDISTA NA GUINÉ

Com este texto pretendo dar uma ideia de como foi a integração das enfermeiras pára-quedistas no ambiente de um Teatro de Operações (neste caso específico, da Guiné) e qual o nosso dia-a-dia naquele território.

Estou naturalmente limitada ao período em que ali estive presente (1972 a 1974), embora com algum conhecimento de situações pontuais de que fui tendo notícia, referentes a épocas anteriores.

Na época que abordo, a nossa coexistência com as forças no terreno (dos 3 Ramos) já estava estabelecida, sendo pacífica e normalizada. É um facto que grande parte das dificuldades (se as tinha havido) já tinham sido ultrapassadas em 1972 e que qualquer estranheza pela presença das mulheres na tropa já se teria dissipado.

Sabe-se que os pilotos têm bastante tendência a zelar pela sua equipa. Nesse aspecto nunca me considerei marginalizada, pois também fazia parte da equipa: No caso das evacuações, afinal a nossa razão de existirmos, a enfermeira era um dos componentes do sistema, ao nível do piloto e do mecânico, e naturalmente aceite como tal. Por outro lado, no caso particular da Guiné, nós conhecíamos todos os tripulantes que operavam no território, e eles conheciam todas as enfermeiras que ali estavam colocadas, o que nos tornava uma grande família, com as suas diferenças, mas unida.

Para mostrar a empatia existente, dou um exemplo curioso: Dirigia-me a pé para o Grupo Operacional quando passa por mim, a grande velocidade, um jipe com vários pilotos. Vejo o jipe dar a volta e travar bruscamente ao meu lado:

- Anda daí depressa que já estamos atrasados!

Pensando que se tratava de uma evacuação meti-me no jipe, mas acabei por perceber que nos dirigíamos ao terminal civil. Quando lhes perguntei o que se passava, explicaram-me que iam ver o avião da TAP que estava a chegar. Argumentei que tinha mais que fazer que ir ver a chegada do avião, pelo que um tentou esclarecer-me:

- Vamos lá ver as mulheres (as hospedeiras de bordo...) que vêm no avião!.

- Mas eu também sou uma mulher!, disse eu. E retorquiu-me o outro:

- Eh pá, tu és igual a nós!

O nosso dia de trabalho decorria normalmente das 08H00 às 18H00, podendo prolongar-se nos dias em que entrávamos de alerta logo de manhã, pelas 06H00 - por vezes entrávamos todas às 06H00, quando havia operações no mato - ou sempre que as missões se alongavam, entrando por vezes pela noite dentro. Embora tivéssemos instalações no Serviço de Saúde para aguardar a chamada para uma missão, no meu caso pessoal optava na maioria das vezes por me manter na zona do GO1201, já com a mochila dos primeiros socorros a meu lado, pronta para embarcar. O tempo para accionar o alerta era reduzido, e assim eu garantia que não seria da minha parte que haveria atraso na saída do meio aéreo.

Já tive ocasião de referir noutro texto que, no caso de certas evacuações de DO-27, durante o voo de regresso à Base, se a enfermeira considerasse que a gravidade do estado do evacuado o justificava as Operações da Base eram alertadas e mandavam preparar um AL-III, fazendo-se a transferência do ferido na placa e prosseguindo o helicóptero directamente para o Hospital, sempre com o apoio da enfermeira.

No apoio a operações executadas em todo o território (por qualquer Ramo) eram muitas vezes destacadas tripulações de alerta, estacionadas em aquartelamentos próximos, o que incluía muitas vezes uma enfermeira para as evacuações. Passei muitos dias nesses destacamentos, compartilhando com a nossa tropa as suas condições de vida e por vezes ouvindo mesmo os seus desabafos.

Poucos dias houve em que não tenha sido solicitada para qualquer evacuação; pelo contrário, quando as coisas corriam mal para as nossas tropas, podia chegar a fazer 3 e 4 evacuações, algumas delas à zona de combate.

Periodicamente éramos designadas para acompanhar os militares evacuados do Hospital de Bissau para os Hospitais Militares em Lisboa (Estrela e Belém). Eram Boeings 707 (com um misto de passageiros e evacuados, estes colocados na parte traseira) ou DC-6 cheios de pessoal em estado grave ou que, pelas características das suas lesões, necessitavam de cuidados e recuperações prolongados na metrópole. Não eram voos fáceis pois, se já é traumático acompanhar e apoiar um ferido nosso num voo local na Guiné, imagine-se o que é fazê-lo com um grande número de feridos e doentes, muitos deles a precisarem da nossa atenção. Restava-lhes a consolação de estarem a afastar-se daquele inferno.

Durante as horas de serviço, o local das nossas refeições dependia da nossa disponibilidade e dos gostos pessoais de cada uma; no meu caso pessoal, muitas vezes tinha que tomar as minhas refeições nos aquartelamentos para onde era destacada, juntamente com as tripulações; quando estava na Base tanto podia almoçar no BCP12 como na messe de oficiais da BA12 (poucas vezes no entanto); na maior parte das vezes contentava-me em comer qualquer coisa no Clube de Pilotos, área de apoio às Esquadras de Voo e próxima destas, por ser o local mais apropriado para responder a qualquer pedido de evacuação. Era também o local de que tinha que me socorrer quando chegava tarde das evacuações e já não serviam almoços nas messes. E por vezes não almoçava...

Terminado o nosso trabalho, afastávamo-nos um pouco da vida da Base, pois habitávamos um apartamento (tipo república) no Largo do Liceu, em Bissau, onde não havia separação entre oficiais e sargentos - afinal éramos todas enfermeiras. No mesmo prédio e noutros próximos habitava outro pessoal da BA12 e do BCP12, alguns com as respectivas famílias. Em média, na nossa casa estavam três/quatro enfermeiras, embora estivessem previstas cinco. Também, o facto de periodicamente estar uma em diligência em Lisboa, acompanhando a evacuação de feridos ou doentes para o Hospital Militar Principal, na Estrela, ou Hospital Militar de Belém, justificava o número mais reduzido das presentes.

Fora das horas de serviço acabávamos por ser bastante caseiras, pois estávamos cansadas do dia de trabalho. Vivendo na cidade de Bissau, podíamos por vezes ir jantar a um dos vários restaurantes ali existentes.

Embora houvesse enfermeiras graduadas em Oficiais ou em Sargentos, a todas era autorizado o acesso às Messes de Oficiais - talvez porque fosse difícil distinguir-nos... No entanto não eram locais que eu apreciasse particularmente, até pela cara enjoada de umas tantas utilizadoras frequentes que não gostavam de nos ver aparecer por lá. O Clube da Marinha, ao lado da respectiva Messe, tinha um ambiente interessante e era talvez o local em que nos sentíamos melhor.

Mas, muito frequentemente, aos serões a nossa casa acabava por ser invadida, quer pelos vizinhos, quer por pessoal da Base que ali procurava refúgio. Por isso, paz e sossego era coisa pouco frequente entre nós...

Tenho boas recordações do modo como me recebiam nos locais onde aterrávamos; mas devo dizer que essa hospitalidade era alargada aos tripulantes do AL-III ou do DO-27 em que eu seguia; e quanto mais isolado fosse o aquartelamento, melhor era a recepção, pois estes eram momentos de contacto com a civilização que esporadicamente lhes eram permitidos. Por isso nunca tive razão de queixa quanto à maneira como era recebida nos aquartelamentos por onde passava - ou onde muitas vezes acabava por ficar grande parte do dia, em missões de alerta.

Se algum conflito surgiu no terreno com pessoal mais graduado do Exército, parece-me que não eram casos isolados envolvendo apenas a enfermeira; também os pilotos se queixavam por vezes das dificuldades de relacionamento com alguns dos responsáveis no terreno, talvez por haver a tendência para, com base no posto, pretenderem meter-se em áreas que não eram da sua competência.

Na Força Aérea talvez pudesse haver aqui ou ali algum espírito marialva que em certas ocasiões nos pudesse ter tratado com alguma condescendência, mas a verdade é que por norma também não dávamos motivos para reparos; embora, quando se tratasse da nossa área profissional, fossemos firmes nas nossas posições, o que poderia desagradar a alguns.

É possível que em algumas ocasiões tenhamos recebido um tratamento quase VIP nos locais por onde passávamos, por sermos mulheres; mas, se naquela época se via suceder isso em locais considerados muito mais normais, não me admira que tal também pudesse suceder nesses recantos em que a civilização chegava com tanta dificuldade. Afinal, quero crer que a nossa presença, nessas situações, fazia lembrar aos militares as irmãs, as mães (embora não fossemos muito mais velhas...) e também as namoradas. E o facto é que não senti qualquer sinal de desrespeito por parte deles em todas as minhas deslocações - embora em muitas delas, dada a gravidade da situação, não tivesse tido tempo para analisar o ambiente existente.

Por vezes, a presença de uma mulher - ainda por cima da tropa, como eles - podia provocar nos militares a vontade de apertar com a enfermeira; lembro-me de um alerta que fiz num aquartelamento em que, não tendo tido nada que fazer, ia folheando algumas revistas existentes. Aproveitando a minha ausência momentânea o pessoal aproveitou para as substituir por um conjunto de Playboys e ficou-se por ali, preparado para assistir a uma possível reacção escandalizada da minha parte. Pelo ar deles quando regressei, desconfiei que alguma me tinham preparado; por isso, quando vi as revistas não demonstrei qualquer reacção e folheei-as evidenciando a maior calma e interesse, como se estivesse a ler a Flama ou o Século Ilustrado... E o pessoal deve ter chegado à conclusão de que não valia a pena continuar a tentar apertar comigo...

Embora correndo o risco de generalizar aquilo que é afinal um ponto vista muito pessoal, espero que estas linhas possam ter esclarecido aqueles que, por estarem mais distantes, tinham uma ideia vaga ou até deturpada do que era o dia-a-dia das enfermeiras no Teatro de Operações da Guiné.

Guiné > Bissalanca > BA 12 > 1972 > A Giselda (à direita), com um militar do Exército e a enfermeira Rosa Mota

Giselda Antunes junto ao GO12

Fotos: © Giselda Pessoa (2009). Direitos reservados.


Giselda Pessoa
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4181: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (8): A dar ao Ambu (Giselda Pessoa)