quinta-feira, 7 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4299: Histórias de Juvenal Candeias (1): Pirofobia ou a mina que não rebentou por simpatia


Mina antipessoal PMD-6



Mina anticarro TM-46 

 Fotos de David Guimarães e Carlos Vinhal (editadas por Carlos Vinhal)

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 Nota de CV: 



1. Mensagem de Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde, 1971/74, com data de 7 de Abril de 2009: 

 Caro Luís Graça, 

Espero que estejas bem! Não sei se ainda te lembras de mim, mas trocámos mails aqui há algum tempo, a propósito de alguém que o Nuno Rubim procurava! Na altura pediste-me para escrever alguma coisa sobre a minha experiência na Guiné! Acho que já tanta gente escreveu sobre a Guiné, com mais conhecimento do que eu, que não tive coragem!... 

Contudo, os meus filhos insistem há algum tempo, para que escreva algumas historietas, daquelas que eles sempre gostaram!... Comecei, então, a escrever, para eles... Não sei se vês algum interesse neste estilo, mas envio-te um dos textos para analisares! Se tiveres interesse, depois mando mais! Se não... não deixo de ser teu amigo! 

 Um grande abraço. Juvenal Candeias 

  PIROFOBIA 9 Março 1972 

 Cacine: derradeira povoação importante a Sul da Guiné, situada na margem esquerda do rio com o mesmo nome. Predomínio da população de etnia Nalú, convivendo com minorias Sossas e Fulas. Os Sossos, embora minoritários, tinham levado à Sossização dos Nalús, processo de aculturação que consistiu na adopção do dialecto Sosso e na conversão ao Islamismo da quase totalidade da população Nalú, que era feiticista. 

Daqui derivou a instituição do casamento por compensação e a abolição do casamento por troca. A repressão na arte Nálu, fez-se igualmente sentir, dado que o Islamismo proibia qualquer representação figurativa. À época, Mussé Camará era o único artista de arte Nalú existente em toda a Guiné e alguns dos seus maravilhosos exemplares de estatuária de madeira podiam ainda ser apreciados em Cacine, com procura elevada, mesmo do estrangeiro! 

 Cacine constituiu a base da Companhia de Caçadores 3520, um agradável aquartelamento à beira-rio, onde as casernas se distribuíam entre coqueiros, mangueiros e laranjeiras. Daqui saiu em 9 de Março de 1972, numa manhã fresca da época seca, em que, parece impensável, o frio entrava pelos ossos, um Gr Comb reforçado com uma Secção de milícias,  nativa! 

 A missão era simples, uma patrulha de rotina, ao antigo quartel de Cacoca, mesmo na fronteira com a República da Guiné-Conacri. O aquartelamento de Cacoca tinha sido desactivado há anos, dado o seu isolamento e provável ausência de interesse estratégico, mas as construções não tinham sido destruídas, não voltasse o interesse em reactivá-lo! 

 Pelas 7,30h iniciou-se a coluna auto até ao destacamento de Cameconde, donde a patrulha continuou a pé, por picadas e trilhos – a floresta era inexpugnável, salvo à força de catana, mas a uma velocidade que não ultrapassava alguns (poucos!) metros por hora! 

 O caminho foi lento, seguro e silencioso, interrompido, aqui e ali, pela algazarra dos macacos, em especial a ladração dos macacos-cão, o cantar dos periquitos e outra passarada, a rastolhada de javalis e porcos-espinho ou a corrida furtiva das gazelas! 

 Por volta do meio-dia, com o calor equatorial a fazer-se já sentir com intensidade, a segurança é montada para dar lugar ao almoço! Almoço? Que exagero! Quem pode chamar almoço ao conteúdo de uma ração de combate? Se bem me lembro… uma lata de chouriço, uma bisnaga com creme de sabor indefinido para barrar no pão, uma sobremesa constituída por gomas açucaradas e saborosas, um comprimido de café… e algo mais que a memória (oh! que tristeza, para onde foste?) já não me permite recuperar! 

 De novo a caminho, que Cacoca já não estava longe, sendo atingida por volta das 14 horas! A paisagem era desoladora! Qual farwest! Ao fundo os edifícios em completa ruína, antes deles a pista de aviação, de terra batida e completamente esburacada, o capim a crescer por todo o lado!... O tempo de observação foi curto… alguém clamou… miiiiiina! 

 A mensagem passou rápido, da frente para trás, e toda a gente parou, instalando-se em posição de defesa! Os especialistas na matéria, entre os quais o graduado dos milícias, Sarifo de seu nome, mas popularmente conhecido por “Xerife”, para quem as minas eram como ratoeiras, tal a facilidade com que as levantava, avançaram, de pica em riste, pesquisando o terreno que iam pisar! 

 O prémio era tentador! O Estado pagava 1000 pesos (o escudo da Guiné!) por mina anti-pessoal levantada, 3000 por mina anti-carro. Boa oportunidade para aumentar os parcos rendimentos! E afinal… não era apenas uma mina, havia mais, tratava-se de um campo de minas, instalado na pista de aviação, ao que consta por rumores chegados ao PAIGC de que os tugas iam reactivar o aquartelamento de Cacoca! Ai! A contra-informação a funcionar!... 

 Tratava-se, pois, de trabalho mais exigente a que, de imediato, deitámos mão!... As minas, a maioria antipessoal PMD6, foram progressivamente levantadas, mas algumas tinham surpresa, isto é, uma anticarro TM46 por baixo da antipessoal, o que, naturalmente, demorou a acção! 

 Numa destas situações, depois de levantada a antipessoal, pareceu que a anticarro estaria armadilhada, pelo que o seu levantamento provocaria o rebentamento imediato! Optou-se por não a levantar e proceder ao seu rebentamento no local! Espetou-se um pau no chão, junto à mina, no qual seria presa uma granada ofensiva, cuja cavilha seria puxada à distância, com uma corda… que ninguém tinha levado! 

 Nada estava perdido! Há sempre um mestre na arte da improvisação e alguém se lembrou que para o efeito seriam suficientes as ligaduras do cabo enfermeiro, que rapidamente chegou ao local! Presa a ligadura à cavilha da granada e escondido o mestre da improvisação atrás de um bagabaga (forte construção de terra feita por formigas), foi só puxar a ligadura e… só rebentou a granada! A mina tinha apenas o sistema de detonação danificado, pelo que se exigia uma segunda tentativa!... Não se consumou! O barulho da granada atraíra duas sentinelas avançadas do PAIGC, que foram vistas nas ruínas do quartel – atrás do quartel era a República da Guiné – o que nos obrigou a abandonar o campo de minas e a tomar posição defensiva e segura!  Tratava-se apenas de sentinelas avançadas que fugiram, não havendo qualquer contacto! 

 O caminho de regresso foi tranquilo, com alguns sorrisos irónicos em relação ao Xerife, que transportava as minas em pilha, à cabeça, como se transporta em África qualquer produto! Voltaríamos a Cacoca, mas isso é história para outra oportunidade! 

 O final foi feliz, com os milícias a aumentarem os seus rendimentos e o pessoal da companhia a beber algumas Sagres suplementares! A patrulha dava pelo nome de código PIROFOBIA! Para que conste… ninguém teve medo do fogo!

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Nota de CV:

Vd. poste de 6 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4294: Tabanca Grande (136): Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde (1972/74)

3 comentários:

Luís Graça disse...

Passaste o teste, estás aprovado... Temos mais um belo contador de histórias... E logo para mais, a primeira passa-se entre minas e ruínas de Cacoca, aquartelamento abandonado em meados de 1968 e sobre o qual tínhamos apenas uma meia dúzia de marcadores ou palavras-chave...

Também estive em Cacine, em Março de 2008. Adorei o rio e a paisagem soberba em seu redor. Mas Cacine fez doar a alma, pelo abandono...

Tens fotos da época ?

Parabéns também pela tua sensibilidade cultural.

Luís Graça

Jay disse...

Fur Mil Antunes - 4º Pelotão da CCART 11. A partir de 1971, CCAÇ 11 Paúnca. Estou a fazer o meu comentário aos textos do Juvenal Candeias. Meu digníssimo colega no BBVA. Já passa tempo que não nos encontramos mas, venho por este meio confirmar a minha amizade com este camarada e agradecer alguns dos textos sobre a sua experiência na Guiné. Somos conhecidos por Jaime Antunes e Juvenal Candeias Mantemos os bigides que trouxemos da Guiné. Bem hajas.

Anónimo disse...

Jaime,
É um prazer ver-te (ler-te) por aqui!
No BBVA pouco tempo nos sobrava para algumas curtas conversas sobre a Guiné!
Agora que tempo é coisa que não falta, é altura de leres e comentares as minhas recordações... e talvez de começares a escrever as tuas! Que achas? Pensa nisso!
Um grande abraço.
Juvenal Candeias