Há histórias da guerra que travámos em África, que obviamente se perderam "ad eternum" com aqueles que já iniciaram a última "marcha".
Com o "desaparecimento" dos seus protagonistas, essas histórias jamais se conhecerão. Podiam até nem ser histórias "importantes", mas perderam-se definitivamente.
Mas ainda há milhares de intervenientes em factos históricos, que por diversos motivos não mostram qualquer intenção de algum dia abordarem esses acontecimentos. São diversas as explicações para este fenómeno.
Alguns veteranos escusam-se, dizendo não ter nascido para escrever e muito menos descrever, narrar, versejar... Se uns assim dizem a verdade, outros escondem-se por detrás de posições e justificações que, por vezes, reprimem ainda velhas emoções e outros sentimentos que, como não podia deixar de ser, aceitamos e respeitamos.
Algumas dessas atitudes são tão firmes e inabaláveis que nos dão a certeza da gravidade dos estados psíquicos, nomeadamente do terrível stress pós-traumático de guerra.
Somos seres humanos, mais ou menos sensíveis, tendo enfrentado a ida para África com maior ou menor preocupação. Nesta minha divagação pessoal, não sendo médico, nem um perito nestes assuntos psicológicos, permito-me pensar que todos aqueles que foram mobilizados ficaram marcados para o resto das suas vidas. Depois aqueles que enfrentaram combates e situações de forte tensão e, ou, estiveram sob fogo inimigo, viram esse sintoma agravado e elevado a uma alta potência.
São marcas de tal modo cicatrizadas e enraizadas, que nem o bisturi mais acutilante as sacaria fora. E se as mazelas físicas são visuais, marcantes e traumatizantes, as psíquicas não o são menos, por invisíveis na fisionomia corporal, mas quantas vezes espelhadas, quer no teor das palavras, nas atitudes do dia a dia e, ou, no comportamento pessoal. É notável que uns estão mais afectados que outros, pelo menos aparentemente, digo eu.
Mas, com imensa alegria e felicidade, penso que, graças a Deus, ainda por cá andamos muitos, mantendo a memória bem viva do nosso passado recente em África. Assim, com a colaboração deste e daquele camarada, ajustando e corrigindo pormenores, ainda é possível reconstituir alguns puzzles incompletos, ajudando a deixar histórias mais completas e leais à verdade dos factos.
Esta é uma delas, que pode ainda não estar concluída.
Por isso, deixo aqui um apelo a todos os restantes camaradas, para que, quem conheça mais algum pormenor deste herói, nos preste também a sua contribuição, por grande ou pequena que lhes pareça.
Até ao momento já recebemos os seguintes complementos testemunhais do Benito Neves, do João Parreira e do Mário Fitas, que conheceram e conviveram com o João Bacar Jaló (ou têm informações inéditas sobre a sua vida e morte):
1 - O Benito Neves, enviou o seguinte e-mail em 4 de Maio de 2009
Meu caro Magalhães Ribeiro, o meu abraço.
Vi hoje publicada no blogue a biografia do nosso João Bacar e as dúvidas sobre a sua morte.
Sobre esta última já contactei um dos alferes da minha CCav 1484, que privou com o João Bacar e que, inclusivamente, o recebeu em sua casa todas as vezes que o João Bacar veio à Metrópole.
Há dias estive com o referido alferes que me esteve a contar a versão que tem sobre a morte do João e que, ao que parece, não foi bem como foi publicado mas quase. Segundo ele, no cenário de guerra, o João Bacar teria na mão uma granada já sem cavilha, terá tropeçado e caído em cima da granada que explodiu, matando-o. As restantes granadas (e ele trazia sempre várias) terão explodido por simpatia.
De qualquer forma eu já pedi a confirmação desta versão ao alferes Miguel da CCav 1484, que sei ter tido contactos com pessoas que estiveram próximas, na altura da morte do João.
Em memória de João Bacar, relembro o HOMEM e o COMBATENTE. Quando esteve connosco ainda era alferes e foi, depois, promovido a tenente. Participou em todas as operações que efectuámos no Sector de Catió. Quantas vidas nos poupou? Não sabemos, mas a nossa gratidão para com ele é do tamanho do Mundo. Aquando da sua morte as lágrimas rolaram livremente pelas minhas faces. Hoje continuo a inclinar-me perante a sua memória.
Deixámos Catió em Julho de 1967 e os oficiais e sargentos da Companhia ofereceram ao João Bacar aquilo que soubemos que ele mais desejava: um relógio automático, à prova de água e com ponteiros luminosos. Por trás tinha gravado: "Recordação da CCav 1484". O João delirou!
Pena que a biografia publicada no blogue não permita leitura. Se te fosse possível a digitalização e o envio por e-mail, ficava-te imensamente grato.
Um abraço e o meu muito obrigado
Benito Neves
2 - O Mário Fitas, colocou o seguinte comentário ao post 4275
Caros amigos da Tabanca Grande.
Conheci o João, era assim que tratávamos o Alferes de 2ª Linha João Bacar Jaló.
A C Caç 763 entrou com ele e a sua Milícia nos Acampamentos [do PAIGC] de Cufar Nalu, Cabolol e Caboxanque. Assaltámos Cadique Ialá e Nalu. Já escrevi isso em "Putos Gandulos e Guerra" e "Pami na Dondo a Guerrilheira" sobre ele e a sua gente.
Escreverei mais, porque só quem o acompanhou, poderá confirmar o seu valor. Hoje deixo aqui uns nomes que muitos conhecerão da gente do João: Carlos Queba, Gibi Baldé, Amadu Djaló, Alfa Nan, Cabo, Indrissa, Tui na Defa...
Alguns morreram antes, do seu Capitão. Que terá acontecido aos outros? Ao Gibi Baldé sei que cortaram as mãos! E ao meu velho Alfa Nan - Cabo -, a quem devo a vida?
Gostaria de saber, porque eles vivem na minha memória, como vivem os meus valentes soldados. Desculpem o desabafo! Foi assim! Assim o recordarei!
Obrigado, camarada Ranger, por trazeres aqui o Capitão (do Exército Português), o Guineense João Bacar Jaló.
O abraço de sempre do tamanho do Cumbijã,
Mário Fitas
3 - Em 5 de Maio de 2009, o João Parreira enviou também um e-mail
Sobre o nosso valoroso João Bacar Jaló... Falei esta tarde com um camarada comando africano - o Alferes Amadú Bailo Djaló -, que parte do meu Grupo "Fantasmas", e que o conhecia bem e me disse o seguinte:
- O Bacar Jaló tinha saído de uma bolanha perto de Tite e, estando-se a aproximar de uma tabanca, sacou de uma granada de mão e despoletou-a. No entanto, o IN abriu fogo e uma roquetada acertou-lhe na anca, arrancando-lhe completamente a perna. Ao cair, a granada que ele levava na mão descavilhou-se e acabou por explodir, junto ao seu corpo, causando-lhe a morte.
O Amadú, que era da mesma Companhia do João Bacar, não foi nessa operação por estar no Hospital.
É, assim, mais uma triste história que podia ter acontecido a qualquer um de nós e que esta gente em Portugal desconhece, e mesmo que conhecesse não dava qualquer valor.
Abraço,
João Parreira
4 - O Benito Neves, em 5 de Maio de 2009, enviou outro e-mail
Caro Amigo, esta versão eu não conhecia e, na verdade, só quem estava com ele, e perto dele, poderá testemunhar com rigor como a coisa aconteceu.
No fundo acabamos por, desta forma, estarmos a prestar uma homenagem a um HOMEM simples, com o coração do tamanho do mundo, que nos guiou, comandou e nos salvou. E sei do que falo porque muitas vezes era o João Bacar que, antes e até durante as operações, alterava os percursos de forma a minimizar os riscos que as envolviam.
Relembro que, naqueles anos de 1966/67, as ordens de operações chegavam ao Batalhão delineadas não sei se pelo comando de Agrupamento (Bolama), se por Bissau.
O Comandante do Batalhão reunia, um ou dois dias depois (dependia dos transportes), com os Comandante das Companhias que iam intervir, normalmente de Cufar, Bedanda, Comandante da Companhia de Intervenção de Catió (que era a minha) e com o Comandante da Companhia de Milícias 13.
Havia na parede do gabinete um mapa da zona onde era exemplificada a operação que iria ser feita (por onde iriam avançar as Companhias que iriam montar segurança, por onde iriam progredir a Companhia de Milícias 13 e a de intervenção, etc., etc.). Depois de explanada toda a operação, era perguntado aos Srs. Cmdts das Companhias se haviam dúvidas, que eram (ou não) esclarecidas. Quando chegava a vez do João Bacar falar (e quantas vezes aconteceu...) o mesmo dizia simplesmente:
- Isso está tudo mal e se for assim eu não vou.
Pasmava-se...
- Mas está tudo mal o quê?
- Tudo - respondia o João - Esta e aquela Companhia que vão montar segurança, neste e naquele ponto, não podem avançar porque o rio está a encher, é fundo e tem muita corrente. Portanto, quando àquela hora for necessário a montar segurança, não estão lá. A Companhia de Milícias e a CCav não podem avançar por aqui porque a mata é muito fechada, dificulta a progressão e, portanto, quando se faz dia ainda estamos longe.
Além há postos de sentinela avançada que detectam a nossa progressão e quebra-se o sigilo da operação.
Ficava tudo mudo.
- Mas, João, isto tem que ser feito! - dizia o Comandante do Batalhão.
E o João, logo ali, alterava horas e percursos, como ele sabia.
Posso dizer que em toda e qualquer operação delineada (ou alterada) pelo João Bacar, nunca as NT tiveram qualquer problema e as coisas correram muito bem. No entanto, outras houveram em que não foi tanto assim.
O João foi, para nós, uma fonte inspiradora de confiança e até de alguma tranquilidade. Admirado por todos que lhe ficámos a dever imenso e cada um nem sabe quanto. Ainda hoje, repare-se, o João Bacar é uma fonte inesgotável de boas recordações, de respeito, grande admiração e enorme gratidão.
Foi para mim um privilégio tê-lo conhecido e convivido com ele durante 16 meses.
Um abraço
Benito Neves
5. Comentário do MR:
Muito agradecido aos 3, com um abraço Amigo do MR.
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Notas de MR:
Ver artigos de:
2 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 – P4275: Tugas - Quem é quem (4): João Bacar Djaló (1929/71) (Magalhães Ribeiro)
20 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2569: Tugas - Quem é quem (3): João Bacar Djaló (1929/71) (Virgínio Briote)
10 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2340: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (5) - Parte IV: Pami e Malan são feitos prisioneiros (Mário Fitas)
4 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2239: Tugas - Quem é quem (2): António de Spínola, Governador e Comandante-Chefe (1968/73)
23 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2207: Tugas - Quem é quem (1): Vasco Lourenço, comandante da CCAÇ 2549 (1969/71) e capitão de Abril
Ver também:
20 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1769: Estórias do Gabu (4): O Capitão Comando João Bacar Jaló pondo em sentido um major de operações (Tino Neves)
8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha
30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXIX: Do Porto a Bissau (23): Os restos mais dolorosos do resto do Império (A. Marques Lopes)
31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXVII: A 'legenda' do capitão comando Bacar Jaló (João Tunes)
11 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça)
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