1. Mensagem de José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 29 de Abril de 2009:
Caros Editores, Carlos em especial.
Aproxima-se a partida de um Corpo expedicionário, com a ilha da Madeira por destino, onde terá como missão, a consolidação das relações entre aquelas gentes autóctones e os continentais. Trata-se de um Corpo bem preparado, com afinada pontaria aos pratos, e sobejas provas dadas na actividade decilítrica, com cursos, estágios e farta experiência em diferentes redutos. Espera-se, legitimamente, o reforço dos laços de solidariedade entre os participantes, oriundos daquela CCaç dignos de Cabrais e quejandos, que cimentaram as boas práticas, partilhando a água da bolanha.
Assim, dia um, pelas catorze horas, ficam informados os indefectíveis admiradores e admiradoras, de que o ponto de encontro é na nova gare de embarque do aeroporto da Portela. Se entre os bloguistas alguém quiser enviar queijos, paios ou presuntos para algum destino daquela Pérola, ofereço-me como portador.
Carlos, sei que ficas triste, mas a tua ocasião há-de chegar. E vamos à História.
Abraços fraternos
A Última Partida
De regresso a Piche, pensava voltar ao quotidiano, à vida alternativa que me impunha, noite sim, noite não, passar no mato ou no aquartelamento. As noites no aquartelamento significavam grande descontração, mau grado aquela pequena possibilidade de termos que sair inopinadamente. Depois de jantar, aproveitava-as para debicar uns gins até à ceia, enquanto lia ou conversava com os camaradas que aportavam à suite três, ou escrevia à namorada se me sentia de imaginação fértil, ou tomava apontamentos no meu diário, quando não me estendia na cama em busca de sonhos que me alimentassem a vida. Nada de especial, portanto.
Já aperitivado de gins chegava a ceia, composta, como usualmente, pelo cabritinho mais as batatinhas assadas no forno, que regávamos copiosamente com vinho branco-sêco do Rêno, cerveja Super-Bock ou dois-éme, até que, por fim, era a vez da parafernália de digestivos, bebidas para aconchegar o estômago, mas, também, para espairecer, como quem levita sobre um ninho de cucos.
Dos Antiquary e Monks, até aos Courvoisier e Napoleão, a sêco, ou com Perrier, negócio estranho que dispensava a nacional água Castelo, tudo bebidas que tinham o magnífico efeito de estimular raciocínios e conversas, porque nessas ocasiões não há matéria que não sirva uma boa discussão, ou estimulavam o sono retemperador do quebranto.
As paredes forradas de coelhinhas da Plyboy, convidavam aos brindes que, às vezes, traduziam-se em distintas bebedeiras, com o paradoxal efeito da aumentar a sede à medida que mais se bebia.
Uma destas noites aconteceu uma flegelação ao destacamento de Cambor, e nós colocámo-nos nas traseiras do edificio dos quartos, de onde assistíamos aos relâmpagos dos rebentamentos e ouvíamos distintamente a balbúrdia de tiros e deflagrações. Tinha bebido uns copos, não estaria muito católico, e o Branco da Silva referiu-se-me assim:
- Aqueles gajos já têm um morto, e tu estás tão bêbado que não podes lá ir ajudá-los.
Mas quero referir-me à última noite de pocker.
Reunimo-nos no quarto do capelão, homem prudente, que encavava cem paus em cada jogada, raramente ganhava, mas permitia-lhe estar sempre pronto para a jogada seguinte. A coisa corria com normalidade. Por entre o fumo espesso e a bebida toldante, cada um prestava atenção à sucessão de cartas, às alterações faciais de cada parceiro, à projecção de cartas que detinham, e estudavam-se pequenas alterações de expressão, que denunciassem o bluff como a confiança. Passadas algumas jogadas, já tinha um peculiozinho.
Até que numa jogada, baldados os parceiros a jogo, resto eu e o Zé Tito. Sobre a mesa estaria qualquer coisa como dois contitos, verba interessante para premiar quem tinha um fullen de ases por reis. Fazíamos as caves de cem paus, e apostávamos mais cem. Já sentia o dinheiro no bolso. O Zé, também igualava e aumentava, algo indiferente, como quem faz bluff, enquanto eu regozijava.
Este maluco vai ficar em cuecas, pensava para comigo. A minha confiança aumentava. Ele não podia ter pócker, a avaliar pelas cartas já vistas, nem o royal street. O gajo está doido, cogitava. Debicava no whisky e aumentava a aposta. Em redor era a espectativa. Estariam, entretanto, uns cinco contos em jogo (na moeda de hoje, cerca de vinte e cinco euros), quando o Zé pagou para ver. Alarve, atirei com as cartas referindo vitoriosamente azes-por-reis. Bom jogo o meu. O Tito, por cima dos óculos, ainda voltou a olhar e a identificar as cartas e, quando me preparava para arrecadar a massa, quase timidamente, ele anunciou que tinha uma sequência. Não podia ser! Mas era.
Fiquei muito envergonhado comigo mesmo, porque tinha identificado o poder da alienação que o jogo exerce. Eu não queria só ganhar. Também queria deixá-lo na penúria.
O Zé Tito aos comandos e eu no lugar do pisteiro, levamos o Unimog por caminhos indizíveis.
O Unimog sublimador
1 - Com a nossa energia levávamos o Unimog para todas as direcções, em viagens delirantes de sonho e libertação. Facilmente passávamos os obstáculos, tanto na floresta, como na savana. A paisagem passava sem lhe atribuir grande importância. Era a transição. Um dia chegámos ao principado do Mónaco, onde fomos recebidos pelan princesa Grace e as suas lindíssimas filhas. O ambiente esplendoroso foi cortado pela voz macia e delicada da princesa:
- Tomem-nas e partilhem, que elas são boas para partilhar e vão sentir-se muito recompensadas pela satisfação que vos derem.
Em redor, as graciosas cortesãs pareciam suspirar, e contribuíam para ganharmos o céu.
No dia seguinte levantei-me com um sol radioso. Fui à varanda do palácio, e deparei-me com as soberbas montanhas a deslizar como um reposteiro, suavemente, sobre as águas claras do mar. O jardim conferia uma atmosfera cheia de romantismo, e fazia-me pujante. Abaixo da varanda, o casario do principado, pigmentado por árvores e jardins, onde se destacavam construções de elevado recorte arquitectónico, bordejava o litoral até às docas, onde a alvura dos iates pontilhava com estrelas flutuantes.
A terra imponente abraçava o Mediterrâneo, de onde ouvíamos cânticos de apelo ao regresso a África. Por entre os aplausos de esbeltas criaturas, atingimos a costa do outro lado, atravessàmos o deserto até à Guiné, sempre acompanhados de ossanas amorosas.
À chegada corri para o duche, e lavei-me da pomada de poeira levantada da picada, qual creme nas faces transpiradas.
2 - Outra vez, o Unimog deu-nos asas para irmos buscar duas jornalistas italianas, que tinham por objecto reportar a nossa guerra. Eram jovens, em princípio de carreira, uma loira, outra morena, muito bonitas e comunicativas. Entendiamo-nos num misto de franciulano e portonhol. Por momentos sentia comichão na cara, provocada pelo roçar suave dos seus cabelos finos e perfumados. Era o céu no chão fula. Sentia-me nas nuvens.
No caminho, pela picada, fomos emboscados e atirámo-nos para o chão arenoso, como primeira medida de defesa. Sob o cantar ameaçador da metralhalha, as delicadas repórteres agarravam-se-me na procura de protecção. Com alguma dificuldade a manusear a arma, consegui repelir o ataque, do que resultou uma grande alegria. Ali estávamos os três abraçados, e elas abriram-se com beijos e carinhos de sonho.
Mais tarde, depois de nos despedirmos, relatei à minha namorada esta acção humanitária, gloriosa e fantasiosa, e o tiro quase me saíu pela culatra, ruída que ficou pelo ciúme, reforçado pela distância de milhares de quilómetros, e pela relativa ignorância das oportunidades que tínhamos na terra fula, onde, parecia, eu levava uma vida de deleite e facilidades.
3. Comentário de CV:
Caro José Manuel, só um pequeno aparte para te dizer que não está descartada a hipótese de festejarmos no próximo ano, na Pérola do Atlântico, os 40 anos da saída da CART 2732 do Cais do Funchal, com destino à Guiné. Também irá daqui uma delegação bem representativa dos Continentais para confraternizar com aqueles excelentes e inesquecíveis camaradas de armas.
Oxalá se concretize.
Já agora, uma pergunta. Vocês organizaram-se, de algum modo, quanto à viagem de avião?
Parabéns pelas tuas histórias de hoje, tanto a do jogo de Poker, como as do Unimog sublimador são fantásticas.
Um abraço
CV
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 9 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4167: História da CCAÇ 2679 (16): Casais fiéis e solidários (José Manuel Dinis)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Carlos
Enviei~te um mail, com dicas da nossa festa. Estou ao dispor para te ajudar.
Um abraço
JD
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