Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 10 de agosto de 2016
Guiné 63/74 - P16375: Parabéns a você (1117): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63) e Tomás Carneiro, ex- 1.º Cabo Condutor Auto da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)
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Nota do editor
Último poste da série de 9 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16372: Parabéns a você (1116): Anselmo Reis Garvoa, ex-Fur Mil Op Esp da CCÇ 2315 (Guiné, 1968)
terça-feira, 9 de agosto de 2016
Guiné 63/74 - P16374: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (25): Relatório de Operações do último almoço-convívio da CART 1689
1. O nosso
camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART
1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá,
1967/69), enviou-nos o Relatório de Operações do último almoço-convívio da sua Unidade para integrar as suas "Outras Memórias da Minha Guerra".
Outras memórias da minha guerra
24 - “O nosso fim está próximo”
(… assim, a modos de “Relatório de Operações” do último almoço-convívio da CART 1689)
Por incrível que pareça, os militares da nossa CART 1689 assinalam, em convívio almoçarado, não a data do seu regresso da guerra, mas o da partida. Mas ninguém sabe porquê ou de quem foi a ideia.
Lá, todos os dias 26 eram motivo de satisfação, de alegria e de bebedeira. Isto justificava-se porque a contagem era implacável e só a sua soma, mês a mês, nos daria o descanso, o regresso e a libertação. Cada mês que passava parecia mais uma senha de uma lotaria que nos ajudaria a obter o prémio final. Era por isso que a importância festiva se acentuava mais e mais à medida que os meses passavam.
Saturados de guerra, deixámos passar uns onze anos sem nos termos reencontrado. Excepcionalmente, os que eram vizinhos, iam-se encontrando mas sem qualquer tipo de manifestação festiva ou com carácter de regularidade. Porém, chegou-se à conclusão que havia muitas saudades daquelas amizades de excepção que se havia criado. Foi o falecido Mariz que juntou, o “núcleo duro” dos graduados, no Restaurante D. Sancho, perto da Curia. A partir dali, procuraram-se contactos, através do “passa a palavra” e de anúncios em jornais (JN e Bola). Então, reunimos em Crestuma 2 ou 3 vezes, mas o número de presenças não evoluía. A malta havia seguido a sua vida, após a chegada da guerra e dispersou-se, inclusive pelo estrangeiro.
Alguns camaradas, chegados da África do Sul, da Alemanha e da França, procuraram os amigos que nunca mais viram. Nessa altura, destacámos o entusiasmo do Sá, do Peixoto e do Netinho que, apoiados pelo Miranda, conseguiram aumentar significativamente o número de participantes nesses encontros anuais. Depois entrou em cena o “Póvoa” (José Ribeiro) que, graças à sua dedicação e capacidade organizativa, atingiu-se um grau de excelência, nesses eventos.
Como a malta da CART 1689 é, quase na sua totalidade, oriunda do norte, não admira que os encontros se tenham feito cá para cima. Todavia, devemos realçar o grupo de “Lisboetas” que tem sido verdadeiramente exemplar. E foi por isso que organizámos um encontro na Cova da Piedade, para onde fomos de autocarro. Por influência do Borges das Transmissões (aquele “técnico” que se propôs recuperar o barco ”Tolan”, virado no Tejo), fomos à sua terra, lá nos arredores de Seia. Também já fomos à Guarda por “exigência” do Saraiva, grande entusiasta destes encontros. Cabe aqui realçar os nomes de Seixas, Mendes, Ferreira, Vilela e Azevedo que têm assegurado a continuidade destes convívios. Estou a lembrar-me de encontros em Amarante, Esmoriz, Maia, Famalicão, Ermesinde, Gaia, Póvoa de Varzim, Felgueiras, Braga,
Assim, pelo menos uma vez por ano, por altura do 26 de Abril, voltamos a ver-nos e… voltamos a afastar-nos. Sim, a afastar-nos. É que o número de participantes vai diminuído, seja por incapacidade física, menos interesse ou por ausência forçada devida a… mobilização definitiva para as bandas do Além.
Na concentração deste ano de 2016, beneficiámos de uma óptima organização do Ferreira de Braga. Fomos à missa à Igreja da Falperra, passámos pelo Sameiro e pelo Bom Jesus. Fomos participar num verdadeiro banquete lá para os lados de Póvoa de Lanhoso. O convívio decorreu maravilhosamente(!). Deu para falar com toda a gente, fossem camaradas ou seus familiares. E deu para recordar/estender/repetir/adulterar (involuntariamente, devido à degradação dos neurónios – ou pelo decurso do tempo ou pelo álcool ingerido) as histórias do costume. Tirando uma ou outra discussão provocatória de (pretensos) divisionistas da Pátria (entre Norte e Sul) ou alimentadores da eterna rivalidade futeboleira, tudo funcionou em ambiente cada vez mais tolerante e mais amistoso.
Durante esses relatos, notei que muitos já andam muito longe da verdade dos factos guerreiros ocorridos, deturpam-nos (involuntariamente), inventam histórias e outros… não se lembram de nada. É a vida!
Entre outras conversas, ouvi quem afirmasse que num ataque a Cabedu, se disparam umas cento e tal granadas de morteiro 81. (Será que havia assim tantas granadas no quartel?) Outro disse que vira um Furriel a tentar fazer fogo com um outro morteiro, apoiando-o nas costas de outro Furriel. E, como lamento da morte de um Alferes (que morreu devido a ferimentos nesse ataque, atingido dentro do abrigo mais seguro – o das transmissões), lembrou a sua bravura por ter vindo para a parada expondo-se ao fogo IN, apoiando a resposta ao ataque.
Também assisti às dúvidas de um Furriel, afirmando que a viagem do Norte para Lisboa não podia ter sido feita numa só noite, porque o comboio, naquele tempo, andava muito devagar. Portanto, segundo ele, a saída de Viana do Castelo fora no dia 25 de Abril e não na madrugada do próprio dia 26, dia do embarque no Uíge.
Desta vez, nem o Capitão Maia, nem o Alfero Branquinho apareceram. Foi a vez de alguns Furriéis botarem palavra.
Cheguei a ouvir um Furriel afirmar que o seu Alferes não estivera na OP da implantação do novo quartel de Gandembel, quando, afinal, esteve todo o tempo. E que, ele mesmo, em dado momento, chegara a comandar o Batalhão.
Enfim, um exemplo de afirmações que nunca ouvira antes. Não sei se a malta já está afectada por problemas de saúde ou é consequência de… medicação. A verdade é que se nota, cada vez mais, que alguns já acusam muito esquecimento, muita deturpação e muito cansaço cerebral.
De repente, como se estivesse ao espelho, sinto um calafrio e pensei:
- Será que eu também já estou afectado? Não, não pode ser.
A certa altura, abeirei-me do Valente, que eu havia ido buscar a Oliveira de Azeméis e que já não pode conduzir viaturas em virtude de um acidente sofrido numa pescaria na Barragem de Castelo de Bode, e perguntei-lhe:
- Está tudo bem? Porque estás tão calado?
- Olha, Silva, desta vez estou para aqui a observar a malta e verifico que o nosso fim está próximo. Lembras-te de quantos homens tinha a nossa Companhia? 153! - Sabes quantos estão aqui? 19! A maioria são familiares e a gente nem repara. Cada vez vêm mais familiares a acompanhar-nos, e sabes porquê? Porque nos vêm trazer e amparar. Andam a dar-nos as últimas alegrias.
Logo o tentei animar:
- Deixa-te de merdas, a malta está contente, vê se pensas em coisas boas e se tratas do “isco especial”, para voltarmos a pescar.
O Grande Valente, numa “bolanha do vale do Mondego” prepara-se para dar mais uma aula de bem pescar ao colega/amigo/vizinho Silva, companheiros de grandes lutas pela honra e dignidade dos militares da Cart 1689.
Durante a sobremesa, o (político) experimentado Cepa, como sempre, manifestou a sua preocupação quanto ao “sacrificado” para a organização do próximo encontro. Para isso, fala-se com o “Póvoa”, para dar o seu habitual apoio e a sua prestimosa opinião. Seguem-se algumas trocas de palavras e “democraticamente” chega-se à conclusão de que o Seixas nos quer de novo em Felgueiras. Ninguém o contraria, nem as razões históricas do meio século da nossa saída de Viana do Castelo, alteraram a decisão. O Cepa acrescentou algumas palavras de afecto aos resultados do escrutínio. Felicitou os camaradas da guerra e, mais uma vez, desejou o melhor para todos os presentes.
De seguida falou o Miranda. Logo um sinal de que já estava “tocado”. (Pudera, sem sua Mulher Maria José a travá-lo e com a Filha Dália a fazer de condutora privativa, estava em roda livre). Quis exteriorizar toda a sua amizade ao grupo mas, sempre polémico e, em tom de brincadeira, claro, acabou lançando as mesmas farpas que tanto ocupavam os velhos tempos de caserna. E já gritava:
- “Abaixo os benfiquistas”, “morte aos mouros”, “o culpado foi Afonso que não tinha nada que ir conquistar Lisboa”…
Para que a coisa não aquecesse mais, tentei que ele mudasse o discurso de impropérios divisionistas e logo me acusou:
- Tu, cala-te que também és meio mouro, porque Crestuma fica do lado de lá do Rio Douro.
O que valeu foi que os incomodados da Cova da Piedade, de Massamá e de Loures atiraram-se a ele e levaram-no para junto do Bar.
Tive então a oportunidade de dizer alguma coisa. As palavras do Valente encaixaram na minha mente e parecia que não fugiam. É que também me vieram à cabeça as dificuldades que passei este inverno, com a deficiência respiratória que me tem atacado e com o AIT que sofri.
Pedi a intervenção e logo me emocionei. Assaltou-me essa ideia pavorosa de que me poderia estar a despedir. E, por outro lado, olhava para todos e pensava: Quem dentre eles poderá não estar cá no próximo ano?
Dominada a comoção, cuja razão não poderia exprimir, corri com os olhos todos os presentes naquele salão.
“Caros camaradas,
É com grande prazer que reunimos hoje mais uma vez. Já o fazemos há uns anitos. Convivemos abertamente, sentindo-nos regressados àqueles tempos da nossa juventude. Até parece que voltamos a ter os tais vinte e tal anos.
Tempos em que fomos espremidos e postos à prova extrema de todas as nossas capacidades.
Tempos em que cimentámos a nossa solidariedade e a nossa amizade.
Reparo que continuamos a olhar lá para longe, onde irmanados, vivemos os anos mais importantes das nossas vidas. São essas as sensações que ainda nos unem e que nos levarão até à morte.
Reparo também que já somos poucos, e que, possivelmente, não nos iremos encontrar muitas mais vezes.
Por isso, caros amigos, se me permitem um conselho de um dos mais velhos, vamos olhar mais para quem vive ao nosso lado. Olhar mais para quem sempre olhou por nós. Quem sempre nos acompanhou, nos tolerou e nos amou.
Julgo que ainda poderemos retribuir o amor e a atenção a esses entes mais queridos.
Eles bem o merecem!”
Brindámos, comemos o último pedaço de bolo e abraçámo-nos, mais que nunca. Notei que havia lágrimas naqueles sorrisos de alegria. Alguns abeiraram-se de mim e incentivaram:
- Força Silva, para o ano cá estaremos!
Mas houve quem me segredasse:
- Ó Silva, sei bem onde você queria chegar. O nosso fim está próximo.
Pensei, falando comigo mesmo: "Pode ser. Mas, depois, depois, tudo continua… nas cenas dos próximos capítulos".
Silva da Cart 1689
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Nota do editor
Último poste da série de 23 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16125: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (24): Memórias de guerra ou guerra de memórias?
Outras memórias da minha guerra
24 - “O nosso fim está próximo”
(… assim, a modos de “Relatório de Operações” do último almoço-convívio da CART 1689)
Por incrível que pareça, os militares da nossa CART 1689 assinalam, em convívio almoçarado, não a data do seu regresso da guerra, mas o da partida. Mas ninguém sabe porquê ou de quem foi a ideia.
Lá, todos os dias 26 eram motivo de satisfação, de alegria e de bebedeira. Isto justificava-se porque a contagem era implacável e só a sua soma, mês a mês, nos daria o descanso, o regresso e a libertação. Cada mês que passava parecia mais uma senha de uma lotaria que nos ajudaria a obter o prémio final. Era por isso que a importância festiva se acentuava mais e mais à medida que os meses passavam.
Saturados de guerra, deixámos passar uns onze anos sem nos termos reencontrado. Excepcionalmente, os que eram vizinhos, iam-se encontrando mas sem qualquer tipo de manifestação festiva ou com carácter de regularidade. Porém, chegou-se à conclusão que havia muitas saudades daquelas amizades de excepção que se havia criado. Foi o falecido Mariz que juntou, o “núcleo duro” dos graduados, no Restaurante D. Sancho, perto da Curia. A partir dali, procuraram-se contactos, através do “passa a palavra” e de anúncios em jornais (JN e Bola). Então, reunimos em Crestuma 2 ou 3 vezes, mas o número de presenças não evoluía. A malta havia seguido a sua vida, após a chegada da guerra e dispersou-se, inclusive pelo estrangeiro.
Alguns camaradas, chegados da África do Sul, da Alemanha e da França, procuraram os amigos que nunca mais viram. Nessa altura, destacámos o entusiasmo do Sá, do Peixoto e do Netinho que, apoiados pelo Miranda, conseguiram aumentar significativamente o número de participantes nesses encontros anuais. Depois entrou em cena o “Póvoa” (José Ribeiro) que, graças à sua dedicação e capacidade organizativa, atingiu-se um grau de excelência, nesses eventos.
Como a malta da CART 1689 é, quase na sua totalidade, oriunda do norte, não admira que os encontros se tenham feito cá para cima. Todavia, devemos realçar o grupo de “Lisboetas” que tem sido verdadeiramente exemplar. E foi por isso que organizámos um encontro na Cova da Piedade, para onde fomos de autocarro. Por influência do Borges das Transmissões (aquele “técnico” que se propôs recuperar o barco ”Tolan”, virado no Tejo), fomos à sua terra, lá nos arredores de Seia. Também já fomos à Guarda por “exigência” do Saraiva, grande entusiasta destes encontros. Cabe aqui realçar os nomes de Seixas, Mendes, Ferreira, Vilela e Azevedo que têm assegurado a continuidade destes convívios. Estou a lembrar-me de encontros em Amarante, Esmoriz, Maia, Famalicão, Ermesinde, Gaia, Póvoa de Varzim, Felgueiras, Braga,
Assim, pelo menos uma vez por ano, por altura do 26 de Abril, voltamos a ver-nos e… voltamos a afastar-nos. Sim, a afastar-nos. É que o número de participantes vai diminuído, seja por incapacidade física, menos interesse ou por ausência forçada devida a… mobilização definitiva para as bandas do Além.
Na igreja da Falperra. Valente e Miranda em primeiro plano - Foto de Dália Carneiro
Na concentração deste ano de 2016, beneficiámos de uma óptima organização do Ferreira de Braga. Fomos à missa à Igreja da Falperra, passámos pelo Sameiro e pelo Bom Jesus. Fomos participar num verdadeiro banquete lá para os lados de Póvoa de Lanhoso. O convívio decorreu maravilhosamente(!). Deu para falar com toda a gente, fossem camaradas ou seus familiares. E deu para recordar/estender/repetir/adulterar (involuntariamente, devido à degradação dos neurónios – ou pelo decurso do tempo ou pelo álcool ingerido) as histórias do costume. Tirando uma ou outra discussão provocatória de (pretensos) divisionistas da Pátria (entre Norte e Sul) ou alimentadores da eterna rivalidade futeboleira, tudo funcionou em ambiente cada vez mais tolerante e mais amistoso.
Silva e Miranda juntos da bandeira d”Os Ciganos” - Foto de Dália Carneiro
Durante esses relatos, notei que muitos já andam muito longe da verdade dos factos guerreiros ocorridos, deturpam-nos (involuntariamente), inventam histórias e outros… não se lembram de nada. É a vida!
Entre outras conversas, ouvi quem afirmasse que num ataque a Cabedu, se disparam umas cento e tal granadas de morteiro 81. (Será que havia assim tantas granadas no quartel?) Outro disse que vira um Furriel a tentar fazer fogo com um outro morteiro, apoiando-o nas costas de outro Furriel. E, como lamento da morte de um Alferes (que morreu devido a ferimentos nesse ataque, atingido dentro do abrigo mais seguro – o das transmissões), lembrou a sua bravura por ter vindo para a parada expondo-se ao fogo IN, apoiando a resposta ao ataque.
Também assisti às dúvidas de um Furriel, afirmando que a viagem do Norte para Lisboa não podia ter sido feita numa só noite, porque o comboio, naquele tempo, andava muito devagar. Portanto, segundo ele, a saída de Viana do Castelo fora no dia 25 de Abril e não na madrugada do próprio dia 26, dia do embarque no Uíge.
Desta vez, nem o Capitão Maia, nem o Alfero Branquinho apareceram. Foi a vez de alguns Furriéis botarem palavra.
Cheguei a ouvir um Furriel afirmar que o seu Alferes não estivera na OP da implantação do novo quartel de Gandembel, quando, afinal, esteve todo o tempo. E que, ele mesmo, em dado momento, chegara a comandar o Batalhão.
Enfim, um exemplo de afirmações que nunca ouvira antes. Não sei se a malta já está afectada por problemas de saúde ou é consequência de… medicação. A verdade é que se nota, cada vez mais, que alguns já acusam muito esquecimento, muita deturpação e muito cansaço cerebral.
De repente, como se estivesse ao espelho, sinto um calafrio e pensei:
- Será que eu também já estou afectado? Não, não pode ser.
A certa altura, abeirei-me do Valente, que eu havia ido buscar a Oliveira de Azeméis e que já não pode conduzir viaturas em virtude de um acidente sofrido numa pescaria na Barragem de Castelo de Bode, e perguntei-lhe:
- Está tudo bem? Porque estás tão calado?
- Olha, Silva, desta vez estou para aqui a observar a malta e verifico que o nosso fim está próximo. Lembras-te de quantos homens tinha a nossa Companhia? 153! - Sabes quantos estão aqui? 19! A maioria são familiares e a gente nem repara. Cada vez vêm mais familiares a acompanhar-nos, e sabes porquê? Porque nos vêm trazer e amparar. Andam a dar-nos as últimas alegrias.
Logo o tentei animar:
- Deixa-te de merdas, a malta está contente, vê se pensas em coisas boas e se tratas do “isco especial”, para voltarmos a pescar.
O Grande Valente, numa “bolanha do vale do Mondego” prepara-se para dar mais uma aula de bem pescar ao colega/amigo/vizinho Silva, companheiros de grandes lutas pela honra e dignidade dos militares da Cart 1689.
Com o Valente nas pescarias do Douro - Porto Antigo
Durante a sobremesa, o (político) experimentado Cepa, como sempre, manifestou a sua preocupação quanto ao “sacrificado” para a organização do próximo encontro. Para isso, fala-se com o “Póvoa”, para dar o seu habitual apoio e a sua prestimosa opinião. Seguem-se algumas trocas de palavras e “democraticamente” chega-se à conclusão de que o Seixas nos quer de novo em Felgueiras. Ninguém o contraria, nem as razões históricas do meio século da nossa saída de Viana do Castelo, alteraram a decisão. O Cepa acrescentou algumas palavras de afecto aos resultados do escrutínio. Felicitou os camaradas da guerra e, mais uma vez, desejou o melhor para todos os presentes.
De seguida falou o Miranda. Logo um sinal de que já estava “tocado”. (Pudera, sem sua Mulher Maria José a travá-lo e com a Filha Dália a fazer de condutora privativa, estava em roda livre). Quis exteriorizar toda a sua amizade ao grupo mas, sempre polémico e, em tom de brincadeira, claro, acabou lançando as mesmas farpas que tanto ocupavam os velhos tempos de caserna. E já gritava:
- “Abaixo os benfiquistas”, “morte aos mouros”, “o culpado foi Afonso que não tinha nada que ir conquistar Lisboa”…
Para que a coisa não aquecesse mais, tentei que ele mudasse o discurso de impropérios divisionistas e logo me acusou:
- Tu, cala-te que também és meio mouro, porque Crestuma fica do lado de lá do Rio Douro.
O que valeu foi que os incomodados da Cova da Piedade, de Massamá e de Loures atiraram-se a ele e levaram-no para junto do Bar.
Tive então a oportunidade de dizer alguma coisa. As palavras do Valente encaixaram na minha mente e parecia que não fugiam. É que também me vieram à cabeça as dificuldades que passei este inverno, com a deficiência respiratória que me tem atacado e com o AIT que sofri.
Pedi a intervenção e logo me emocionei. Assaltou-me essa ideia pavorosa de que me poderia estar a despedir. E, por outro lado, olhava para todos e pensava: Quem dentre eles poderá não estar cá no próximo ano?
Dominada a comoção, cuja razão não poderia exprimir, corri com os olhos todos os presentes naquele salão.
“Caros camaradas,
É com grande prazer que reunimos hoje mais uma vez. Já o fazemos há uns anitos. Convivemos abertamente, sentindo-nos regressados àqueles tempos da nossa juventude. Até parece que voltamos a ter os tais vinte e tal anos.
Tempos em que fomos espremidos e postos à prova extrema de todas as nossas capacidades.
Tempos em que cimentámos a nossa solidariedade e a nossa amizade.
Reparo que continuamos a olhar lá para longe, onde irmanados, vivemos os anos mais importantes das nossas vidas. São essas as sensações que ainda nos unem e que nos levarão até à morte.
Reparo também que já somos poucos, e que, possivelmente, não nos iremos encontrar muitas mais vezes.
Por isso, caros amigos, se me permitem um conselho de um dos mais velhos, vamos olhar mais para quem vive ao nosso lado. Olhar mais para quem sempre olhou por nós. Quem sempre nos acompanhou, nos tolerou e nos amou.
Julgo que ainda poderemos retribuir o amor e a atenção a esses entes mais queridos.
Eles bem o merecem!”
Brindámos, comemos o último pedaço de bolo e abraçámo-nos, mais que nunca. Notei que havia lágrimas naqueles sorrisos de alegria. Alguns abeiraram-se de mim e incentivaram:
- Força Silva, para o ano cá estaremos!
Mas houve quem me segredasse:
- Ó Silva, sei bem onde você queria chegar. O nosso fim está próximo.
Pensei, falando comigo mesmo: "Pode ser. Mas, depois, depois, tudo continua… nas cenas dos próximos capítulos".
Silva da Cart 1689
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Nota do editor
Último poste da série de 23 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16125: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (24): Memórias de guerra ou guerra de memórias?
Guiné 63/74 - P16373: Os nossos seres, saberes e lazeres (167): Rapazes (e raparigas), bebam vinho português, comam pêra rocha portugesa e cantem o fado português, porque no céu... não há disto!
33º Festival do Vinho Português e 23º Feira Nacional da Pêra Rocha > Bombarral, 2 a 7 de agosto de 2016 > 4º de agosto > 22h00 > Espetáculo com a fadista Carminho, um grande presença, corpo, alma e voz em palco... E boa continuação das férias para os felizardos que podem dar-se ao luxo de ter férias... (As imagens dos "outdoors" foram tiradas no recinto do festival e da feira, na magnífica mata municipal do Bombarral).
Fotos (e legenda): © Luís Graça (2016). Todos os direitos reservados . [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Nota do editor:
Último poste da série > 3 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16358: Os nossos seres, saberes e lazeres (166): Ai, se Bocage soubesse ou visse… (3) (Mário Beja Santos)
Último poste da série > 3 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16358: Os nossos seres, saberes e lazeres (166): Ai, se Bocage soubesse ou visse… (3) (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P16372: Parabéns a você (1116): Anselmo Reis Garvoa, ex-Fur Mil Op Esp da CCÇ 2315 (Guiné, 1968)
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Nota do editor
Último poste da série de > 8 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16368: Parabéns a você (1115): Henrique Martins de Castro, ex-Soldado Condutor Auto da CART 3521 (Guiné, 1971/74) e José Santos, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 3326 (Guiné, 1971/73)
Nota do editor
Último poste da série de > 8 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16368: Parabéns a você (1115): Henrique Martins de Castro, ex-Soldado Condutor Auto da CART 3521 (Guiné, 1971/74) e José Santos, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 3326 (Guiné, 1971/73)
segunda-feira, 8 de agosto de 2016
Guiné 63/74 - P16371: (In)citações (97): Ainda a história (verdadeira) da Cadi... Tive um grande orgulho quando a população de Bigene, em peso, se veio despedir de mim à pista, com lenços no ar e lágrimas nos olhos (Adão Cruz, ex-alf mil médico, CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)
(i) Comentário de Adão Pinho da Cruz, médico cardiologista, ex-alf mil médico, CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68) (*):
Caro Cherno Baldé, muito prazer em falar contigo. Tratemo-nos por tu, pois assim é que deve ser, e é muito mais democrático.
Obrigado por fazeres fé na minha observação, como sempre digo aos meus amigos do Blogue, eu fui um simples faxina no quartel, melhor dizendo, "um rafeiro de quartel", como haviam muitos, mas que durou por mais de 4 anos e que me deu a possibilidade de observar e de questionar muitas coisas que se passavam ao meu redor.
Sensibilizou-me bastante a descrição que acabas de fazer sobre os prisioneiros (***), facto verídico que eu posso confirmar pela minha própria experiência no quartel onde passei a minha infância.
Um abraço amigo,
Cherno Baldé
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 8 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16369: Em, bom português nos entendemos (14): a história da Cadi do dr. Adão Cruz e a expressão em crioulo "ka-misti" ou "n'ka-misti"(não quero) (Cherno Baldé, Bissaau)
(**) Último poste da série > 15 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16306: (In)citações (96): Nova Lamego, 15 de novembro de 1970, uma das noites mais longas das nossas vidas... Nós, miúdos, achamos que os nossos pais não choram, mas eu sei que também se chora em silêncio e sem lágrimas.... (Adelaide Barata Carrêlo, filha do ten SGE Barata, CCS/BCAÇ 2893, 1969/71)
(***) Vd.poste de 6 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16363: Os nossos médicos (88): Os prisioneiros (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547)
Caro Cherno Baldé, muito prazer em falar contigo. Tratemo-nos por tu, pois assim é que deve ser, e é muito mais democrático.
Muito obrigado pelos oportunos esclarecimentos, que registarei, pois estamos sempre a aprender. Sim, meu caro Cherno Baldé, a história da Cadi, rigorosamente verdadeira, é enternecedora e constitui um marco indelével, de relação humana, na minha vida de homem e de médico.
Como tu dizes, não seria fácil acontecer noutras terras, mas ali em Bigene, e um pouco pela minha acção, passe a presunção e a vaidade, a tropa e a população eram quase uma família. Como médico fiz tudo o que pude, como militar, nada de relevante. Até era tido como subversivo. A minha "bíblia" era o livro "Os Condenados da Terra" (Les Damnés de la Terre) de Frantz Fanon.
O comandante de batalhão gostava muito de mim, mas dizia que eu parecia um médico de asilados, ao que eu respondia: meu comandante, eu fui feito médico civil e não militar.
Mais uma vez perdoa-me a vaidade, mas tive um grande orgulho quando a população de Bigene, em peso, se veio despedir de mim à pista, com lenços no ar e lágrimas nos olhos. O próprio piloto da avioneta confessou-me que nunca tinha visto tal coisa e deu meia dúzia de voltas no ar antes de subir. Talvez o Cherno tenha razão, só num ambiente destes a história da Cadi poderia ter acontecido. (**)
Um grande abraço do Adão
8 de agosto de 2016 às 11:24
Um grande abraço do Adão
8 de agosto de 2016 às 11:24
Obrigado por fazeres fé na minha observação, como sempre digo aos meus amigos do Blogue, eu fui um simples faxina no quartel, melhor dizendo, "um rafeiro de quartel", como haviam muitos, mas que durou por mais de 4 anos e que me deu a possibilidade de observar e de questionar muitas coisas que se passavam ao meu redor.
Sensibilizou-me bastante a descrição que acabas de fazer sobre os prisioneiros (***), facto verídico que eu posso confirmar pela minha própria experiência no quartel onde passei a minha infância.
Um abraço amigo,
Cherno Baldé
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(*) Vd. poste de 8 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16369: Em, bom português nos entendemos (14): a história da Cadi do dr. Adão Cruz e a expressão em crioulo "ka-misti" ou "n'ka-misti"(não quero) (Cherno Baldé, Bissaau)
(**) Último poste da série > 15 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16306: (In)citações (96): Nova Lamego, 15 de novembro de 1970, uma das noites mais longas das nossas vidas... Nós, miúdos, achamos que os nossos pais não choram, mas eu sei que também se chora em silêncio e sem lágrimas.... (Adelaide Barata Carrêlo, filha do ten SGE Barata, CCS/BCAÇ 2893, 1969/71)
(***) Vd.poste de 6 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16363: Os nossos médicos (88): Os prisioneiros (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547)
Guiné 63/74 - P16370: Notas de leitura (867): O ensino da literatura da Guiné nas escolas portuguesas (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Agosto de 2015:
Queridos amigos,
Questiono se no sistema educativo e nas regiões em que estas crianças portuguesas descendentes de guineenses se contempla a realidade de um processo cultural que ele experimentam em casa ou sabem que existe, nas terras dos seus ascendentes.
Esta terá sido uma experiência, parece-me ter sido uma boa escolha incluir Abdulai Sila e Fausto Duarte, o primeiro é indiscutivelmente o nome sonante das letras guineenses e o segundo foi alguém que prestou serviços admiráveis ao que eu hoje chamo cultura luso-guineense, foi grande publicista, deixou obra que merecia ser cuidadosamente apreciada, é um caso raro de zelo nos estudos guineenses.
Um abraço
do Mário
O ensino da literatura da Guiné nas escolas portuguesas
Beja Santos
No século passado, aí por 1996 ou 1997, o Grupo de Trabalho dos Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses organizou material de suporte sobre literaturas africanas de língua portuguesa, para os três ciclos. Eram coordenadores científicos do projeto Aldónio Gomes e Fernanda Cavacas. O objetivo parece-nos óbvio: contribuir para o conhecimento de autores africanos de língua portuguesa, sugerir interpretações, apresentar leituras possíveis. No caso dos textos escolhidos para o terceiro ciclo de autores da Guiné-Bissau, os organizadores propuseram Abdulai Sila e Fausto Duarte, o primeiro com o excerto do seu livro “Eterna Paixão” e o segundo com o texto “Vamos à feira?” extraído do romance Auá, de Fausto Duarte.
O texto de Abdulai Sila foi uma escolha acertada, trata-se de uma narrativa de pendor urbano onde se apresentam conflitos entre dominador e dominado, mesmo num país que acedeu à independência. Tudo se inicia numa viagem de automóvel, alguém que regressa a casa, é um ponto de partida cinético, vigoroso: “Subitamente, sem ter reduzido a velocidade, encetou uma série de movimentos com ambos os braços, torcendo o volante do carro sem piedade. Deixou a estrada principal e meteu-se na estrada secundária que nascia logo ali, sem se anunciar. Segurou firmemente o volante enquanto os pneus gemiam ruidosamente e amaldiçoou, mais uma vez naquele dia, os que haviam decidido alterar o trajeto daquela estrada, desviando-a do circuito a que estava habituado”.
E depois o autor incute ao personagem sensações, aproxima-nos: “Durante alguns instantes sentiu-se impelido a abraçar e a puxar para mais perto de si o volante. Progressivamente, este sentimento foi-se tornando mais intenso e, subitamente, sem se dar conta disso, atingiu o seu auge, provocando uma vontade irresistível de fechar os olhos”.
Ele é cooperante, chama-se Daniel, vive numa moradia soberba, a empregada chama-se Mbubi, já entrada nos anos, fora muito bela, a sua filha mais velha era uma menina mulata, de patrão branco. Apercebemo-nos que Daniel está a viver um mau bocado, o seu entristecimento é explícito, Mbubi procura interpretá-lo. O Daniel está no seu escritório, aqui é confrontado com o processo multicultural que corresponde ao seu caráter: “Como um visitante de museu, foi apreciando as diversas obras de arte africana que apaixonadamente expusera na sala de visitas. Cada uma daquelas peças tinha um valor particular para ele: os primeiros tempos da sua estadia naquele país. Às vezes recordava com certa nostalgia aqueles tempos, que pareciam já tão remotos, que marcavam a abertura de um capítulo novo da sua vida. Recordava-se da avidez que tinha em descobrir e manifestar a sua africanidade, de explorar e valorizar tudo o que a seus olhos se apresentava como genuinamente africano. E foi precisamente nesses momentos que foi juntando os quadros, as estatuetas de madeira e outros objetos de arte que hoje enchiam as paredes e davam um aspeto museico, como dissera um dos amigos da época, à sua sala”.
Daniel e Mbubi conversam até que chega a Senhora, ressalta imediatamente a tensão existente no casal. A Senhora chama-se Ruth que asperamente recusa uma dispensa a Mbubi, esta sente-se humilhada.
Começam aqui as leituras possíveis deste trecho do romance “Eterna Paixão”: um cooperante, obviamente bem instalado naquela sociedade africana, atravessa um período de sofrimento, a empregada negra tem por ele uma grande afeição, mostra solicitude, a patroa é sobrecarregada na descrição pela autoridade intolerante, o egoísmo e o espírito de dominação. A sensibilidade de Mbubi é mais forte que a tensão no casal, ela sabe que aquela casa não voltará a ser a mesma.
Passemos agora para o trecho de Fausto Duarte, um escritor e publicista injustamente esquecido, intitulado “Vamos à feira?”. Este autor cabo-verdiano procura ir direto aos tons que são devidos a um ambiente africano: “Gigantescos poilões, árvores de grande porte, salientam-se no mato que abraça a cidade.
Ali em baixo, num martelar incessante, artífices consertam barcos, de quilhas voltadas, impelidos para a praia lamacenta. São estaleiros improvisados em barracões imundos. No porto, apesar da chuva, entrava embarcações tripuladas por Manjacos, marinheiros habituados às inclemências do tempo, tendo por bússola o instinto.
Lá no alto, um grande núcleo confuso de palhotas: Chão dos Papéis.
Na Morcunda, bairro Fula de Bissau, havia sossego nas ruas sinuosas, enlameadas pela chuva que corria abundante. Os homens, acocorados sob os alpendres de capim, conversavam distraídos a olhar a garotada nua que se banhava ao ar livre.
No céu sombrio, cor de chumbo, abriam-se paulatinamente claridades hesitantes, manchas vagas coloridas de azul translúcido. A chuva terminara, finalmente. - Auá, vamos à feira? – convidou Farió à Fula que tinha chegado na véspera.
As duas mulheres levando algumas cabaças na mão, desceram à cidade.
Bissau era um novo espetáculo para os olhos dessa rapariga habituada ainda à paisagem uniforme do mato e à vida de Sare-Sincham. Contemplava admirada os grandes armazéns, escassamente iluminados, sempre no mesmo estilo de igrejas provisórias, onde trabalham dezenas de indígenas, limpando mancarra, ensacando coconote para carregarem potentes camiões. Automóveis fugiam velozes, e Auá receosa de tanto bulício, agarrava-se a Farió, que lhe indicava a melhor forma de caminhar pela rua, que se tornara quase intransitável”. E chegam ao mercado, descrito primorosamente por Fausto Duarte, uma autêntica água-forte de pessoas, produtos, atmosferas.
Certamente que os autores pretenderam mostrar a Auá, vinda do interior, confrontada com o bulício de Bissau e o seu mercado, a babel étnica, os gritos e as lutas verbais, no fundo ambientes que o aluno conhece e reconhece.
Será que estas experiências de mostrar literatura africana a quem tem avós, pais e outros familiares guineenses, contribuem para ganhos de identidade e orgulho numa vivência pluricultural e de solidariedade com os ancestrais, com todos aqueles que ficaram e que sofrem a tragédia do subdesenvolvimento? Era bom que soubéssemos por onde param estas experiências e quais os seus resultados.
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Nota do editor
Último poste da série de 5 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16361: Notas de leitura (864): “A minha jornada em África”, por António Reis, Palavras e Rimas, Lda, 2015 (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Questiono se no sistema educativo e nas regiões em que estas crianças portuguesas descendentes de guineenses se contempla a realidade de um processo cultural que ele experimentam em casa ou sabem que existe, nas terras dos seus ascendentes.
Esta terá sido uma experiência, parece-me ter sido uma boa escolha incluir Abdulai Sila e Fausto Duarte, o primeiro é indiscutivelmente o nome sonante das letras guineenses e o segundo foi alguém que prestou serviços admiráveis ao que eu hoje chamo cultura luso-guineense, foi grande publicista, deixou obra que merecia ser cuidadosamente apreciada, é um caso raro de zelo nos estudos guineenses.
Um abraço
do Mário
O ensino da literatura da Guiné nas escolas portuguesas
Beja Santos
No século passado, aí por 1996 ou 1997, o Grupo de Trabalho dos Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses organizou material de suporte sobre literaturas africanas de língua portuguesa, para os três ciclos. Eram coordenadores científicos do projeto Aldónio Gomes e Fernanda Cavacas. O objetivo parece-nos óbvio: contribuir para o conhecimento de autores africanos de língua portuguesa, sugerir interpretações, apresentar leituras possíveis. No caso dos textos escolhidos para o terceiro ciclo de autores da Guiné-Bissau, os organizadores propuseram Abdulai Sila e Fausto Duarte, o primeiro com o excerto do seu livro “Eterna Paixão” e o segundo com o texto “Vamos à feira?” extraído do romance Auá, de Fausto Duarte.
O texto de Abdulai Sila foi uma escolha acertada, trata-se de uma narrativa de pendor urbano onde se apresentam conflitos entre dominador e dominado, mesmo num país que acedeu à independência. Tudo se inicia numa viagem de automóvel, alguém que regressa a casa, é um ponto de partida cinético, vigoroso: “Subitamente, sem ter reduzido a velocidade, encetou uma série de movimentos com ambos os braços, torcendo o volante do carro sem piedade. Deixou a estrada principal e meteu-se na estrada secundária que nascia logo ali, sem se anunciar. Segurou firmemente o volante enquanto os pneus gemiam ruidosamente e amaldiçoou, mais uma vez naquele dia, os que haviam decidido alterar o trajeto daquela estrada, desviando-a do circuito a que estava habituado”.
E depois o autor incute ao personagem sensações, aproxima-nos: “Durante alguns instantes sentiu-se impelido a abraçar e a puxar para mais perto de si o volante. Progressivamente, este sentimento foi-se tornando mais intenso e, subitamente, sem se dar conta disso, atingiu o seu auge, provocando uma vontade irresistível de fechar os olhos”.
Ele é cooperante, chama-se Daniel, vive numa moradia soberba, a empregada chama-se Mbubi, já entrada nos anos, fora muito bela, a sua filha mais velha era uma menina mulata, de patrão branco. Apercebemo-nos que Daniel está a viver um mau bocado, o seu entristecimento é explícito, Mbubi procura interpretá-lo. O Daniel está no seu escritório, aqui é confrontado com o processo multicultural que corresponde ao seu caráter: “Como um visitante de museu, foi apreciando as diversas obras de arte africana que apaixonadamente expusera na sala de visitas. Cada uma daquelas peças tinha um valor particular para ele: os primeiros tempos da sua estadia naquele país. Às vezes recordava com certa nostalgia aqueles tempos, que pareciam já tão remotos, que marcavam a abertura de um capítulo novo da sua vida. Recordava-se da avidez que tinha em descobrir e manifestar a sua africanidade, de explorar e valorizar tudo o que a seus olhos se apresentava como genuinamente africano. E foi precisamente nesses momentos que foi juntando os quadros, as estatuetas de madeira e outros objetos de arte que hoje enchiam as paredes e davam um aspeto museico, como dissera um dos amigos da época, à sua sala”.
Daniel e Mbubi conversam até que chega a Senhora, ressalta imediatamente a tensão existente no casal. A Senhora chama-se Ruth que asperamente recusa uma dispensa a Mbubi, esta sente-se humilhada.
Começam aqui as leituras possíveis deste trecho do romance “Eterna Paixão”: um cooperante, obviamente bem instalado naquela sociedade africana, atravessa um período de sofrimento, a empregada negra tem por ele uma grande afeição, mostra solicitude, a patroa é sobrecarregada na descrição pela autoridade intolerante, o egoísmo e o espírito de dominação. A sensibilidade de Mbubi é mais forte que a tensão no casal, ela sabe que aquela casa não voltará a ser a mesma.
Passemos agora para o trecho de Fausto Duarte, um escritor e publicista injustamente esquecido, intitulado “Vamos à feira?”. Este autor cabo-verdiano procura ir direto aos tons que são devidos a um ambiente africano: “Gigantescos poilões, árvores de grande porte, salientam-se no mato que abraça a cidade.
Ali em baixo, num martelar incessante, artífices consertam barcos, de quilhas voltadas, impelidos para a praia lamacenta. São estaleiros improvisados em barracões imundos. No porto, apesar da chuva, entrava embarcações tripuladas por Manjacos, marinheiros habituados às inclemências do tempo, tendo por bússola o instinto.
Lá no alto, um grande núcleo confuso de palhotas: Chão dos Papéis.
Na Morcunda, bairro Fula de Bissau, havia sossego nas ruas sinuosas, enlameadas pela chuva que corria abundante. Os homens, acocorados sob os alpendres de capim, conversavam distraídos a olhar a garotada nua que se banhava ao ar livre.
No céu sombrio, cor de chumbo, abriam-se paulatinamente claridades hesitantes, manchas vagas coloridas de azul translúcido. A chuva terminara, finalmente. - Auá, vamos à feira? – convidou Farió à Fula que tinha chegado na véspera.
As duas mulheres levando algumas cabaças na mão, desceram à cidade.
Bissau era um novo espetáculo para os olhos dessa rapariga habituada ainda à paisagem uniforme do mato e à vida de Sare-Sincham. Contemplava admirada os grandes armazéns, escassamente iluminados, sempre no mesmo estilo de igrejas provisórias, onde trabalham dezenas de indígenas, limpando mancarra, ensacando coconote para carregarem potentes camiões. Automóveis fugiam velozes, e Auá receosa de tanto bulício, agarrava-se a Farió, que lhe indicava a melhor forma de caminhar pela rua, que se tornara quase intransitável”. E chegam ao mercado, descrito primorosamente por Fausto Duarte, uma autêntica água-forte de pessoas, produtos, atmosferas.
Certamente que os autores pretenderam mostrar a Auá, vinda do interior, confrontada com o bulício de Bissau e o seu mercado, a babel étnica, os gritos e as lutas verbais, no fundo ambientes que o aluno conhece e reconhece.
Será que estas experiências de mostrar literatura africana a quem tem avós, pais e outros familiares guineenses, contribuem para ganhos de identidade e orgulho numa vivência pluricultural e de solidariedade com os ancestrais, com todos aqueles que ficaram e que sofrem a tragédia do subdesenvolvimento? Era bom que soubéssemos por onde param estas experiências e quais os seus resultados.
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Nota do editor
Último poste da série de 5 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16361: Notas de leitura (864): “A minha jornada em África”, por António Reis, Palavras e Rimas, Lda, 2015 (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P16369: Em, bom português nos entendemos (14): a história da Cadi do dr. Adão Cruz e a expressão em crioulo "ka-misti" ou "n'ka-misti"(não quero) (Cherno Baldé, Bissaau)
Comentário do Cherno Baldé ao poste P16356 (*)
[Foto à esquerda, Cherno Baldé, o nosso "agente" em Bissau (na realidade, este "menino" de Fajonquito, hoje homem grande, pai de 4 filhos, casado com um bonita nalu, quadro superior com formação universitária na ex-URSS e em Portugal, representa todos os nossos amigos guineenses que não têm forma de comunicar connosco, e que mantêm, com os portugueses, antigos combatentes, fortes laços afetivos, baseados numa experiência e num respeito comuns)]....
Caros amigos,
Com algum atraso, mas esperando chegar a tempo de corresponder ao desejo de alguns amigos que pedem a minha opinião, aqui vai:
1. A tradução da Tabanca Grande (Editores) esta correcta. o "ka" ou "ca" é um prefixo que dá a forma negativa da palavra em crioulo da Guiné, mas que pode tomar certas variações, por ex: "ka-misti"="n'ka-misti" (não quero); "n'kana-bai" (não vou).
2. Quanto à história [do dr. Adão Cruz], devo dizer que, se se tratar de uma ficção, estou de acordo com a apreciação da malta em geral, mas se se tratar da descrição de um acontecimento factual, então eu teria algumas reservas, sobretudo no referente a descrição do contexto, pois o nome Cadi (de origem árabe, Cadijah) é pouco provável que fosse utilizado, naquela altura, pelo grupo Balanta (ver Balanta animista) e, mesmo que fosse, seria do grupo chamado Balanta-Mané, que por força de uma "colonização" ou assimilação Mandinga dos séculos anteriores à chegada dos europeus a África, é o mais próximo dos Muçulmanos, mesmo se muitos continuam nas práticas culturais dos seus antepassados animistas. Os Balanta-Mané habitam maioritariamente a região de Cacheu, áreas de Bigene, Barro, Binta e Guidage e a região de Óio (Bissorã e Farim).
O contexto utilizado como fundo da narrativa é um contexto plausível, na altura, para a zona leste ou algumas partes da zona sul (Aldeia Formosa, Guilege, Gadamael, etc.), onde a interação com a população decorria em condições mais amigáveis, mesmo se predominava a desconfiança, própria de uma guerra subversiva.
Com um abraço amigo,
Cherno Balde (**)
4 de agosto de 2016 às 11:25
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 2 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16356: Os nossos médicos (87): Cadi suma outra mulher (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547)
(**) Último poste da série > 9 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15726: Em bom português nos entendemos (13): "Nhanhero" e não "nanheiro": é o nome para o instrumento fula, cordófono, do qual o Valdemar Queiroz "Embaló" contou aqui uma edificante história (Cherno Baldé, Bissau)
[Foto à esquerda, Cherno Baldé, o nosso "agente" em Bissau (na realidade, este "menino" de Fajonquito, hoje homem grande, pai de 4 filhos, casado com um bonita nalu, quadro superior com formação universitária na ex-URSS e em Portugal, representa todos os nossos amigos guineenses que não têm forma de comunicar connosco, e que mantêm, com os portugueses, antigos combatentes, fortes laços afetivos, baseados numa experiência e num respeito comuns)]....
Caros amigos,
Com algum atraso, mas esperando chegar a tempo de corresponder ao desejo de alguns amigos que pedem a minha opinião, aqui vai:
1. A tradução da Tabanca Grande (Editores) esta correcta. o "ka" ou "ca" é um prefixo que dá a forma negativa da palavra em crioulo da Guiné, mas que pode tomar certas variações, por ex: "ka-misti"="n'ka-misti" (não quero); "n'kana-bai" (não vou).
2. Quanto à história [do dr. Adão Cruz], devo dizer que, se se tratar de uma ficção, estou de acordo com a apreciação da malta em geral, mas se se tratar da descrição de um acontecimento factual, então eu teria algumas reservas, sobretudo no referente a descrição do contexto, pois o nome Cadi (de origem árabe, Cadijah) é pouco provável que fosse utilizado, naquela altura, pelo grupo Balanta (ver Balanta animista) e, mesmo que fosse, seria do grupo chamado Balanta-Mané, que por força de uma "colonização" ou assimilação Mandinga dos séculos anteriores à chegada dos europeus a África, é o mais próximo dos Muçulmanos, mesmo se muitos continuam nas práticas culturais dos seus antepassados animistas. Os Balanta-Mané habitam maioritariamente a região de Cacheu, áreas de Bigene, Barro, Binta e Guidage e a região de Óio (Bissorã e Farim).
O contexto utilizado como fundo da narrativa é um contexto plausível, na altura, para a zona leste ou algumas partes da zona sul (Aldeia Formosa, Guilege, Gadamael, etc.), onde a interação com a população decorria em condições mais amigáveis, mesmo se predominava a desconfiança, própria de uma guerra subversiva.
Com um abraço amigo,
Cherno Balde (**)
4 de agosto de 2016 às 11:25
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 2 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16356: Os nossos médicos (87): Cadi suma outra mulher (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547)
(**) Último poste da série > 9 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15726: Em bom português nos entendemos (13): "Nhanhero" e não "nanheiro": é o nome para o instrumento fula, cordófono, do qual o Valdemar Queiroz "Embaló" contou aqui uma edificante história (Cherno Baldé, Bissau)
Guiné 63/74 - P16368: Parabéns a você (1115): Henrique Martins de Castro, ex-Soldado Condutor Auto da CART 3521 (Guiné, 1971/74) e José Santos, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 3326 (Guiné, 1971/73)
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Nota do editor
Último poste da série de 4 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16359: Parabéns a você (1114): José Nunes, ex-1.º Cabo Mec. Electricista do BENG 447 (Guiné, 1968/70) e TCor Inf Ref Rui Alexandrino Ferreira, ex-Alf Mil da CCAÇ 1420 (Guiné, 1965/67) e Cap Inf, CMDT da CCAÇ 18 (Guiné, 1970/72)
domingo, 7 de agosto de 2016
Guine 63/74 - P16367: Álbum fotográfico de Adelaide Barata Carrêlo, a filha do ten SGE Barata (CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego, 1969/71): um regresso emocionado - Parte III: Buba, uma das terras mais bonitas que conheci
Fotos: © Adelaide Carrêlo (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Adelaide Carrelo | 26/07/2016
Assunto - A viagem pela minha Guiné
Olá Luís,
Esta viagem podia ser intitulada de "Branco umbelélé", esta era a saudação por quem passávamos ao longo das aldeias, pelas crianças principalmente.
À medida que nos afastávamos de Bissau, a paisagem abraçavamo-nos como irmãos que retornam. Os sorrisos das crianças eram mais sonoros e as mãos dos adultos mais demoradas nas nossas.
No dia 23 de Outubro conheci uma das terras mais bonitas da Guiné - Buba.
PS- Gostaria de te contar uma conversa que tive com um colega do meu filho de Bambadinca - ele diz que os poucos turistas que vão à Guiné, gostam de tirar fotos ao que há de mais desagradável, explorando a imagem do lixo, da pobreza, etc. Pelo respeito que tenho a esta GENTE, pelo amor que tenho a esta terra, pelo sonho de lá voltar, não esperem de mim tais imagens. Eu sou assim!!!
___________
Nota do editor:
Último poste da série > 26 de julho de 2016 >Guine 63/74 - P16333: Álbum fotográfico de Adelaide Barata Carrêlo, a filha do ten SGE Barata (CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego, 1969/71): um regresso emocionado - Parte II: Bissau Velho
Guiné 63/74 - P16366: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (14): O padre de Guidaje (imã)
1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 1 de Agosto de 2016:
Com votos de saúde, e de boa férias, tomo a liberdade de remeter mais um pequeno texto, que poderá ser inserido no Blogue.
Aproveito também a oportunidade para mandar ao Dr. Adão Cruz, médico do Batalhão 1887, a que pertenci, UM GRANDE ABRAÇO.
Domingos Gonçalves
MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546
O padre de Guidaje (imã)
O sacerdote da religião muçulmana é, talvez, a pessoa mais importante e mais influente de Guidage. É um homem virtuoso e bom. Para além da actividade religiosa propriamente dita, a que se dedica com muita devoção, ele é também o professor de árabe, que todos os dias vai ensinando à criançada os segredos da língua em que foi escrito o Sagrado Alcorão.
Como seria bom que existisse aqui, também, uma escola e um professor, onde estas crianças pudessem aprender, em simultâneo com o árabe, a língua portuguesa! Mas a nossa administração, infelizmente, nunca se preocupou com isso.
Mas o padre, dá gosto vê-lo, junto da sua casa humilde, rodeado de crianças que seguram nas mãos pequenas tabuinhas, onde vão escrevendo, com uma tinta preta, o alfabeto árabe, ou outros exercícios que, pacientemente, lhes vai ensinando.
Sob a capa de um homem simples, que de facto é, esconde-se uma personagem culta, conhecedora da história do seu povo. Às vezes falo com ele, sempre com muita seriedade, por forma a que das diferenças entre aquilo em que os dois acreditamos, nada surja que o possa magoar.
Recentemente ofereceu-se para me ensinar a língua árabe. Estive tentado a iniciar as lições. Todavia, porque não irei ficar por aqui o tempo suficiente para assimilar seja o que for, preferi não dar início ao estudo. Mas fica-me uma certa pena.
Em conversa recente dizia-me:
- Hoje são os portugueses que estão na Guiné e mandam nesta terra e neste povo. Mas não foi sempre assim. Tempos houve, já muito longínquos, em que foi o meu povo que mandou em Lisboa(1). Foi destas terras que partiu um conquistador poderoso que dominou pela força das armas todas as terras africanas a norte da Guiné, e chegou mesmo a mandar em Lisboa. Foi uma dominação quase que efémera, mas que aconteceu.
Ainda há pouco tempo fui convidado para ser o “padrinho” de uma menina recém nascida. E ele lá estava na cerimónia.
A dado momento, enquanto o sangue de uma galinha decepada jorrava para o chão, perguntaram-me o nome que dava à criança. E eu respondi:
- Quero que se chame Fátima. É um nome muito bonito.
E ele, o padre, respondeu-me:
- Sim! É um nome muito bonito! “Alfero” sabe. É o nome da filha do profeta. Trata-se do nome de uma grande mulher que todos veneramos e por quem temos muito respeito.
E acrescentou:
- O “Alfero”, ao escolher o nome já sabia que o povo ia gostar muito. E a menina, quando crescer, vai sentir-se orgulhosa do nome que o “alfero” lhe deu.
Em conversa recente lamentava-se:
- Quando a guerra começou a tropa dizia-nos que ao fim de três ou quatro anos tudo estaria terminado. Mas isso ainda não aconteceu. Os anos foram-se passando, e a guerra, em vez e terminar, tem continuado cada vez mais implacável e dura. E a paz não se vislumbra ainda no horizonte.
Com uma certa tristeza perguntava-me:
- “Alfero”... Esta guerra quanto tempo mais irá ainda durar? Este povo, quando voltará a ter paz? Todo este sofrimento a que o povo está sujeito, por quanto tempo ainda se prolongará?
Com alguma dificuldade respondi-lhe que esta guerra ainda vai durar muitos anos e que ninguém poderá vaticinar-lhe o fim.
Ele entende que nós, os que estamos aqui, não temos nas mãos o poder que permita decidir seja o que for nesta matéria, assim como ele, e o resto do povo, que também não têm voz activa em nada que respeite à definição do futuro desta terra e desta gente.
Ele entende, e bem, que o futuro de muitos é decidido pelo capricho de uns poucos, que indevidamente assumem e exercem um poder que ninguém lhes confiou. Quer nós, quer os turras, dizemos que é em nome do povo, e para bem do povo, que esta guerra se faz. Mas, ninguém perguntou ao povo o que de facto pretende, que futuro deseja ter. Todos pretendem falar em nome do povo. Todos pretendem actuar e fazer a guerra em nome desse mesmo povo. Todos mobilizam os filhos do povo para a guerra, colocando guinéus contra guinéus.
E o povo, esse, termina por não ter nada daquilo que precisa, destruindo-se mesmo ao lutar de um e do outro lados.
Nota:
(1) - Referia-se, penso eu, às invasões muçulmanas, dos almorávidas, provenientes do Norte de África
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Nota do editor
Último poste da série de 21 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15648: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil) (13): Dias 13 e 14 de Dezembro de 1967
Com votos de saúde, e de boa férias, tomo a liberdade de remeter mais um pequeno texto, que poderá ser inserido no Blogue.
Aproveito também a oportunidade para mandar ao Dr. Adão Cruz, médico do Batalhão 1887, a que pertenci, UM GRANDE ABRAÇO.
Domingos Gonçalves
MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546
O padre de Guidaje (imã)
O sacerdote da religião muçulmana é, talvez, a pessoa mais importante e mais influente de Guidage. É um homem virtuoso e bom. Para além da actividade religiosa propriamente dita, a que se dedica com muita devoção, ele é também o professor de árabe, que todos os dias vai ensinando à criançada os segredos da língua em que foi escrito o Sagrado Alcorão.
Como seria bom que existisse aqui, também, uma escola e um professor, onde estas crianças pudessem aprender, em simultâneo com o árabe, a língua portuguesa! Mas a nossa administração, infelizmente, nunca se preocupou com isso.
Mas o padre, dá gosto vê-lo, junto da sua casa humilde, rodeado de crianças que seguram nas mãos pequenas tabuinhas, onde vão escrevendo, com uma tinta preta, o alfabeto árabe, ou outros exercícios que, pacientemente, lhes vai ensinando.
Sob a capa de um homem simples, que de facto é, esconde-se uma personagem culta, conhecedora da história do seu povo. Às vezes falo com ele, sempre com muita seriedade, por forma a que das diferenças entre aquilo em que os dois acreditamos, nada surja que o possa magoar.
Recentemente ofereceu-se para me ensinar a língua árabe. Estive tentado a iniciar as lições. Todavia, porque não irei ficar por aqui o tempo suficiente para assimilar seja o que for, preferi não dar início ao estudo. Mas fica-me uma certa pena.
Em conversa recente dizia-me:
- Hoje são os portugueses que estão na Guiné e mandam nesta terra e neste povo. Mas não foi sempre assim. Tempos houve, já muito longínquos, em que foi o meu povo que mandou em Lisboa(1). Foi destas terras que partiu um conquistador poderoso que dominou pela força das armas todas as terras africanas a norte da Guiné, e chegou mesmo a mandar em Lisboa. Foi uma dominação quase que efémera, mas que aconteceu.
Ainda há pouco tempo fui convidado para ser o “padrinho” de uma menina recém nascida. E ele lá estava na cerimónia.
A dado momento, enquanto o sangue de uma galinha decepada jorrava para o chão, perguntaram-me o nome que dava à criança. E eu respondi:
- Quero que se chame Fátima. É um nome muito bonito.
E ele, o padre, respondeu-me:
- Sim! É um nome muito bonito! “Alfero” sabe. É o nome da filha do profeta. Trata-se do nome de uma grande mulher que todos veneramos e por quem temos muito respeito.
E acrescentou:
- O “Alfero”, ao escolher o nome já sabia que o povo ia gostar muito. E a menina, quando crescer, vai sentir-se orgulhosa do nome que o “alfero” lhe deu.
Em conversa recente lamentava-se:
- Quando a guerra começou a tropa dizia-nos que ao fim de três ou quatro anos tudo estaria terminado. Mas isso ainda não aconteceu. Os anos foram-se passando, e a guerra, em vez e terminar, tem continuado cada vez mais implacável e dura. E a paz não se vislumbra ainda no horizonte.
Com uma certa tristeza perguntava-me:
- “Alfero”... Esta guerra quanto tempo mais irá ainda durar? Este povo, quando voltará a ter paz? Todo este sofrimento a que o povo está sujeito, por quanto tempo ainda se prolongará?
Com alguma dificuldade respondi-lhe que esta guerra ainda vai durar muitos anos e que ninguém poderá vaticinar-lhe o fim.
Ele entende que nós, os que estamos aqui, não temos nas mãos o poder que permita decidir seja o que for nesta matéria, assim como ele, e o resto do povo, que também não têm voz activa em nada que respeite à definição do futuro desta terra e desta gente.
Ele entende, e bem, que o futuro de muitos é decidido pelo capricho de uns poucos, que indevidamente assumem e exercem um poder que ninguém lhes confiou. Quer nós, quer os turras, dizemos que é em nome do povo, e para bem do povo, que esta guerra se faz. Mas, ninguém perguntou ao povo o que de facto pretende, que futuro deseja ter. Todos pretendem falar em nome do povo. Todos pretendem actuar e fazer a guerra em nome desse mesmo povo. Todos mobilizam os filhos do povo para a guerra, colocando guinéus contra guinéus.
E o povo, esse, termina por não ter nada daquilo que precisa, destruindo-se mesmo ao lutar de um e do outro lados.
Nota:
(1) - Referia-se, penso eu, às invasões muçulmanas, dos almorávidas, provenientes do Norte de África
____________
Nota do editor
Último poste da série de 21 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15648: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil) (13): Dias 13 e 14 de Dezembro de 1967
Guiné 63/74 - P16365: Blogpoesia (464): "De andarilho" e "O mês de Agosto...", por J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728
1. Mais dois belíssimos poemas do nosso camarada Joaquim Luís
Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), dos que nos vai enviando ao longo da semana, e que nós recebemos e publicamos com prazer:
De andarilho...
- Perna boa à frente.
A má atrás.
E o contrário, para trás!
Me ensinou veementemente,
a jovem terapeuta negra,
esta manhã.
Assim começou a minha primeira aula de andarilho.
Nunca pensei precisar, um dia, de um andarilho.
Sem pressas...
Numa corda bamba,
O abismo ao fundo,
À velocidade de 5 metros por minuto.
Recomecei nova etapa da minha vida.
Dá para tudo a lentidão.
Até para pensar que ninguém vale nada,
dum momento para o outro.
Carlos Lopes ou Rosa Mota...
Se uma artrose nos tolher os passos
e nos martirizar a vida.
É preciso extirpar os ossos reles
e recorrer a uns de massa ou ferro,
à força de muita martelada,
para tudo ficar no sítio.
O que vale é que o corpo
não faz cerimónias
e aceita tudo.
O que lhe dão,
a bem ou a mal,
para bem do dono.
Depois, devota-se a um trabalho oculto
de assimilação.
Vai grudá-los,
como se fossem de osso
e, ao cabo duns meses,
é tudo já uma família que se dá bem.
E vai fora o andarilho!
Pelo menos, assim o creio e espero...
Parque das Nações, Clínica da Cuf,
6 de Agosto de 2016
enquanto ali à frente, os teleféricos se divertem num vai e vém constante, mirando o Tejo
Jlmg
Joaquim Luís Mendes Gomes
O mês de Agosto…
Ai, os sabores que me traz
O primeiro de Agosto!...
O mês do calor sem ferir
E do sol a brilhar.
Da praia a valer
Nas póvoas do mar.
Das uvas com cor
E passaredo a cantar.
Os foguetes subindo
As bandas tocando.
O mundo em festa
E o Minho também.
Senhora da Guia!
Rainha dos mares.
Senhora da Penha,
Ali à beirinha,
Nasceu Portugal.
Tocam as noras,
Searas verdinhas.
Andorinhas pelo chão,
Espalhando alegria.
São longos os dias
Para podermos brincar.
As noites estreladas,
Banhadas de lua.
Que geometria mais bela,
Espalhada no céu,
Luzindo a prata.
Que histórias tão lindas,
Nos contava o avô,
Na soleira das portas!...
Tapada de Mafra, 1 de Agosto de 2016
7h27m
Amanhecer cinzento
Jlmg
Joaquim Luís Mendes Gomes
____________
Nota do editor
Último poste da série de 31 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16350: Blogpoesia (463): "Tapada real" e "Claudio Abado...", por J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728
De andarilho...
- Perna boa à frente.
A má atrás.
E o contrário, para trás!
Me ensinou veementemente,
a jovem terapeuta negra,
esta manhã.
Assim começou a minha primeira aula de andarilho.
Nunca pensei precisar, um dia, de um andarilho.
Sem pressas...
Numa corda bamba,
O abismo ao fundo,
À velocidade de 5 metros por minuto.
Recomecei nova etapa da minha vida.
Dá para tudo a lentidão.
Até para pensar que ninguém vale nada,
dum momento para o outro.
Carlos Lopes ou Rosa Mota...
Se uma artrose nos tolher os passos
e nos martirizar a vida.
É preciso extirpar os ossos reles
e recorrer a uns de massa ou ferro,
à força de muita martelada,
para tudo ficar no sítio.
O que vale é que o corpo
não faz cerimónias
e aceita tudo.
O que lhe dão,
a bem ou a mal,
para bem do dono.
Depois, devota-se a um trabalho oculto
de assimilação.
Vai grudá-los,
como se fossem de osso
e, ao cabo duns meses,
é tudo já uma família que se dá bem.
E vai fora o andarilho!
Pelo menos, assim o creio e espero...
Parque das Nações, Clínica da Cuf,
6 de Agosto de 2016
enquanto ali à frente, os teleféricos se divertem num vai e vém constante, mirando o Tejo
Jlmg
Joaquim Luís Mendes Gomes
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O mês de Agosto…
Ai, os sabores que me traz
O primeiro de Agosto!...
O mês do calor sem ferir
E do sol a brilhar.
Da praia a valer
Nas póvoas do mar.
Das uvas com cor
E passaredo a cantar.
Os foguetes subindo
As bandas tocando.
O mundo em festa
E o Minho também.
Senhora da Guia!
Rainha dos mares.
Senhora da Penha,
Ali à beirinha,
Nasceu Portugal.
Tocam as noras,
Searas verdinhas.
Andorinhas pelo chão,
Espalhando alegria.
São longos os dias
Para podermos brincar.
As noites estreladas,
Banhadas de lua.
Que geometria mais bela,
Espalhada no céu,
Luzindo a prata.
Que histórias tão lindas,
Nos contava o avô,
Na soleira das portas!...
Tapada de Mafra, 1 de Agosto de 2016
7h27m
Amanhecer cinzento
Jlmg
Joaquim Luís Mendes Gomes
____________
Nota do editor
Último poste da série de 31 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16350: Blogpoesia (463): "Tapada real" e "Claudio Abado...", por J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728
sábado, 6 de agosto de 2016
Guiné 63/74 - P16364: Inquérito 'on line' (65): em outubro de 1963, quando parti para o CTIG, deram-me um kit de sobrevivência: canivete de bolso com saca-rolhas, abre-latas e abre-cápsulas; copo, prato, marmita, colher e garfo, tudo inox (José Botelho, ex-sold trms, CCAÇ 557, Cachil, Bissau, Bafatá, 1963/65)
Parte do kit de sobrevivência
De: José Colaço | Data: 1 de agosto de 2016 às 22:53 | Assunto: kit de sobrevivência
Foto à esquerda_osé [Botelho] Colaço ex-soldado trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), membro da nossa Tabanca Grande desde 2 de junho de 2008: tem 70 referência no nosso blogue.
Luís, depois do inquérito sobre a faca de mato (*), parece-me que seria interessante saber como é que foi evoluindo a percepção da hierarquia relativamente às necessidades dos militares no mato e como se foi melhorando o kit de sobrevivência.
_______________
Se te parecer que tem interesse debater este tema, fica à tua consideração.
Na minha partida para a guerra da Guiné em outubro de 1963 entregaram-me como kit de sobrevivência as seguintes peças:
Na minha partida para a guerra da Guiné em outubro de 1963 entregaram-me como kit de sobrevivência as seguintes peças:
(i) um canivete de bolso, marca Icel, inox, com oito cm, provido de saca-rolhas, abre latas e abre cápsulas;
(ii) um copo inox;
(iii) e um prato inox .
Têm gravado no fundo: INOX, o escudo de Portugal e as letras E.P., o que se pode
confirmar aumentando o zoom na foto do fundo do copo parte exterior [Imagem á direita].
Deste kit envio fotos, em anexo. O prato está muito mal estimado pois serviu de assador de castanhas e vai daí as suas mazelas. As restantes peças, que passo a enumerar, ao longo destes 53 anos desapareceram: colher, e o garfo de cabo anão e uma marmita.
Este kit de sobrevivência era oferecido e fazia parte dos bens próprios do militar sem direito a espólio.
Mas notei que em referência à faca de mato foi evoluindo e até fazia parte do equipamento militar, aqui fico com algumas dúvidas se seria ou não devolvida, se fazia parte do equipamento militar, ou do kit de sobrevivência.
Este kit de sobrevivência era oferecido e fazia parte dos bens próprios do militar sem direito a espólio.
Mas notei que em referência à faca de mato foi evoluindo e até fazia parte do equipamento militar, aqui fico com algumas dúvidas se seria ou não devolvida, se fazia parte do equipamento militar, ou do kit de sobrevivência.
Houve casos de oportunismo. inclusive eu que, quando fiz o resto do espólio no RI 16 em Évora, disse ao sargento que eu não tinha recebido boina mas sim um bivaque que entreguei em troca da boina. Porque se o sargento não comesse a peta, eu na minha mente, e para não arranjar problemas, o que tinha a fazer era pagar a boina.
Um Ab, Colaço
Nota do editor:
(*) Vd. poste de 29 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16344: Inquérito 'on line' (64): Para que servia a faca de mato ? Num total de 90 respostas, 32 % diz que nunca teve nenhuma; para 41% era o nosso "canivete suiço"; para 31%, um abre-latas; e para 23%, uma preciosa ferramenta de sapador... Também era "arma de defesa" (17%), "ronco" (13%) e "amiga inseparável" (10%)
(*) Vd. poste de 29 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16344: Inquérito 'on line' (64): Para que servia a faca de mato ? Num total de 90 respostas, 32 % diz que nunca teve nenhuma; para 41% era o nosso "canivete suiço"; para 31%, um abre-latas; e para 23%, uma preciosa ferramenta de sapador... Também era "arma de defesa" (17%), "ronco" (13%) e "amiga inseparável" (10%)
Guiné 63/74 - P16363: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (3): Os prisioneiros
1. Dramática narrativa das condições em que foram encontrados 4 prisioneiros, enviada ao nosso Blogue pelo nosso camarada Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), em mensagem do dia 25 de Julho de 2016:
MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA
3 - Os prisioneiros
No tempo de sem janelas e sem vistas para o mar, eu dormia a madrugada dessa noite igual a tantas outras. Igual, não seria. Dois gritos lancinantes atravessaram a noite, degolando o silêncio. Como ecos do inferno. Os ataques não explodem assim! Nenhum homem grita do fundo do tempo! Nenhum animal selvagem ruge tão perto!
Virei-me para dentro do medo e verguei-o à razão. A razão das sobras do medo.
Passos na picada. Voz de sentinela apunhalando o escuro.
- Sr. Doutor, Sr. Doutor.
Dei um salto da cama levando de rosto a rede mosquiteira. Não dei com a luz, mas o raiar da madrugada permitiu que eu visse a silhueta do soldado.
- Algum problema?
- Um prisioneiro.
- Prisioneiro? Que prisioneiro?
- O Sr. Doutor não sabe?
Entre a minúscula enfermaria e a pista térrea de aviação havia um bloco de cimento com meia dúzia de metros por outra meia. Uma porta, duas sentinelas, outra porta. Esta última era uma barragem de tábuas pregadas e entrelaçadas, com uma frincha no meio por onde enfiavam restos de comida.
Dentro do ventre de cimento, disseram que eu iria encontrar quatro pessoas, três homens e uma mulher. Da garganta de uma delas haviam rebentado os gritos que arrepiaram os soldados. Maior este medo do que o medo das balas. Soava a algo do outro mundo, a almas penadas.
Tínhamos chegado ao mato há poucos dias. Os soldados sabiam de quatro prisioneiros deixados pela companhia anterior. Mas não sabiam o que continha aquela enxovia. Que seres havia para lá daquela porta. Entrei. Ia desmaiando. Devo ter inalado o cheiro mais nauseabundo que algum dia a minha imaginação concebeu. Misto de excrementos putrefactos, de fetidez condensada e de gangrenosas decomposições liquefeitas em suores, lágrimas e merda. Nem um buraco. Nem uma nesga de luz.
Arrastámos para o pequeno átrio o corpo que gritava. Um monte de trampa invadido de convulsões epilépticas. A boca espumava sangue. As carnes eram de pedra.
Já o sol enchia a entrada. Mandei retirar os prisioneiros daquele túmulo de cimento e deitei-os sobre a terra seca. Abri os olhos. Em toda a minha vida nunca vi tal coisa. Na explosão da luz, todos aqueles pares de olhos se injectaram de sangue como se houvessem rebentado. Uma violenta conjuntivite, reacção imediata a uma luz que não viam há muitos meses. Não é fácil descrever este quadro mesmo a anos de distância. Ainda sinto o espírito retorcido como pano de limpar o chão. Perguntava-me eu, ao olhar aqueles corpos dilacerados, o que teria acontecido. Um deles tinha um pedaço de lábio fendido cicatrizado por segunda intenção, a par de inúmeros golpes na face e no pescoço. Outro tinha parte da orelha colada à cara e um sobrolho caído. Outro era apenas um velho. Os cabelos cresceram e formavam uma pasta de alcatrão agarrada à cabeça. Restos de trapos colavam-se aos corpos. Um deles parecia uma mulher. Era uma mulher. A não ser que lhe tivessem cortado o pénis. Pela vagina escorria pus esverdeado e chamava-se Maria. Provavelmente era virgem, apesar de tantos soldados terem violado a sua podridão.
Atravessei num vómito a parada e fui falar ao capitão. Ele não assumia a responsabilidade da libertação. Assumi-a eu, como médico.
Foram tratados e alimentados. O epiléptico, que era o mais novo, fugiu. Atravessou a pista, galgou o arame farpado, e desapareceu na selva. A sentinela ainda engatilhou uma rajada que não chegou a disparar. Outro foi integrado. Quando vim embora cultivava arroz e algum medo pela minha ausência. O velho, recuperadas as forças, gastou-as a cortar a garganta com os vidros de uma garrafa. Poupados os vasos do pescoço, vi que valia a pena pedir uma evacuação “Y”, ou seja, emergente. Duas semanas depois o helicóptero trouxe-o de regresso, curado. A Maria foi cuidadosamente tratada durante meses, de todas as infecções físicas e psíquicas. Teve um filho nascido do amor de um soldado. Quando a deixei, não consegui ver o que havia por detrás do mar de lágrimas dos seus olhos.
Penso que era vida.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 2 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16356: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (2): Cadi suma outra mulher
MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA
3 - Os prisioneiros
No tempo de sem janelas e sem vistas para o mar, eu dormia a madrugada dessa noite igual a tantas outras. Igual, não seria. Dois gritos lancinantes atravessaram a noite, degolando o silêncio. Como ecos do inferno. Os ataques não explodem assim! Nenhum homem grita do fundo do tempo! Nenhum animal selvagem ruge tão perto!
Virei-me para dentro do medo e verguei-o à razão. A razão das sobras do medo.
Passos na picada. Voz de sentinela apunhalando o escuro.
- Sr. Doutor, Sr. Doutor.
Dei um salto da cama levando de rosto a rede mosquiteira. Não dei com a luz, mas o raiar da madrugada permitiu que eu visse a silhueta do soldado.
- Algum problema?
- Um prisioneiro.
- Prisioneiro? Que prisioneiro?
- O Sr. Doutor não sabe?
Entre a minúscula enfermaria e a pista térrea de aviação havia um bloco de cimento com meia dúzia de metros por outra meia. Uma porta, duas sentinelas, outra porta. Esta última era uma barragem de tábuas pregadas e entrelaçadas, com uma frincha no meio por onde enfiavam restos de comida.
Dentro do ventre de cimento, disseram que eu iria encontrar quatro pessoas, três homens e uma mulher. Da garganta de uma delas haviam rebentado os gritos que arrepiaram os soldados. Maior este medo do que o medo das balas. Soava a algo do outro mundo, a almas penadas.
Tínhamos chegado ao mato há poucos dias. Os soldados sabiam de quatro prisioneiros deixados pela companhia anterior. Mas não sabiam o que continha aquela enxovia. Que seres havia para lá daquela porta. Entrei. Ia desmaiando. Devo ter inalado o cheiro mais nauseabundo que algum dia a minha imaginação concebeu. Misto de excrementos putrefactos, de fetidez condensada e de gangrenosas decomposições liquefeitas em suores, lágrimas e merda. Nem um buraco. Nem uma nesga de luz.
Arrastámos para o pequeno átrio o corpo que gritava. Um monte de trampa invadido de convulsões epilépticas. A boca espumava sangue. As carnes eram de pedra.
Já o sol enchia a entrada. Mandei retirar os prisioneiros daquele túmulo de cimento e deitei-os sobre a terra seca. Abri os olhos. Em toda a minha vida nunca vi tal coisa. Na explosão da luz, todos aqueles pares de olhos se injectaram de sangue como se houvessem rebentado. Uma violenta conjuntivite, reacção imediata a uma luz que não viam há muitos meses. Não é fácil descrever este quadro mesmo a anos de distância. Ainda sinto o espírito retorcido como pano de limpar o chão. Perguntava-me eu, ao olhar aqueles corpos dilacerados, o que teria acontecido. Um deles tinha um pedaço de lábio fendido cicatrizado por segunda intenção, a par de inúmeros golpes na face e no pescoço. Outro tinha parte da orelha colada à cara e um sobrolho caído. Outro era apenas um velho. Os cabelos cresceram e formavam uma pasta de alcatrão agarrada à cabeça. Restos de trapos colavam-se aos corpos. Um deles parecia uma mulher. Era uma mulher. A não ser que lhe tivessem cortado o pénis. Pela vagina escorria pus esverdeado e chamava-se Maria. Provavelmente era virgem, apesar de tantos soldados terem violado a sua podridão.
Atravessei num vómito a parada e fui falar ao capitão. Ele não assumia a responsabilidade da libertação. Assumi-a eu, como médico.
Foram tratados e alimentados. O epiléptico, que era o mais novo, fugiu. Atravessou a pista, galgou o arame farpado, e desapareceu na selva. A sentinela ainda engatilhou uma rajada que não chegou a disparar. Outro foi integrado. Quando vim embora cultivava arroz e algum medo pela minha ausência. O velho, recuperadas as forças, gastou-as a cortar a garganta com os vidros de uma garrafa. Poupados os vasos do pescoço, vi que valia a pena pedir uma evacuação “Y”, ou seja, emergente. Duas semanas depois o helicóptero trouxe-o de regresso, curado. A Maria foi cuidadosamente tratada durante meses, de todas as infecções físicas e psíquicas. Teve um filho nascido do amor de um soldado. Quando a deixei, não consegui ver o que havia por detrás do mar de lágrimas dos seus olhos.
Penso que era vida.
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Nota do editor
Último poste da série de 2 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16356: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (2): Cadi suma outra mulher
Guiné 63/74 - P16362: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XII Parte: Cap VII: Guerra I: O nosso primeiro prisioneiro, o Calaboço
Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67 > Abrigos em Cufar. Da esquerda para a direita: Fur mil trms Tomás Afonso, fur mil Bernardino Pinto e fur mil op esp Mário Fitas.
Texto,. foto e legendas : © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados.
[À direita: capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. Foto à abaixo à esquerda, março de 2016, Oitavos, Guincho, Cascais]
Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra >
Parte XII - Cap VII: Guerra 1: O nosso primeiro prisioneiro, o Calaboço (pp. 40-42)
por Mário Vicente
Sinopse:
(i) Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8),
(ii) o "Vagabundo" faz o curso de "ranger" em Lamego;
(iii) é mobilizado para a Guiné;
(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra"):
(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;
(vi) chegada a Bissau a 17:
(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;
(viii) experiência, inédita, com cães de guerra.
Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > VII - Guerra 1: O nosso primeiro prisioneiro, o Calaboço (pp. 40-42)
2 de Abril de 1965, com o 2º. Grupo de Combate em 1º. Escalão e os Vagabundos à frente, a CCAÇ sai para tentar o primeiro contacto a sério, tendo como guia o velho “capitão” Albino, da Milícia 13 do Alferes de segunda linha João Bacar Jaló.
Vagabundo sente algo de especial e escreve a Picolo e Tânia em género de despedida, conhece o medo mas… há que dominá-lo.
Pelas 24H00, a Companhia enfia pela mata de Cufar Novo. Até às seis da manhã andam às voltas na mata e quase não saem do mesmo sítio. Grande parte do percurso é feito gatinhando e mesmo rastejando ou levando chicotadas dos ramos projectados pelo companheiro da frente. O velho Albino que em 1963 tinha combatido corpo a corpo apenas com uma navalha como arma, está perdido numa mata que conhecia como as próprias mãos. Será da idade ou do medo? Incógnita!
Carlos [, o cmdt da CCAÇ 763,] manda parar. O pessoal está completamente extenuado. Chamando o comandante do grupo de combate e da secção que progridem em primeiro escalão e, prescindindo dos serviços do guia, orienta a saída da mata onde se encontravam praticamente perdidos.
Pelas 7H00 os homens da frente conseguem chegar à orla da mata, alcançando a estrada para Catió. Carlos manda enfrentar a mata de Cufar Nalu em plena luz do dia. Na descida é avistado um grupo de guerrilheiros armados, fardados de calção e camisa de caqui, saindo da mata de Cufar Nalu e atravessando a estrada para o lado esquerdo. É pedido fogo de morteiro sobre a lala que separa aquela posição, da mata prolongamento do ilhéu de Cantone, no sentido de evitar o envolvimento pelo IN. Progredindo pela bolanha a oeste da estrada que foi abandonada, a CCAÇ consegue atingir a mata de Cufar Nalu atingindo o seu objectivo atravessando a estrada, ocupando posições dentro da mata, instalando-se em linha com elementos de apoio em segundo escalão até meio da tarde, sem haver qualquer contacto com o IN.
Já entrámos em terreno proibido. Cufar Nalu já não é um mito, a sua mata foi desflorada. Aos poucos torna-se inevitável, teremos de nos encontrar a sério.
Regresso ao Aquartelamento. Vagabundo relê as cartas para Picolo e Tânia e resolve rasgá-las, pois nunca mais entrará no negativismo que lhe pode ser perigoso, afectando-lhe o moral. Sursum Corda, o Destino está escrito!... Se for de ficar aqui que seja, o militar prepara-se psicologicamente para a guerra. Ou se mata ou deixamo-nos matar. Alternativa zero.
O grande dia está próximo, respira-se essa atmosfera. Mais dia, menos dia vamos lá, ou eles ou nós!...
Aproximamo-nos de Maio. As obras do novo aquartelamento caminham em bom ritmo. O treino operacional é intensivo: patrulhas, emboscadas, golpes de mão etc… etc… passo a passo a CCAÇ., vai atingindo os objectivos da sua missão. O trabalho psicossocial, junto das populações a sul, Iusse, Inpungueda, Mato Farroba e Cantone começa a dar uns ténues resultados. Estamos a ultrapassar o PAIGC neste aspecto, destruindo-lhe aos poucos a rede de controladores e apoio, e cativando cada vez mais os elementos das populações não totalmente identificados com a guerrilha. Já houve uns leves contactos em que conseguimos envolvimentos e resultados positivos. A moral é óptima e a fruta está praticamente madura. Carlos com pleno conhecimento da anti-guerrilha e profundos conhecimentos da Guiné, transmite aos seus subalternos as melhores técnicas e tácticas, de forma que a missão da C.CAÇ. tenha o melhor êxito.
Já temos informações de muita coisa que se passa nas tabancas controladas pelo IN, e embora o acampamento do PAIGC tenha sido reforçado, já somos nós que reunimos e conversamos com as populações embora sabendo que eles andam por lá e que já nos evitam.
Maio!... Maduro Maio. Bebiam-se os últimos copos da noite de 6 de Maio, na improvisada messe de sargentos, na velha fábrica de descasque de arroz, quando aparece o Bugio condutor de Carlos e informa determinados furriéis para se apresentarem no Comando. Era assim habitualmente para determinadas operações, Carlos chamava determinados militares independentemente da patente ou do grupo de combate a que pertencessem. Chegando ao Comando, olhando uns para os outros e identificando-se, pensaram logo que cirurgia melindrosa e urgente deveria estar para acontecer na sala de operações. Paolo informou Carlos de que todos os cirurgiões, anestesistas, instrumentistas e enfermeiros se encontravam a postos para se proceder à intervenção.
Carlos, agora uma espécie de director clínico começou então a explanação: Explorando a mensagem confidencial 364/M de 6/5/65 do BCAÇ 619 estaria um elemento desertor do PAIGC na tabanca de Iusse, de seu nome Calaboço, pelo que havia que fazer esta pequena intervenção com o máximo sigilo. Queria a todo o custo o homem vivo, dada a sua importância e os órgãos que ele poderia disponibilizar para futuros transplantes. Operação a efectuar de madrugada, que seria apoiada ao romper do dia com um cerco e limpeza à referida tabanca por dois grupos de combate que sairiam uma hora depois dos operadores.
Primeiro passo: contactar o chefe de tabanca para este informar o local onde estaria escondido o dito cujo. Segundo passo: abafar o homem para não apanhar nenhum resfriado. O Almeida comanda a cirurgia, ele determinará a ordem de comando. Até logo rapazes!
Às três da manhã os quinze homens estavam preparados e arrancaram com a admiração das sentinelas. Onde iriam aqueles loucos àquela hora!?...
Caminhando sobre o talude que formava a lagoa, depressa chegaram às imediações de Iusse, começando cautelosamente a progressão para a morança do chefe de Tabanca. Pequena alteração nos procedimentos, pois o chefe informa que o indivíduo não se encontraria escondido na bolanha, mas sim numa morança onde se presumiu estaria a dormir no momento. E como se veio a verificar posteriormente não se tratava de um desertor, mas sim de um elemento do PAIGC em descanso na povoação por motivo de doença.
Refazem-se os procedimentos e identifica-se a morança. Almeida orienta a acção, Vagabundo e Chico Zé controlam os dois grupos de segurança, Gibi dá um encontrão e rebenta com a porta, enquanto Jata salta para dentro e aplica um gancho com a esquerda e o primeiro vulto regressa ao reino de Morfeu, o Trinta atira-o para fora para controle. Há mulheres e crianças que são mandadas abandonar a morança rapidamente em silêncio. Já dentro também, António Pedro liga uma pilha para melhor visualização, Calaboço a um canto, rende-se. Embora de etnia balanta, não apresenta as suas características, pois a sua média estatura e fragilidade física não têm nada a ver com um balanta. Revistados os compartimentos da morança os seus habitantes são reunidos em silêncio absoluto.
-Águia um! Águia um! Aqui, Águia dois transmito!
-Aqui Águia um escuto!
-Águia dois informa, cirurgia efectuada com êxito, mantemos posições.
Águia um informa:
-Correcto, ao romper d´aurora sai o pastor da choupana.
-OK, Águia um, entendido!
Noite luarenta, os quinze homens fazem um círculo em volta do pessoal retirado da morança. Passado aproximadamente uma hora, começa a clarear e nota-se a bruma do Cumbijã, na bolanha entre Iusse e Impungueda. Ouvem-se cães a ladrar. Os cães da tabanca farejaram os nossos pastores alemães pois o Cadete a Carhen e o Punch de Boane, vão entrar em acção. A povoação já está cercada pelos grupos de combate da CCAÇ de Cufar. É feita a reunião e identificação da população sendo feita acção psicossocial activa. Sabemos que a malta de Cufar Nalu anda pelo meio da população. Com cuidado vamos devagar, temos de conquistar a população.
A meio da manhã, a CCAÇ. regressa a Cufar com o prisioneiro Calaboço.
Patrulhando o tarrafo junto ao Cumbijã, um grupo de combate, destruiu duas pirogas de grande dimensão, tendo sido abatidos dois indivíduos que fugiram tentando atravessar o rio.
A prisão do Calaboço, embora com trabalho e paciência, deu alguns frutos e no dia seguinte a mulher chefe de Partido em Iusse e o seu marido foram presos. Passados dois dias, foram feitos prisioneiros o chefe do Partido e mais dois indivíduos, estes dois foram abatidos ao tentarem a fuga junto à Lagoa de Cufar.
(Continua)
_______________
Vagabundo sente algo de especial e escreve a Picolo e Tânia em género de despedida, conhece o medo mas… há que dominá-lo.
Pelas 24H00, a Companhia enfia pela mata de Cufar Novo. Até às seis da manhã andam às voltas na mata e quase não saem do mesmo sítio. Grande parte do percurso é feito gatinhando e mesmo rastejando ou levando chicotadas dos ramos projectados pelo companheiro da frente. O velho Albino que em 1963 tinha combatido corpo a corpo apenas com uma navalha como arma, está perdido numa mata que conhecia como as próprias mãos. Será da idade ou do medo? Incógnita!
Carlos [, o cmdt da CCAÇ 763,] manda parar. O pessoal está completamente extenuado. Chamando o comandante do grupo de combate e da secção que progridem em primeiro escalão e, prescindindo dos serviços do guia, orienta a saída da mata onde se encontravam praticamente perdidos.
Pelas 7H00 os homens da frente conseguem chegar à orla da mata, alcançando a estrada para Catió. Carlos manda enfrentar a mata de Cufar Nalu em plena luz do dia. Na descida é avistado um grupo de guerrilheiros armados, fardados de calção e camisa de caqui, saindo da mata de Cufar Nalu e atravessando a estrada para o lado esquerdo. É pedido fogo de morteiro sobre a lala que separa aquela posição, da mata prolongamento do ilhéu de Cantone, no sentido de evitar o envolvimento pelo IN. Progredindo pela bolanha a oeste da estrada que foi abandonada, a CCAÇ consegue atingir a mata de Cufar Nalu atingindo o seu objectivo atravessando a estrada, ocupando posições dentro da mata, instalando-se em linha com elementos de apoio em segundo escalão até meio da tarde, sem haver qualquer contacto com o IN.
Já entrámos em terreno proibido. Cufar Nalu já não é um mito, a sua mata foi desflorada. Aos poucos torna-se inevitável, teremos de nos encontrar a sério.
Regresso ao Aquartelamento. Vagabundo relê as cartas para Picolo e Tânia e resolve rasgá-las, pois nunca mais entrará no negativismo que lhe pode ser perigoso, afectando-lhe o moral. Sursum Corda, o Destino está escrito!... Se for de ficar aqui que seja, o militar prepara-se psicologicamente para a guerra. Ou se mata ou deixamo-nos matar. Alternativa zero.
O grande dia está próximo, respira-se essa atmosfera. Mais dia, menos dia vamos lá, ou eles ou nós!...
Aproximamo-nos de Maio. As obras do novo aquartelamento caminham em bom ritmo. O treino operacional é intensivo: patrulhas, emboscadas, golpes de mão etc… etc… passo a passo a CCAÇ., vai atingindo os objectivos da sua missão. O trabalho psicossocial, junto das populações a sul, Iusse, Inpungueda, Mato Farroba e Cantone começa a dar uns ténues resultados. Estamos a ultrapassar o PAIGC neste aspecto, destruindo-lhe aos poucos a rede de controladores e apoio, e cativando cada vez mais os elementos das populações não totalmente identificados com a guerrilha. Já houve uns leves contactos em que conseguimos envolvimentos e resultados positivos. A moral é óptima e a fruta está praticamente madura. Carlos com pleno conhecimento da anti-guerrilha e profundos conhecimentos da Guiné, transmite aos seus subalternos as melhores técnicas e tácticas, de forma que a missão da C.CAÇ. tenha o melhor êxito.
Já temos informações de muita coisa que se passa nas tabancas controladas pelo IN, e embora o acampamento do PAIGC tenha sido reforçado, já somos nós que reunimos e conversamos com as populações embora sabendo que eles andam por lá e que já nos evitam.
Maio!... Maduro Maio. Bebiam-se os últimos copos da noite de 6 de Maio, na improvisada messe de sargentos, na velha fábrica de descasque de arroz, quando aparece o Bugio condutor de Carlos e informa determinados furriéis para se apresentarem no Comando. Era assim habitualmente para determinadas operações, Carlos chamava determinados militares independentemente da patente ou do grupo de combate a que pertencessem. Chegando ao Comando, olhando uns para os outros e identificando-se, pensaram logo que cirurgia melindrosa e urgente deveria estar para acontecer na sala de operações. Paolo informou Carlos de que todos os cirurgiões, anestesistas, instrumentistas e enfermeiros se encontravam a postos para se proceder à intervenção.
Carlos, agora uma espécie de director clínico começou então a explanação: Explorando a mensagem confidencial 364/M de 6/5/65 do BCAÇ 619 estaria um elemento desertor do PAIGC na tabanca de Iusse, de seu nome Calaboço, pelo que havia que fazer esta pequena intervenção com o máximo sigilo. Queria a todo o custo o homem vivo, dada a sua importância e os órgãos que ele poderia disponibilizar para futuros transplantes. Operação a efectuar de madrugada, que seria apoiada ao romper do dia com um cerco e limpeza à referida tabanca por dois grupos de combate que sairiam uma hora depois dos operadores.
Primeiro passo: contactar o chefe de tabanca para este informar o local onde estaria escondido o dito cujo. Segundo passo: abafar o homem para não apanhar nenhum resfriado. O Almeida comanda a cirurgia, ele determinará a ordem de comando. Até logo rapazes!
Às três da manhã os quinze homens estavam preparados e arrancaram com a admiração das sentinelas. Onde iriam aqueles loucos àquela hora!?...
Caminhando sobre o talude que formava a lagoa, depressa chegaram às imediações de Iusse, começando cautelosamente a progressão para a morança do chefe de Tabanca. Pequena alteração nos procedimentos, pois o chefe informa que o indivíduo não se encontraria escondido na bolanha, mas sim numa morança onde se presumiu estaria a dormir no momento. E como se veio a verificar posteriormente não se tratava de um desertor, mas sim de um elemento do PAIGC em descanso na povoação por motivo de doença.
Refazem-se os procedimentos e identifica-se a morança. Almeida orienta a acção, Vagabundo e Chico Zé controlam os dois grupos de segurança, Gibi dá um encontrão e rebenta com a porta, enquanto Jata salta para dentro e aplica um gancho com a esquerda e o primeiro vulto regressa ao reino de Morfeu, o Trinta atira-o para fora para controle. Há mulheres e crianças que são mandadas abandonar a morança rapidamente em silêncio. Já dentro também, António Pedro liga uma pilha para melhor visualização, Calaboço a um canto, rende-se. Embora de etnia balanta, não apresenta as suas características, pois a sua média estatura e fragilidade física não têm nada a ver com um balanta. Revistados os compartimentos da morança os seus habitantes são reunidos em silêncio absoluto.
-Águia um! Águia um! Aqui, Águia dois transmito!
-Aqui Águia um escuto!
-Águia dois informa, cirurgia efectuada com êxito, mantemos posições.
Águia um informa:
-Correcto, ao romper d´aurora sai o pastor da choupana.
-OK, Águia um, entendido!
Noite luarenta, os quinze homens fazem um círculo em volta do pessoal retirado da morança. Passado aproximadamente uma hora, começa a clarear e nota-se a bruma do Cumbijã, na bolanha entre Iusse e Impungueda. Ouvem-se cães a ladrar. Os cães da tabanca farejaram os nossos pastores alemães pois o Cadete a Carhen e o Punch de Boane, vão entrar em acção. A povoação já está cercada pelos grupos de combate da CCAÇ de Cufar. É feita a reunião e identificação da população sendo feita acção psicossocial activa. Sabemos que a malta de Cufar Nalu anda pelo meio da população. Com cuidado vamos devagar, temos de conquistar a população.
A meio da manhã, a CCAÇ. regressa a Cufar com o prisioneiro Calaboço.
Patrulhando o tarrafo junto ao Cumbijã, um grupo de combate, destruiu duas pirogas de grande dimensão, tendo sido abatidos dois indivíduos que fugiram tentando atravessar o rio.
A prisão do Calaboço, embora com trabalho e paciência, deu alguns frutos e no dia seguinte a mulher chefe de Partido em Iusse e o seu marido foram presos. Passados dois dias, foram feitos prisioneiros o chefe do Partido e mais dois indivíduos, estes dois foram abatidos ao tentarem a fuga junto à Lagoa de Cufar.
(Continua)
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Nota do editor:
Último poste da série > 1 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16255: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XI Parte: VI - Por Terras de Portugal (v) : a CCAÇ 763 toma conta do subsetor de Cufar e prepara-se para fazer uma experiência única no CTIG: a utilização de cães de guerra
Último poste da série > 1 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16255: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XI Parte: VI - Por Terras de Portugal (v) : a CCAÇ 763 toma conta do subsetor de Cufar e prepara-se para fazer uma experiência única no CTIG: a utilização de cães de guerra
sexta-feira, 5 de agosto de 2016
Guiné 63/74 - P16361: Notas de leitura (866): “A minha jornada em África”, por António Reis, Palavras e Rimas, Lda, 2015 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Agosto de 2015:
Queridos amigos,
Estou ciente de que já falei deste livro, há alguns anos. É um testemunho sincero de alguém que durante dois anos trabalhou no HM 241 e viu toda a sorte de dores. Procurou ajudar, e sente orgulho por certos expedientes a que recorreu. Assistiu a grandes desgraças, não esquece o Dr. Fernando Garcia, que ele classifica como médico ímpar. A todos os títulos, um testemunho sem rival. Só tenho pena nestas edições de autor não haja o propósito de incluir o trabalho de um revisor, de uma mão amiga que nos esclareça como é que se escreve Cacine, Guileje ou Corubal. Não nascemos ensinados, não custa nada pedirmos ajuda.
Um abraço do
Mário
O livro intitula-se “A minha jornada em África”, por António Reis, Palavras e Rimas, Lda, 2015. O autor apresenta-se: António Ramalho da Silva Reis nasceu em Avintes, em 1944 e com 21 anos embarcou para a Guiné onde exerceu funções de enfermagem no HM 241. Dá o seu testemunho dizendo que não andou a combater mas viveu a guerra intensamente todos os dias: “volta e meia ainda sonho que lá estou”.
Queridos amigos,
Estou ciente de que já falei deste livro, há alguns anos. É um testemunho sincero de alguém que durante dois anos trabalhou no HM 241 e viu toda a sorte de dores. Procurou ajudar, e sente orgulho por certos expedientes a que recorreu. Assistiu a grandes desgraças, não esquece o Dr. Fernando Garcia, que ele classifica como médico ímpar. A todos os títulos, um testemunho sem rival. Só tenho pena nestas edições de autor não haja o propósito de incluir o trabalho de um revisor, de uma mão amiga que nos esclareça como é que se escreve Cacine, Guileje ou Corubal. Não nascemos ensinados, não custa nada pedirmos ajuda.
Um abraço do
Mário
O meu dia-a-dia era ver morrer ou chegar os feridos à grande plateia
Beja Santos
O livro intitula-se “A minha jornada em África”, por António Reis, Palavras e Rimas, Lda, 2015. O autor apresenta-se: António Ramalho da Silva Reis nasceu em Avintes, em 1944 e com 21 anos embarcou para a Guiné onde exerceu funções de enfermagem no HM 241. Dá o seu testemunho dizendo que não andou a combater mas viveu a guerra intensamente todos os dias: “volta e meia ainda sonho que lá estou”.
Passou 24 meses no Hospital Militar, passou a comissão dividido entre o Posto de Socorros, a Sala de Observações e a Cirurgia 1, “a enfermaria onde ficavam os casos mais graves, até melhorarem e serem transferidos para outras enfermarias ou evacuados para a metrópole”. Toda esta narrativa é dedicada aos netos e lembra-lhes que também tratou crianças no hospital.
Rememora a sua infância, lê-se e sente-se que é autêntico na sua simplicidade cortante:
Rememora a sua infância, lê-se e sente-se que é autêntico na sua simplicidade cortante:
“Ir para a escola com 7 anos, chegar ao meio-dia, esperar a Ti Laura, que devia chegar com o tabuleiro à cabeça, com a panela da sopa e uma saca de nacos de pão. Levar meia-dúzia de reguadas por dia, meia-dúzia de canadas, fazer a terceira classe – pois poucos eram os que faziam a quarta – e ir trabalhar com 11, 12 anos”. E, mais adiante: “Confessarmo-nos todas as últimas sextas-feiras de cada mês, cumprir a penitência do confessor, que era rezar de joelhos, uma dúzia de padres-nossos e ave-marias em cada altar, tudo pelo pecado de ter ido roubar fruta à Quinta do Pedrosa. Se o Pedrosa não me via a roubar a fruta, Deus tinha-me visto. Foi criado no meio disto, com todos estes medos. Das bruxas, do lobisomem, das santíssimas trindades, da guarda, da PIDE, etc”.
Descreve a sua preparação militar a partir do momento em que assentou praça no RI 7. Em 13 de Março de 1966, embarca para a Guiné no Rita Maria. Entra rapidamente na rotina:
Descreve a sua preparação militar a partir do momento em que assentou praça no RI 7. Em 13 de Março de 1966, embarca para a Guiné no Rita Maria. Entra rapidamente na rotina:
“A chegada dos mortos ou feridos era feita normalmente por helicópteros que aterravam na frente do hospital. Ainda o helicóptero não tinha aterrado e já o piquete estava junto à pista, de macas na mão. Eles chegavam de todas as formas, mortos, inanimados, esfacelados, queimados, estilhaçados, baleados, com sangue, com plasma, com talas, com garrotes”. O seu acordar era a maior parte das vezes violento, com o ruído dos bombardeiros a partir ou a chegada dos helicópteros a trazer mais feridos.
E havia os dias muito negros, como aquele 5 de Outubro de 1967, chegaram muito perto de 40, todos queimados e estilhaçados.
E havia os dias muito negros, como aquele 5 de Outubro de 1967, chegaram muito perto de 40, todos queimados e estilhaçados.
“Encheram tudo, desde as enfermarias ao corredor. Dentro e até fora do hospital era um cheiro intenso a carne humana queimada; nove ou dez já chegaram mortos. Os outros foram transformados em múmias. Sempre que pode, quando aparecem amigos e conterrâneos para a consulta, recorre a vários expedientes para os manter mais algum tempo em Bissau. Caso do Feiteira que chegou ao pé dele e disse: Tono, estou a ficar marreco e sem dentes”.
Com a colaboração do cabo da estomatologia, pediu um boletim carimbado com assinatura falsa onde escrevia: observado e consultado, volta no dia tal. De oito em oito dias ia repetindo as carimbadelas. O Feteira esteve um bom tempo em consulta externa sem ter visto o médico estomatologista.
Havia os prisioneiros que chegavam feridos, muitas vezes eram interrogados à cabeceira da cama quando chegavam. Não havia enfermaria-prisão. E vem uma recordação:
Havia os prisioneiros que chegavam feridos, muitas vezes eram interrogados à cabeceira da cama quando chegavam. Não havia enfermaria-prisão. E vem uma recordação:
“Recordo um dia em que chegou uma quantidade de mortos e feridos. Um daqueles dias em que as macas foram repartidas pelo Posto de Socorro, Sala de Observações e ao longo do corredor. Juntamente com eles vinha um turra que tinha sido feito prisioneiro antes e que tinha ido servir de guia ao objetivo das nossas tropas, e essa operação foi um desastre porque ele nos atraiçoou. Todos diziam que viram logo que estavam perdidos, porque ele tinha andado às voltas. Pois este, nem por ter feito o que fez, deixou de ser um ferido igual aos demais. Foi o último, mas também foi tratado e não morreu”.
Não esconde que aproveitou todas as circunstâncias para ser prestável, e conta:
Não esconde que aproveitou todas as circunstâncias para ser prestável, e conta:
“O Chico da Laura estava em Catió, apareceu-me um sábado depois do almoço e vinha muito sujo e muito revoltado, foi só mais um que não aguentou o clima da guerra. Li o relatório dele, onde constava que estava há quinze dias sem dormir. Falei com o Dr. Castelão, que era o psiquiatra. Lá ficou internado. A alimentação dele era o rancho geral, mas ele não comia e queixava-se também do estômago. Todo o tempo que lá esteve alimentou-se com sumos e com leite que eu lhe desenrascava. Veio evacuado para Lisboa e escreveu-me a dizer que era mais bem tratado na Guiné do que cá. Acabou por ser dado como incapaz”.
Tem recordações indeléveis, caso do Dr. Fernando Garcia, que ele considera médico ímpar. Tem histórias brejeiras para contar como a única gorjeta que recebeu. Chegou ao hospital um chefe de tabanca com sonda gástrica, recebia muitas visitas: “
Um dia vi-os juntar dinheiro entre si, e o nosso doente chamou-me, estendeu-me a mão com dinheiro. Eu não aceitei. Ele insistiu, foi então que o Sargento Marcos se aproximou e disse-me que aceitasse. Não me lembro quanto foi, mas foi uma boa quantia”. E mais outra história brejeira: “Enquanto uns passaram parte do tempo fazendo fôlego para não morrer, eu apenas dei um tiro e foi para o ar. Estava de serviço de escala quando recebi ordens para ir de helicóptero fazer a evacuação do enfermo do mato para o hospital. Quem desempenhava estas funções eram enfermeiras paraquedistas, mas por qualquer motivo não podiam ir. Era a primeira vez que pegava na minha G3. Havia que a experimentar e experimentei-a dando um tiro para o ar. Houve rebuliço”.
Ainda hoje sente tristeza pela ingratidão de um alferes a quem ele chama o alferes sem memória. Apareceu no hospital um alferes que vinha paralisado, procurou ajudá-lo, friccionava-o com álcool, tudo fazia para que ele não ganhasse escaras. Ficaram amigos. Quando regressou, foi visitá-lo, como estava prometido, ele lá estava numa cadeira de rodas, pareceu gostar de o ter visto. Os anos passaram, e um dia proporcionou-se voltar a passar onde vivia o alferes. Disseram-lhe que já lá não morava o melhor era procura-lo num determinado café depois de almoço. Procurou-o.
Ainda hoje sente tristeza pela ingratidão de um alferes a quem ele chama o alferes sem memória. Apareceu no hospital um alferes que vinha paralisado, procurou ajudá-lo, friccionava-o com álcool, tudo fazia para que ele não ganhasse escaras. Ficaram amigos. Quando regressou, foi visitá-lo, como estava prometido, ele lá estava numa cadeira de rodas, pareceu gostar de o ter visto. Os anos passaram, e um dia proporcionou-se voltar a passar onde vivia o alferes. Disseram-lhe que já lá não morava o melhor era procura-lo num determinado café depois de almoço. Procurou-o.
“Não me reconhecia e não se lembrava de nada. Fiquei estupefacto. Ainda lhe recordei que o tinha ido visitar quando cheguei, mas também não se lembrava. Soube mais tarde que este alferes era muito ativo e influente, muito provavelmente, diz ele, o alferes não se queria dar com gente que lhe podia pedir coisas”. Não se conforma com tal ingratidão.
É este o testemunho de António Reis, dois anos inteiros no HM 241.
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Nota do editor
Último poste da série de 1 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16352: Notas de leitura (863): "África Misteriosa, Crónicas de viagem", de Julião Quintinha, Editora Portugal Ultramar, 1928 (Mário Beja Santos)
É este o testemunho de António Reis, dois anos inteiros no HM 241.
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Nota do editor
Último poste da série de 1 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16352: Notas de leitura (863): "África Misteriosa, Crónicas de viagem", de Julião Quintinha, Editora Portugal Ultramar, 1928 (Mário Beja Santos)
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