segunda-feira, 22 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6036: José Corceiro na CCAÇ 5 (7): Canjadude debaixo de ameaça

1. Mensagem de José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), com data de 19 de Março de 2010:

Caros camaradas Luís Graça, Carlos Vinhal, J. Magalhães
Venho com estima relatar um pouco da actividade operacional da CCAÇ 5, no condado de Canjadude, Guiné.
Deixo ao vosso critério a publicação, ou não, da mesma, assim como a inclusão das fotos.
Um Abraço
José Corceiro


José Corceiro na CCAÇ 5 (7)

CANJADUDE DEBAIXO DE AMEAÇA


Não sei quais as fontes, mas há apreensão e é voz corrente que o IN vai flagelar de novo a CCAÇ 5 brevemente. Tem havido por aqui muita actividade operacional, desde que Canjadude foi flagelado pela primeira vez, em 11 de Julho 1969. Comenta-se que o IN estará a estruturar e preparar uma base operacional no Bormeleu, perto do Cheche, junto ao rio Corubal para nos atacar.

No dia 19 de Julho, a CCAÇ 5, juntamente com outras forças, realizaram uma operação no mato durante três dias, para os lados do Bormeleu, que dista de Canjadude cerca de 20 a 25km, eu fui integrado como responsável pelas comunicações do AN/PRC-10, junto do Comando.

O AN/PRC-10 é um emissor/receptor móvel, de frequência modelada, praticamente impune às interferências de ruídos parasitas nas suas comunicações, destaca-se a qualidade sonora comparativamente com aparelhos de amplitude modelada. Foi concebido essencialmente para comunicações de terra para meios aéreos e vice-versa, tem uma boa qualidade sonora e as ondas de difusão neste meio, terra/ar, não têm praticamente obstáculos físicos, aos quais as ondas de frequência modelada são sensíveis. Para comunicar em terra neste teatro operacional, plano e com arvoredo, o seu alcance é limitado, não só pela potência do equipamento emissor que é fraco em watts (0,9W), mas também devido às características das suas ondas, frequência modelada, cuja propagação é prejudicada por obstáculos físicos; para obstar a esta característica negativa, nos Aquartelamentos, há necessidade de montar um suporte físico, mastro, com altura razoável, com uma antena vertical instalada no topo do mastro, que optimiza a recepção e emissão do AN/PRC-10. Tem ainda um outro inconveniente nas comunicações, o chamado efeito de captura, isto é, perante dois equipamentos a emitir na mesma frequência para um terceiro equipamento receptor, (central) este selecciona o sinal de maior potência ignorando o mais fraco.

Foto 1 > AN/PRC-10 deitado > Vista do painel de comandos e respectiva legendagem.

Foto 2 > Canjadude > Corceiro no mastro onde estava instalada a antena do PRC-10

Os equipamentos mais utilizados nas comunicações terrestres são: (desprezando o AVP-1 de fraco alcance) AN-GRC-9 e RACAL-TR-28, este último já transistorizado, (menos consumo de energia e outras performances tais como, a maleabilidade e maneiro) e tem comutador de canais com posições de frequências definidas, associado a cada posição um cristal específico com frequência pré-estabelecida, facilita a sintonia e torna-o mais versátil e preciso, tem ainda a vantagem de ter terminal de antena dipolo, que se pode montar entre duas árvores, beneficiando consideravelmente as comunicações com esta antena instalada na horizontal, tão alto quanto possível. No AN/PRC-10 para tirar o máximo de partido das suas emissões/recepções com outra antena que não a segmentada, a antena tem que ser montada na vertical e acima dos obstáculos, o que no mato por vezes se torna improvável ou até impossível. Não podemos desprezar as interferências atmosféricas, para a propagação das ondas hertzianas de emissão e recepção, visto haver influência com adversidades e vantagens.

Como comecei por explanar, o dia 19 de Julho saí para uma operação no mato, em que a progressão foi muito difícil, pois tivemos que andar quase todo o dia dentro de água, algumas vezes até à cintura, as bolhanhas estão todas alagadas e a chuva durante o percurso caiu a potes. Acampamos para passar a noite, todos encharcados e exaustos, e para nos atiçar as amarguras e sacrificar ainda mais as nossas mazelas, durante a noite choveu torrencialmente. Ao despontar da aurora levantamo-nos do chão que estava ensopado e enlameado, todos emporcalhados a contorcermo-nos com dores lombares e actividade muscular entorpecida, além de estarmos arreganhados pois de noite com a chuva refrescou. Não sei como os nossos corpos suportam tamanhas adversidades? Progredimos operacionalmente, neste segundo dia, em trilhos menos alagadiços, o tempo com abertas e alguns aguaceiros, passamos bem melhor que ontem.

Entretanto, as forças operacionais separaram-se em dois grupos, seguindo trajectos distintos. Durante estes dois dias não detectamos vestígios alguns, que denunciassem a presença de humanos por aqui. O grupo no qual eu estava integrado avançou em direcção a um morro, que escalamos com muito esforço, tinha acessos dificultados, não só pela vegetação que nos enleava, mas também devido às vertentes do terreno muito declivosas, com um trilho muito íngreme e escorregadio e com frequência o pessoal estatelava-se no chão e rebolava. Foi com imensa labuta, que trepamos até ao topo do morro tão escarpado era o trajecto, que mais parecia ser escalada de alpinista. Instalámo-nos no topo do monte para comer a ração de combate. Ainda não tínhamos acabado de comer, desencadeou-se tamanha berraria provocada pela agitação e algazarra dos macacos-cão, no sopé do morro, que segundo os entendidos que bem conheciam estes sinais de alarme, era revelador que algo de muito estranho por ali acontecia. Todos, apressadamente, nos preparámos para abandonar o local e começar a descer. Foi neste momento que avistámos um pouco para lá da base do morro, pessoal IN a fugir em debandada. Eu pessoalmente vi uma ou duas pessoas, houve quem dissesse que viu mais de meia dúzia de elementos com armamento. Descemos apressadamente, por trilho muito acidentado, ladeiroso e inclinado, onde os tombos do pessoal eram constantes e alguns caiam e deslizavam no chão 2 e 3 metros, pela acção das forças da inércia e gravidade, tal era a inclinação da encosta. Afigurava-se que a todo o momento, houvesse algum acidentado o que felizmente não aconteceu (atenda-se que estávamos para os lados do Bormeleu e Cheche, onde havia algumas montanhas que tinham continuidade atravessando o rio Corubal em direcção a Madina de Boé). Havia necessidade de descer rapidamente, por se recear que estivesse em curso a montagem de uma emboscada às NT, e não nos podíamos expor a essa fragilidade de dar vantagem e oportunidade ao IN.

Foto 3 > Pequena amostra de obstáculos a vencer para subir o morro

Foto 4 > Corceiro no topo do morro a comer a ração de combate

Chegados à base do morro já o IN se tinha escapulido, pois não se descobriu nem proveniência nem refúgio do grupo, que se evaporou nos meandros emaranhados da floresta, sem que ninguém mais o visse. Ao que parece o IN vinha em fuga do outro grupo das NT, que não se apercebeu absolutamente de nada.
É surpreendente o comportamento do IN em virtude da localização da CCAÇ 5, estarmos tão próximo de redutos inimigos e não sermos atacados com outra assiduidade, pois somos o último Aquartelamento e o mais periférico aqui da zona, para além de Canjadude está o Cheche já abandonado, na margem direita do rio Corubal, atravessando o rio é zona de Madina de Boé. Está provado que há por aqui actividade IN. No espaço de oito dias o inimigo é visto duas vezes nestas bandas e Canjadude sofreu uma flagelação cujo itinerário utilizado pelo IN foi nesta direcção!

Será que nos poupam por sermos uma Companhia com nativos, ou será que estão a preparar alguma orquestração com maestria, ou terão receio de se envolver com a CCAÇ 5?!

Fisicamente todo o pessoal está muito stressado, pelo esforço despendido no dia de ontem a caminhar grande parte da progressão dentro de água que foi deveras extenuante, a noite foi chuvosa muito desconfortável e tão sofredora, hoje a subida e descida do morro tão desgastante, esta tarde de Domingo tem sido bem mais tranquila, e acampamos já os dois grupos juntos, para passar a noite, sem que tenha havido acontecimentos dignos de registo, e mais, sem necessidade de evacuações.

A noite passada não choveu. Hoje progredimos no terreno sem termos encontrado o mínimo vestígio de presença IN. Ao meio da tarde fomos ao encontro das viaturas, onde chegamos já com alguns homens a arrastarem-se, no limite das suas forças, tudo exaurido. Chegamos ao Aquartelamento exaustos fisicamente e alguns a precisarem de tratamento clínico, com bolhas nos pés e “impinges” a nível das virilhas, devido ao demasiado tempo que se caminhou dentro de água, que é propício ao desenvolvimento de dermatofitose (micose cutânea provocada por fungos).

O dia 22 de Julho, deram-nos a informação que neste dia Canjadude ia ser flagelado, o pessoal ficou todo de prevenção, praticamente ninguém dormiu à espera do ataque, com tudo às escuras, pois desligou-se o gerador da energia eléctrica do destacamento. Não houve ataque.

Tem continuado a actividade operacional intensa, saídas para o mato quase diárias, mas nada de vulto há a registar, a não ser a dificuldade na progressão do pessoal, devido ao alagamento das bolanhas que tornam muito difícil caminhar dentro de água, muitas das vezes até à cintura e mais.

Dia 27 houve mais uma operação para o mato, mas a meio da tarde tivemos que ir buscar o pessoal com as viaturas, pois cinco ou seis militares ficaram incapacitados de progredir devido a doença.

Dia 1 de Agosto, fui com um grupo para garantir segurança e assegurar comunicações a um Furriel e um Cabo, “Radiolocalizadores”, na picada do Cheche, próximo do começo da pista aérea de Canjadude, para referenciar coordenadas de emissão de rádio, que já tinham sido registadas em mais dois lados.

Dia 8 sai para o mato às 06.00h em operação de dois dias com dois pelotões. Saimos em direcção ao Cheche e depois flectimos para a esquerda e entrámos em zonas alagadas onde caminhamos grande parte do dia dentro de água, por vezes até à cintura. Fomos pernoitar a Canducuré tendo chovido praticamente toda a noite. Logo ao alvorecer levantamo-nos todos a tiritar e começamos a caminhar dentro de água rumo a Canjadude onde chegámos ao fim da manhã.

A actividade operacional tem continuado muito movimentada, praticamente todos os dias há saída para o mato e há informações consecutivas a dizer que Canjadude vai ser flagelado.

Dia 11 de Agosto, houve evacuação de militar devido a fractura do pé.

Dia 14, operação de dois dias.

Dia 17, tudo no Aquartelamento numa labuta constante a fazer limpeza de higienização e pôr tudo em ordem, pois chegou mensagem a informar que amanhã, dia 18, o Delegado do Governador da Província vem a Canjadude.

Dia 18, tudo devidamente fardado e aprumado, mas o Delegado não apareceu.

Dia 23, os Pára-quedistas, vindos duma operação, aqui na nossa área, chegaram a Canjadude carregados de material de guerra capturado ao IN num assalto a uma base deste. Não houve feridos dignos de registo e segundo disseram muito outro material seguiu de Heli.

Dia 24, mais uma operação de três dias, em que fui eu e o Silva de Transmissões. As bolanhas continuam alagadíssimas e a necessidade impõe que a todo o momento tenhamos que caminhar dentro de água. As noites no mato são agitadas e inquietantes, ora mosquitos, ora chuva, ora dores lombares, não dá para minimamente tonificar e descansar. Fisicamente há muito pessoal a ficar exausto. Regressamos dia 26, com o pessoal a dar sinais de fadiga preocupante, e sem que haja o mínimo de estímulo palpável, que justifique todo este esforço, ainda que o não sermos atacados é por si óptimo. Tenho a percepção que o pessoal da CCAÇ 5, está ansioso e precisa de cintilar, (fazer ronco) como brilharam os Pára-quedistas, que apanharam tanto material de guerra aqui na nossa área de intervenção!

Foto 5 > Dia 24 de Agosto > Caminhar dentro de água na bolanha de que não recordo o nome

Foto 6 > Dia 24 de Agosto > Momento de pausa. Da esquerda para a direita: Silva das Transmissões, um camarada de quem não recordo o nome, Fur Mil Cabrita e outro camarada de quem não me ocorre o nome

Foto 7 > Algum do armamento apanhado pelos Pára-quedistas ao IN na zona de Canjadude. Foto que me foi enviada por um Pára

Para baixar mais o moral e desalento no pessoal, já uns tempos que o comer tem sido de péssima qualidade no Aquartelamento, até já aconteceu virem caganitas de ratos no arroz já cozinhado. Um destes dias o comer era dobrada, intragável, pois tinha uma fetidez arrepiante, que ninguém conseguia inalar, quanto mais tragar. Como as desgraças andam sempre aos pares, está a tornar-se habitual passarem mais de oito dias sem recebermos correio, quando era norma haver distribuição duas e três vezes por semana e isto perturba o equilíbrio emocional e desanima os metropolitanos.

Para todos o desejo de muita saúde, um abraço.
José Corceiro
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5996: José Corceiro na CCAÇ 5 (6): Pânico no abrigo norte, crocodilo à vista

Sem comentários: