domingo, 21 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6035: Notas de leitura (81): O Pé na Paisagem, de Filipe Leandro Martins (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Não será possível, um dia que se escreva detalhadamente o que foram os nossos preparativos para a guerra, iludir a existência de um relato tão vigoroso, aliás a alavanca de um escritor confirmado. Muitos de nós, lendo-o, regressamos às Caldas da Rainha ou a Mafra, a uma vivência perturbante que desencadeou tantas mudanças na nossa vida.
Peço aos mais virtuosos que não se enfureçam por ele não ter ido para África.
O Filipe Leandro Martins é leitura indispensável na justa medida em que possui um olhar sobre o nosso tempo, na recolha das ideias, de valores e atitudes dos rapazes que fomos. O seu olhar anti-colonialista e anti-militarista. Que também existiu.

Um abraço do
Mário


Os preparativos para a guerra: a caserna, o aparato, o espelho da Nação

Beja Santos

Nunca me fora dado ler um relato tão vincado, minucioso, expressivo da sequência da chegada para a recruta, as suas andanças, a nova vida de relação, a passagem para a especialidade, as dúvidas, as pesadas decisões. Em “O Pé na Paisagem”, (Editorial Caminho, 1981), Filipe Leandro Martins procura dar-nos corajosamente todo esse itinerário, o pulsar da caserna, os encontros e desencontros com a cadeia do comando, a atmosfera da vida promíscua, a preparação física, o discurso ideológico reinante. De algum modo, estamos todos lá enquanto geração das casernas, movendo-nos entre o quartel e o fim-de-semana, todo o roteiro que levou a generalidade até ao embarque e outros à deserção. É um relato a vários títulos poderoso, combina o realismo com o expressionismo, deixa as entranhas da engrenagem militar, obriga-nos a rever corredores, instrução, novas amizades, a carreira de tiro, a expectativa de partir para uma frente da guerra, lá longe, no completo desconhecido.

O arranque do romance é quase cinematográfico: “O comboio deixou-nos na cidade com mais ou menos vinte anos. Saímos aos trambolhões, entre malas e saquinhos, berrando uns pelos outros com a solidariedade de bairro, de vila ou de escola. Eu vinha só com a mala pesadíssima que trazia de casa para a caserna que nos esperava, velhaca. Arrastávamo-nos com pressa, desancados pela viagem, pelas bagagens, pelo sol provinciano à uma da tarde no largo amarelo da estação e ouvi alguém gritar o meu nome uma porrada de vezes antes de me voltar”. Segue-se o cerimonial da entrega dos materiais e a chegada à caserna, tudo em tropel, o pessoal deslumbrado pela novidade, intimidados: “Sombras chinesas falavam aos berros, contraditórias e desmoralizantes – já não davam mais lençóis ou só havia botas das pequenas, ou não distribuíam mais fardas nessa noite e amanhã estás lixado que tens de aparecer fardado, despacha-te que o quarteleiro está a dar a roupa da cama... Deram-me duas mantas castanhas e esburacadas, um par de lençóis duros e molhados. Quando voltei ao boliche já a minha cama estava feita e ocupada por uma feroz sombra a ressonar. A caserna ia abrigar cerca de duzentos instruendos, uma companhia de instrução dividida por muros até meia altura e um corredor lateral percorria todo o casarão até aos lavabos e às cagadeiras. Em cada compartimento duas filas de camas em beliches de ferro, assentes no ladrilho encardido, o ferro pintado a descascar-se nas camas e nos cacifos, os colchões de palha endurecidos por gerações de guerreiros que ali tinham cultivado o sono.

São rostos cansados, insones, gente que grita, há quem ande à procura de receber ordens, há gente com fome, há gente que conta histórias, algumas delas horripilantes sobre o que se passa em África. Tocam clarim e alguém grita: “Esta é que é a puta da segunda companhia?” Da desorganização aparece a ordem de um quartel inteiro: “Depois começou a chamada, milhões de nomes a acertar com números, e a fome a roer. Depois firme. Sentido. Os braços esticados, dedos juntos, olhar em frente. Não mexe. O furriel deu um passo em direcção a nós, perna estendida, patada no chão. Deu meia volta, muito teso. Fez a continência a um homem franzino, enquanto a malta bichanava que era um alferes. O alferes fez um gesto mole em resposta, virámo-nos para a direita e lá fomos a caminho do refeitório, a toque de caixa”.

Surgem as novas relações, aprende-se a importância de engraxar as botas, revelam-se as manigâncias de quem quer uma cunha para fugir a África.

Começam as aulas teóricas e práticas, aprende-se a limpar a arma, a correr e a saltar, os ensinamentos da táctica são muito importantes. A permanente obsessão das botas engraxadas. Vai ser assim até ao juramento de bandeira. De quando em vez, o autor pontua a vivacidade da descrição introduzindo monólogos: Norberto, o fura-vidas, sempre a procurar desenrascar-se, o seu sonho é ser amanuense; o tenente Estêvão que meteu o chico porque gostava da tropa, era ali que estava a juventude do país e que se maravilha com as qualidades da raça. Na especialidade, a qualidade da comida é degradante. Os instruendos combinam, encenam um protesto colectivo: “Sentámo-nos no refeitório, veio a sopa, uns três ou quatro cabos milicianos mandavam aos soldados fazer a distribuição, a malta comia calada. Começaram depois a distribuição da segunda terrina, o pivete anunciava a desgraça. Era mesmo a papa de peixe. O meu pescoço passou de gelado a arder. O Marcelino levantou-se e berrou:

“Não pode ser! Não como isto, catano!”

Outro gajo, quatro meses adiante deu também um berro: “Isto está mas é podre. Olha-me pra este cheiro!”

Na minha mesa um tipo com ar sabido puxou a terrina e estendeu o prato, agarrou na concha. Ia começar a servir-se. O Marcelino agarrou-lhe um pulso: “Ninguém come. O primeiro a comer desfaço-o, meu cabrão!”
Havia de repente seis mesas a recusarem-se... A porta abriu-se. O tenente Estêvão entrou. A malta calou-se.

“Que é isto? Um levantamento de rancho? Ora vamos lá a ver. É um levantamento de rancho?”

O tenente Estêvão avançou para nós, para as mesas do pelotão que ele comandava, para a malta dele. O Lourenço pisou a bota do Marcelino e falou, apontando a terrina: “O meu tenente, cheire lá isto aqui. É de mais. Já não é a primeira vez que nos fazem uma destas. Isto está podre, meu tenente.”

O tenente acercou-se. Virou-se rapidamente: “Tudo sentado. Se a comida estiver boa estão lixados comigo!” Pegou numa colher, revolveu a papa, cheirou. Provou.

“Vá chamar o cozinheiro”, disse para um cabo miliciano. A malta ficou a esperar em silêncio, alguns desfaziam o pão com as mãos desocupadas. O cozinheiro chegou a escorregar nas botas oleosas.

“Você quer que eu lhe meta a cabeça aí dentro? Anda cá, anda cá, queres que te obrigue a comer esta merda? Vai chamar o sargento!”

“O nosso sargento vai abrir umas latas de atum, vai cozer umas batatas. Quero isso rápido”, disse o tenente ao sargento que vinha vermelho da corrida... [O tenente] virou-se para a gente, levantou a voz:

“Vocês, cuidadinho! Não quero ouvir falar em levantamentos de rancho. Se eu sonho que queriam fazer um levantamento, já sabem: apanham uma porrada que nunca mais têm vontade de reguilar. Não quero cá reguila nem gandulos. Mas se houver algum problema venham ter comigo. A minha tropa não come merda. Ninguém sai daqui até acabar o almoço!”

Tinha-nos lixado tudo. Em vez de um levantamento de rancho apenas conseguíramos que a malta ficasse devotada ao tenente Estêvão.

Filipe Leandro Martins é escritor e jornalista. Nasceu em Lisboa em 1945, fez o curso de sargentos nas Caldas da Rainha e foi destinado à especialidade de atirador. Mobilizado para a Guiné, escolheram-no para o curso especial de minas e armadilhas. De Santa Margarida, aproveitando as férias que antecedem o embarque, desertou em Outubro de 1968, exilou-se na Bélgica. É jornalista profissional desde 1976 (chefe de redacção do jornal Avante!).

(Continua)
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6017: Notas de leitura (80): Abalada do Pidjiguiti, de Manuel Viana (Beja Santos)

9 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Carlos Vinhal disse...

O comentário anterior foi retirado por não estar assinado.

Se o camarada o quiser ver publicado, por favor, volte a fazê-lo indicando o seu nome.

É que eu concordo com aquilo que escreveu e vou assinar:
Carlos Vinhal
Co-editor

Joaquim Mexia Alves disse...

Faço minhas as palavras do comentador antecedente, pois também eu concordo com aquilo que estava escrito o que não quer dizer que aceite comentários anónimos.

Há uma frase que diz tudo, quanto a mim:
«Tinha-nos lixado tudo. Em vez de um levantamento de rancho apenas conseguíramos que a malta ficasse devotada ao tenente Estêvão.»

Resumindo e muito rapidamente: pelos vistos a coisa estava estudada para fazer "merda", (para falar depressa), mas a competência do Tenente lixou-lhes a "acção".

Abraço camarigo para todos.

António Graça de Abreu disse...

Chefe de redacção do jornal Avante? Ou Arrecua?
Estamos em Março de 2010. Em que mundo é que vivemos, hoje, meu caro Mário Beja Santos?
Luis Leandro Martins, com "um olhar anti colonialista, anti-militarista", "o escritor confirmado" segundo o Mário Beja Santos, desertor, a odiar todos os que "metiam o chico por que gostavam da tropa".
Meu caro Mário Beja Santos, depois da Guiné, "Tigre de Missirá", etc.,
também meteste o chico, porque gostavas da tropa.
Luís Leandro Martins,desertor, a fazer a "guerra" dos que se assumiram por cobardes, renegados e medrosos por franças e araganças!
Estou a falar do sexo dos anjos?...
Quanta contradição!...
Abraço,
António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Eu já contribui muito, mas muito mesmo, para este peditório, mas ainda fico surpreendido quando vejo alguém transformar estes "Leandros" em heróis.

Tento compreender... cito o só sei que nada sei.....rebéubéu pardais ao ninho... blá...blá...blá...

Provavelmente... (como diria o Prof Agostinho da Silva), Provavelmente, sou eu que estou errado.

Abraço

Manuel Amaro

Carlos Pinheiro disse...

Aquela vida de militar, onde tudo era feito à pressa, dava histórias de pasmar. E sobre esta coisa da comida também é bom recordar-se.
A comida nalguns lados gramava-se mais ou menos. Noutros nem se tolerava. Apanhei de tudo. O que nos valia muitas vezes, enquanto cá estivémos e isto na recruta e especialidade, era o farnel que se levava de casa nas semanas em que havia ordem se soltura. Em Santarém, na EPC, tinhamos alguns requintes de malvadez. Até tinhamos guardanapo de pano com saco, talher completo e sempre água e uma surrapa a imitar o vinho. Quanto à comida nem é bom falar-se. A sopa quente comia-se com o bocado de pão duro, sim o pão era duro todos os dias apesar de chegar todos os dias da MM do Entroncamento. Mas para que a malta não passasse fome nalgum dia em que o comboio se atrasasse, havia sempre dois dias de pão de reserva. Comia-se sempre pão com três dias. Depois no Regimento de Transmissões no Porto, na Arca de Água para onde fui recambiado depois de ter chumbado no CSM, diga-se em abono da verdade que a comida era geralmente boa. Depois no BT, na Graça em Lisboa, mal aqueci o lugar e não me lembro da comida. Fui para o QG/Tomar, fiquei desarranchado e durante meses comia-se o que se podia. Depois veio a mobilização para o RI 15 de Tomar, para uma rendição individual. Estavam lá dois batalhões a fazer o "iao", era uma confusão do caraças e no que respeita à comida, pior só apanhei nos Adidos em Bissau, nos dias em que por lá tive que andar. Parece-me que nos Adidos nem porcos conseguiam comer aquela mistela. Depois no QG em Bissau havia dias mais ou menos, mas aí a malta sempre se podia desenfiar e quando havia patacão lá se ia comer uma febra, daquelas com as orelhas fora do prato, ao Santos ali logo em Santa Luzia. Ao Domingo o almoço era bom. Quase sempre meio frango assado, com puré de batata, vinho bom, latas de fruta e até latas de bolo sortido e vinho do Porto. À noite, para compensar, ao jantar era sempre arroz de polvo, qual argamassa. Chegámos a experimentare vriar o prato e aquilo não caía. Ficava mesmo agarrado. E para nosso azar a cantina ao domingo só tinha restos de farturas e de pão. Lá se faziam duas sandes de fartura, bebia-se uma cervejola e o bandulho ficava cheio, empaturradamente cheio. Mas também é bom lembrar-se que no QG em Bissau de vez em quando tinhamos que comer ração de combate quando as mesmas estavam a pasar a validade. antes fizessem lam do que se estragassem. Ainda sobre a gastronomia militar em tempo de guerra, também é bom recordarem-se as viagens. Para lá, no UIGE a coisa não era má de todo. Até laranjas tinhamos em Outubro, parece que embarcadas na África do Sul. Para cá a coisa foi bem pior. O CARVALHO ARAUJO estava a fazer a última viagem e a comida era horrorosa. Mas tinhamos que a comer porque não havia alternativa. No bar só vendiam cerveja, coca-cola e bolacha baunilha e a malta não se aguentava 9 dias com aquela dieta e ainda por cima a passar o equador.Só no dia em que o barco aportou ao Funchal, para meter água e nafta, é que nos fizeram um jantar normal. Era peixe assado no forno. Não parecia mau. Mas nesse dia resolvemos todos não levantar a comida. Sim, não tinhamos mesas e comiamos no convés no prato que nos tinham dado quando embarcámos e que tinhamos que lavar todos os dias com água do mar porque água doce não havia. Penso que como recordatória gastronómica isto não está mau por hoje.
Um abraço a todos os camaradas,
Carlos Pinheiro

Anónimo disse...

Imagine-se que obra escreveria se tivesse ido ao Ultramar.
Carlos Cordeiro

Manuel Reis disse...

Que me desculpem os meus amigos e camaradas se estou a cometer alguma heresia, mas não consigo vislumbrar onde estão os pecados do Filipe Leandro Lima. O seu relato traduz o que se passava nos quartéis, nas casernas e nos refeitórios, naquela época, e descreve o estado de espírito de toda uma juventude que se vai preparar para fazer a guerra . Eu revejo-me como dos actores deste texto, foi assim que vivenciei a ninha passagem por Mafra, durante a recruta e a especialidade.

Filipe Martins,neste pequeno extrato, assumiu uma posição política-militar que a sua consciência lhe ditou e critica o sistema vigente. Não consigo vislumbrar outra intenção.

Um abraço amigo.
Manuel Reis

Anónimo disse...

Quando se quer ver a história pelo lado ideológico, ou apenas pelo lado individual, dá para escrever mil prespectivas.

E este blog tem este valor imenso: mil pontos de vista.

Embora haja quem goste de uma farda e de uma ordem unida, mas que a maioria detesta, não restam dúvidas.

Talvez o sistema actual (voluntariado) seja o ideal, e aí temos herois por medida.

Antº Rosinha