Guiné > Bissau > Comandos perfilados frente ao Palácio do Governador
Em Brá nasceram os primeiros comandos da Guiné, organizados em grupos e depois em companhia. Estes comandos, de primeira geração (ou os "velhos comandos") antecederam a primeira companhia de comandos metropolitana, formada em Lamego, e aqui chegada em Junho de 1966 (3ª CCmds). Na época era Governador Geral o brigadeiro Schultz , promovido a general em 5 de Setembro de 1965.
© Virgínio Briote (2005)
Viva Luís,
Tenho estado à espera que mais camaradas apareçam, de outras paragens. A Guiné era pequena, mas foi muito grande para os que por lá andaram, passou por lá tanta gente, tanta coisa aconteceu em treze anos. Quantos passaram por lá durante esse tempo todo, alguém sabe?
E ao recordar aqueles tempos, pergunto-me se estou a ser correcto, politicamente falando, claro.
Estou de serviço, tenho que andar para a frente.
Aqui vão mais algumas histórias.
Um abraço,
vb
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Memórias de Colina do Norte (1)
4. DIÁRIO
Lulas, sardinhas, atum, carnes frias, lulas, sardinhas, sardinhas e lulas, assim há 3 semanas. Não tenho direito a reclamar, com tão pouco tempo ainda! Nem me quero ver contaminado por este ambiente, dizer mal de tudo e de todos os que cá não estão.
O Didi veio agora de férias da metrópole. É pá, guerra é aqui! Em Lisboa não querem saber de nada, apenas os que têm familiares aqui se preocupam alguma coisa. Querem lá saber da maralha! Mesmo os gajos do QG, em Bissau! Deve ser do ar condicionado, arrefece-os tanto que até se esquecem de nós.
Estou aqui há pouco mais de dois meses, ainda só ouvi tiros da minha G3, quando a estive a experimentar, levo uma vida pacata, sem problemas até agora. Só a calma é que é excessiva. Um intervalo na minha vida, passo os dias a olhar para a rua cheia de pó, o nariz cheio de catinga , o ar abandonado de todos, tudo precário.
Há dias dei por mim a lembrar-me de um artigo qualquer que li, em tempos, sobre a entrada dos portugueses na 1ª Guerra Guerra. O entusiasmo dos políticos, Portugal não pode ficar de fora, Portugal tem que fazer parte do esforço na guerra contra os boches , não pode deixar de pensar nas colónias, como então chamavam a estas terras. Depois, roupas de verão para o inverno das Flandres, o desastre de La Lys. Quem pagou? As tropas, claro. Uma mortandade, os gases, as amputações, as vidas desfeitas! Despacharam-nos para a terra, nunca mais quiseram saber deles. Vai acontecer-nos aqui o mesmo? Talvez não, os turras também não são os boches, pelo menos para já.
Estou a escrever estas coisas, para quê? Sempre as mesmas opiniões, sempre sem solução. Mas isto não é um sonho, isto está mesmo a passar-se!
Prometi-me quando cá cheguei, fazer um esforço pelo menos, evitar revelar os meus piores momentos, que os iria certamente ter. Há tão pouco tempo ainda e já vejo em mim sinais que eu vejo nos outros. Afinal, não resisti nada, estou a olhar para mim e vejo o meu moral a rastejar.
Se se vêem livres disto! É o que se ouve desta gente, a toda a hora. Estendidos nas tarimbas, mosquiteiros fechados, uns por cima dos outros, falam alto das amizades, da velha mãe, do pai seco de fome, da jovem mulher a labutar como uma moura, dos filhos que conhecem da fotografia, de tudo o que deixaram no Alentejo deles.
Custa-me entrar no celeiro, dou a volta por fora, sento-me nas traseiras numa cadeira indígena, com a mata em frente. Olho o céu exuberante de luz, tanta que nem preciso da lanterna.
Lembro-me da Barca do Lago, do rio Cávado a correr devagar, sem vontade de se perder no mar, dos tempos de ontem, de há 3 meses só, à espera que as conversas dentro do casarão acalmem.
A sentinela ao meu encontro, olhos na escuridão da mata em frente, a lua africana, um disco de luz a bater-lhe, os traços recortados. Triste, mê alferes? É sempre assim, a gente quando chega fica assim mais saudosa!
É melhor nem falar, mostrar só um sorriso, tenho medo do que diga, de mim próprio até! Já nem me reconheço, pareço outro, não fora sentir que esta boca amarga é a minha, que estes ossos são meus também, diria que era outro que estava aqui.
Já nada se ouve, apenas o sono. Acordo da minha saudade. Amanhã não tenho trabalho, é o meu dia de folga. Como se aqui houvesse dias de trabalho e de folga, mas enfim, levantar-me-ei mais tarde, puxarei a corda do regador, a água duma vez por mim abaixo, rexina, água outra vez no regador, corda nele, secar, fresco para o almoço, limpo deste suor pegajoso, disposto a aguentar as conversas do capitão Galo à mesa. A minha mulher dá aulas, diz que não tem tempo para se dedicar à nossa filha, como desejava, escreve-me isto, a mim que estou aqui tão longe, vejam lá! Conta-nos outra vez a sua vida, que não foi feito para isto, já a ouvi não me lembro quantas vezes.
O senhor é profissional, ofereceu-se voluntário, foi para cavalaria, a especialidade de carros de combate vê-se no seu peito, para quê esse emblema aqui? Esses queixumes não têm direito na sua boca, apetece-me dizer-lhe. Sei que estou errado, ele é novo como nós, nem trinta tem, também tem direito a dizer mal disto.
Faz-me bem escrever, às vezes não consigo, saem-me palavras sem nexo. Também não sou um Pasternak! Tenho pensado muito, o ambiente é propício. Espero dias mais claros, menos nevoentos. Sinto-me mais leve, mais bem disposto, depois de falar comigo!
5. ENTRE FAQUINA FULA E FAQUINA MANDINGA
Meu capitão, um dia destes vou sair com o pelotão. Ai vai, para onde? Para onde costumamos ir, Faquinas, Sitató, para esses lados!
Tem mas é juízo, pá, o Didi logo. Já tivemos Comos que nos chegasse, não precisamos de mais sarilhos! A paz nesta zona foi conquistada por nós e, se eles passam sem problemas, nós também não os temos tido. Convém às duas partes, é bom não esquecer. Cuidado, meu capitão!
Guiné > Bissau > 1965 > O palácio do Governador Geral em dia de festa.
© Virgínio Briote (2005)
O pessoal, alferes Duarte, está cá há muitos meses, demasiados, falta-lhe pouco tempo para regressar a Bissau e embarcar para a metrópole. Precisa mais de quem o proteja do que gente que o meta ao barulho…
Mas Cuntima é uma pista desimpedida para eles, para meterem minas e armas no Oio, são trilhos pisados de fresco, passam todos os dias…
A minha ideia? Sair daqui sem espalhafato, a outras horas, permanecer na zona até eles aparecerem. Se vamos sempre para o mesmo sítio montar emboscadas, se nunca os encontramos e se o caminho está sempre pisado de fresco, só não os apanhamos se não quisermos, ou então se formos aselhas…
Ao princípio da tarde numa conversa com o furriel Poças, escolheu-se quem deveria sair. A seguir reuniu-se o pelotão na presença do capitão, que fez questão de assistir à partida. Vamos dar uma volta por aí, quem quer vir?
Voluntários, só voluntários, o capitão a atalhar, e o pelotão todo a dizer, eu vou.
Tu, tem mas é juízo! Mas eu também quero ir, meu capitão, o soldado a insistir! Dos furriéis só não foi o Palhares porque lhe doía a perna, que chatice logo hoje, além disso, parecia-lhe também que estava com paludismo. 22 mais um guia indígena e 5 auxiliares nativos.
Saíram da zona em viaturas, em direcção à fronteira. Minutos depois, apearam-se e internaram-se no mato, por um caminho que mal se via, de há tanto tempo não passar ali ninguém. Foram andando com cuidado, devagar, mais separados uns dos outros, sem grandes barulhos. Afinal, o pessoal sabe andar no mato. Avistaram a tabanca de Faquina Mandinga, abandonada há muito. Chegados perto do local onde costumavam emboscar-se, prosseguiram pelas margens do trilho, até à fronteira.
Para os lados de Sitató , quase em frente a Koldá, no Senegal, viram um local descampado. Os trilhos todos marcados com pegadas recentes. Esconderam-se atrás de arbustos, de pequenos baga-baga, e prepararam-se para o que desse e viesse.
Uma volta pelo pessoal para ajustar algumas posições individuais. Estabeleceram uma frente de cerca de 100 metros, ao longo do trilho que vinha do Senegal, com a bolanha em frente, um ângulo de visão de mais de 180 graus. Todos na expectativa, prontos para o que desse e viesse. E dispostos a esperar, pelo menos até ao meio-dia do dia seguinte. Mas eles devem aparecer antes…
Deitou-se com a G3 ao lado, tirou do casaco a Agfa que recebera de Angra uns dias antes, para o caso de haver motivos. Eram para aí 17, 17 e 30, quando ouviu uma voz muito baixa dizer, atenção malta, vêm aí os gajos!
É agora, o coração a dizer-lhe conta comigo. No meio de um silêncio enorme, uma culatra puxada atrás, um barulho que até eles devem ter ouvido! Agora? A que propósito? Uns tiros, uma rajada, depois uma girândola de rajadas para o descampado em frente, tudo em pouco mais de um minuto.
Coluna de carregadores do PAIGC
Foto: © Agência de Notícias Xinhua (1972).
Sacos pelo chão, gritaria, um preto a mancar com uma bicicleta ao lado, a tentar montar para cima dela, uns tipos caídos a gemer, um não se mexia, os valentes alentejanos pareciam que estavam a jogar rugby, todos ao monte para cima deles, para aí 5 ou 6, filhos desta e daquela. Eram poucos para tantos sacos, de arroz, sal e cola, duas bicicletas, granadas, duas caixas com munições, uma Mauser, portuguesa em tempos, livros de leitura em português, correspondência… Uma pequena secção de reabastecimento do PAIGC posta fora de combate em pouco mais de meia hora.
Um trabalhão pegar naqueles alentejanos e pô-los de regresso, com os prisioneiros feridos em padiolas improvisadas. Levou mais tempo a regressarem do que a irem, está bom de ver. Iam fazendo perguntas aos infelizes que tinham sido apanhados, para onde tanto arroz, para família, e livros, para meninos da família aprender a ler, cola para a família também, e que família é essa? É uma família muito grande, não é?
E quem foi o artolas que resolveu puxar a culatra atrás? Quem usa Mauser aqui, os milícias, quem havia de ser! Tinha que ser, meu alfero, os turras vinham de lá! Mas porquê, logo quando eles estavam a entrar na zona de morte?
Este sim, foi um baptismo de fogo ! Era assim que gostaria que fosse sempre, apanhá-los à sorrelfa, sem darem por ela.
Avistaram Cuntima ao longe, a noite já fechada, os petromaxes acesos, e, junto ao arame farpado, militares e a população civil em peso.
O Galo ao encontro deles, então?
Eu não lhe dizia que era uma questão de horário, meu capitão?
Tudo bem, parabéns, mas queira Deus que este episódio não nos traga problemas. Vá-me dando pormenores, vamos para o posto de rádio, vá falando.
Uma desorganização total, meu capitão. Cada um a fazer o que lhe deu na mona, a abrirem fogo quando lhes apeteceu, a correrem todos a monte, sem segurança nenhuma, o gajo da culatra…
Espera-lhe pela volta, Gil, o Didi a virar costas, quem havia de ser?
Mas a guerra, de facto, tomou conta de Cuntima. Foi como se tivessem mexido num enxame de abelhas. Uma ou duas semanas mais tarde, a outras horas, nova emboscada, e desta vez ninguém puxou a culatra antes. Depois, umas minas, a seguir um ataque a Cuntima. Nunca mais houve paz ali.
A fronteira ali tinha sido riscada num mapa, era mais administrativa que outra coisa, não correspondia a nenhuma divisão real entre as pessoas ou etnias. Familiares viviam de um lado e do outro, às vezes mudavam-se com as famílias todas atrás.
Em Cuntima fazia-se muita psicossocial. O médico, um açoriano da Terceira, era um homem bom, com espírito muito prático, não protestava com as condições precárias. Era preciso, fazia-se. Sempre disposto a dar uma ajuda àquelas populações, não interessava a que horas. Mais que uma vez, o doutor tivera que ir ao Senegal ver gente doente. A tropa conduzia-o até à fronteira, depois entregava-o aos guardas senegaleses que o acompanhavam até à tabanca dos doentes.
No passado, aquela gente nunca tinha tido um apoio tão grande como agora. Ajudavam-se os nativos na construção das casas, providenciavam-se mosquiteiros, faziam-se desinfestações, capinavam-se picadas, limpavam-se caminhos, abriam-se outros. Nunca faltavam voluntários para ajudar. Nem precisavam de arregaçar as mangas, andavam quase todos em tronco nu. De facto, naqueles dois ou três anos, desde que o PAIGC tinha iniciado a guerrilha, estava a fazer-se mais por aquela gente do que nos outros anos todos para trás. Isto se se levasse em conta o que se via feito até então. Quase nada. A guerra tem destas coisas.
A companhia militar estacionada em Cuntima, Colina do Norte como era agora chamada, tinha um efectivo a rondar os 150 homens, a esmagadora maioria já a poucos meses de regressar à metrópole. Alguns, muito poucos, estavam lá em rendição individual, para tapar as falhas que ocorrem sempre. Esse era o caso do Gil. Os outros alferes, o Didi e o Ribeiro tinham partido de Estremoz com o batalhão 490.
O Didi tinha o tamanho de um português, um ar de bem-nascido, com o sotaque do Rio, muito pronunciado. Totalmente contra, insinuava estar tão próximo dos guerrilheiros como das tropas que comandava. Um bom coração para as questões humanitárias, sempre pronto a ajudar, quase sempre de má vontade para tudo o que fosse acção ofensiva contra a guerrilha.
O Ribeiro mantinha-se ao largo destas discussões, não se manifestava, por cansaço, ou por outro motivo. Falava da namorada e da mãe, com os olhos brilhantes para as fotos ao lado da cama. Tinha ganho no Como a imagem do alferes mais operacional da companhia, os soldados falavam dele com respeito, via-se que tinha ascendente.
O Gil acreditava no Império, em Portugal do Minho a Timor. De mãos dadas com as populações, de arma na mão contra os que se opunham. Impensável, não via como podiam ter entre eles quem pensasse como o Didi!
Tanto choque de pontos de vista em tão pouco tempo, a guerra deixou de ser motivo de conversa, evitavam-na. Limitaram-se a conviver o resto do tempo que permaneceram juntos. Quando, por qualquer motivo, um deles insistia na conversa da guerra, o outro, como se tivessem combinado antes, punha-se a falar do Benfica e do Sporting…
O capitão tinha um ar blasé. Sobre o alto, magro, uma cara fina e os olhos de medo. Os galões dele mandavam naquela tropa e as coisas andavam por si. Via-se nele o desejo de acabar a comissão o mais depressa possível, sem mais chatices, o que não era nada fácil com um Coronel daqueles.
O doutor falava dos doentes e de Angra, a cidade onde nascera. Agora que tinha ali um recém-chegado da sua terra, puxava-lhe pela língua. Conheceste o quê? O Monte Brasil e as Lajes, claro, a Praia da Vitória, a Terra Chã, a Serreta, os Biscoitos, e que mais? Visitaste o Palácio dos Capitães-Generais, o Outeiro da Memória, a Igreja da Misericórdia, os Impérios, o Algar do Carvão? E que gente conheceste? Em que café paravas? Horas e horas de conversa, perguntas atrás de perguntas. E a namorada terceirense, que tal? Aquela que te escreve, julgas que não sei? Ora, pelo endereço, calhou, só isso, mais nada. Por acaso conheço a família dela, e a ela também, cheguei até a ver-lhe a garganta!
6.VEM MESMO A CALHAR, MORREU-ME UM GAJO ONTEM
Dói-te um dente, aonde, ora deixa ver. Nada que eu possa fazer aqui, porra, estes gajos pensam que vêm para aqui tratar os dentes, mal vai a guerra quando já mandam pessoal com defeito, rosnou. Farim! Quando for dia de dentista, sei lá quando!
Sentado debaixo de um enorme poilão, em Farim, à espera da vez, enquanto o enfermeiro militar percorria a fila dos sofredores, picando este e aquele. De alicate na mão o dentista chegou-se. Abra mais a boca! Ora deixe ver, onde lhe dói, aqui? Não posso fazer isto aqui, não tenho condições, só em Bissau. E tem que tomar um antibiótico, primeiro.
Bissau outra vez. Dente arrancado, aguardava transporte de regresso a Cuntima. No QG, à porta da 1ª Rep, esperava pela guia de marcha de regresso a Farim. Nisto, vê um jeep a estacionar com estardalhaço, dois tipos a saltarem, um alferes e um tenente com um saco de serapilheira na mão, escadas acima. Farda de terylene amarela, lenços no pescoço, emblema dos comandos nos ombros, no jeep também.
Minutos depois descem, sorridentes. Gil Duarte, apresenta-se. Comandos, que tropa é a vossa, que tipo de trabalho fazem?
Porque quer saber? Pormenores? Quer mesmo saber? Então suba!
Saltou para trás, curvado para a frente, a ouvir as respostas. Golpes de mão , guia, turra de preferência, é só o que precisamos. Operações curtas, surpresa, bater e fugir, castigá-los nas costas, fazer guerrilha! Regressar a Bissau, dormir, banho, um frango assado no Fonseca, uma gaja boa e um banho a seguir. Uma guerra limpa, interessa-lhe?
Convém que se decida depressa, ainda ontem me morreu um gajo, o curso começa daqui a 2 semanas, temos 4 vagas para comandantes de grupo e ainda só temos 9 inscritos. Na formação, vai sempre alguém abaixo, sabe como é, temos que ter mais pessoal. Decida-se, tem ainda as provas de selecção, físicas e psíquicas. Conversa com o psiquiatra do Hospital é só blá-blá, claro. Material sempre às costas, mil metros, 20 flexões de braços, 20 suspensões da barra, 100 metros velocidade, cangurus, provas de tiro, tudo seguido sem intervalos, que mais pá, coisas assim, quer concorrer? Vai pensar? Ah, então interessa-nos. Porquê? Porque pensa, porra! Pensar é uma grande forma de selecção, desde que decida bem, claro.
Encontramo-nos então amanhã em Brá, 9 horas é uma hora boa.
Uns minutos para respirar, já só faltam os 1000 metros, mais um pequeno esforço, meu alferes, disse o Moita, o furriel instrutor. Como contamos a distância? Fácil, o meu alferes corre, nós vamos à frente no jeep, quando passar 1 km no conta-quilómetros, corta a meta. Menos de 4 minutos, ganha uma cerveja, menos de 3 minutos e meio uma grade, menos de 1 minuto a fábrica. Não, não me recordo, estou aqui desde a abertura do Centro, nunca ninguém ganhou a grade, que me lembre, pois não ó Mirandela?
Guiné > O "roteiro turístico" do comando Briote (1965/67)
© Virgínio Briote (2005)
A correr por ali fora, para os lados do aeroporto, a força do calor na estrada, botas a pegarem-se ao alcatrão, 1, 2, 3 km, sabia lá! Sentado na berma da estrada, esforçava-se em manter os pulmões dentro da caixa.
De regresso a Brá, apresentado ao major M. Dias, assinou os papéis. À noite, quando o largaram na Amura estava mais morto que vivo.
Na outra manhã quando tomava o café na messe, o tenente Tomás da PM sentou-se na mesa dele. Eh, Gil, grande guerreiro, coisa e tal! Os tambores tinham sido mais rápidos que ele. Porquê os comandos, o Tomás curioso. Dentro de 3 ou 4 meses o 490 vem para Bissau, o Coronel vai colocar o pessoal no ar condicionado, a aguardar, tranquilo, os meses que faltam. Porquê os comandos, chiça?
Difícil explicar agora. Nem Gil sabia bem porquê. Também não tinha muito tempo para conversas, o jeep para o aeroporto estava à espera.
Ao princípio da tarde estava em Cuntima. Encontraram-se todos na pista e foram para a sombra, gozar a calmaria do resto da tarde. Um estouro forte interrompeu as conversas, parou tudo.
Para os lados de Jumbembem (2), não? Um macaco que pisou uma anti-pessoal, se calhar, diz um.
Ou uma mina numa viatura, diz outro.
É melhor alguém sair e ir ver o que se passou.
Para quê, a esta hora, é quase noite!
Uma coluna que vinha de Farim, uma mina numa Fox , aqui perto, na estrada de Jumbembem para aqui, perto da curva da morte, parece que há feridos, o capitão Galo a correr para eles, aos gritos, não sei se devemos ir ao encontro, ou se será melhor esperar…que dizem?
Depressa, uma coluna para lá, ao encontro deles, antes que seja noite, meu capitão, um logo!
É melhor esperarmos! Arrancar já, porquê? Sabemos lá o que se está a passar, insiste o Didi.
É pá, não podemos ficar aqui a ver passar os comboios, o rebentamento foi aqui perto, temos que ir ver o que se passa, prestar auxílio, porra!
Depois de muita hesitação, o Galo decide-se, arranca o pelotão mais folgado.
Cuidado, muita atenção, nada de loucuras por aí fora, sempre a abrir, nada disso, ouviu? Tome-me conta destes gajos, falta-lhes pouco tempo! Conte com chocolate , mais que certo uma emboscada no caminho, talvez também uma mina, ouviu?
Bem pensado, a mina na Fox, a viatura destruída, a maralha embrulhada com os feridos à espera de socorros, estes a irem em socorro, de Cuntima no caso, uma mina à espera destes na picada e uma emboscada, não há dúvida, se for assim é bem pensado!
Cuidados redobrados, picadores à frente, todo o pessoal a pé, as viaturas cheias de sacos de areia só com os motoristas, uma eternidade até encontrarem a coluna. Estes, lixados com tamanho atraso, receberam-nos como se estivessem a vê-los regressar da praia.
Enfim, porra! Se não fosse a malta de Jumbembem, os feridos já tinham morrido, que caraças!
Realmente, Jumbembem também estava próximo, mas compreende-se o desespero do comandante da coluna atingida.
O Coronel é que não tinha achado graça nenhuma, mandou um rádio ao Galo, a exigir explicações. A coluna ficara imobilizada, pedira apoio a Cuntima e Jumbembem, porque é que a sua companhia só chegou uma hora depois da outra? Explique-se, estou no rádio à espera da sua resposta.
Que fora só o tempo de preparar um pelotão, mais o tempo da deslocação, as precauções que exigira do comandante do pelotão, até não fora demasiado!
O Coronel com o copo a deitar por fora há muito, deve ter dito borda fora com o Galo, vou mandá-lo pregar para outra freguesia. Foi o que fez, um auto de averiguações, corpo de delito a seguir, uns dias de prisão. Que fizesse o espólio e tomasse a próxima Dornier para o QG, que, de certo, lhe arranjaria um destino mais conveniente.
O capitão Galo, desesperado, defendeu-se por escrito, meteu testemunhas e tudo, Gil à cabeça, solidário com o seu capitão naquele caso. A demora podia ter sido menor, se pusesse as viaturas a esgalhar. No caso, não deu por qualquer perda de tempo, não se puseram a jogar as cartas, tinham percorrido a estrada com cuidado, mas nada de excessivo. Devia haver uma história qualquer por trás.
Na noite da mina, ao jantar, a saída do Gil para os comandos foi mais um assunto para a conversa. Levara-lhes uma garrafa de uísque, abriram-na, cada um falou, do mais novo ao mais antigo.
Esta companhia anda com galo, mas anda mesmo! A sina tem sido a deserção, uns por doenças, coitados, outros nem sabem porquê, grandes sacanas!
Dêsaprôvo totalmentche, prôtesto contra esse pessoau! Vi-os no Como, uns gajos horríveis, sem maneiras de lidar com as pêssoas, quanto mais com a pópulação! Só querem saber da guerra, como dar tiro no coitado do negrão, mais nada! Vou-me rêtirá, tchau, o Didi!
Até ao nosso regresso a Bissau, despediram-se oficialmente, digamos assim.
O Coronel não gostava, nem dos atrasos dos outros nem dos dele. Na primeira oportunidade, mandou preparar uma coluna e pôs-se à frente, rumo a Cuntima.
Ora chegue-se aqui, o alferes Gil está cá há quanto tempo, pouco, não é? Não teve tempo ainda de reparar que não tinha um comandante, mas apenas um capitão? E pôs-se a assinar por baixo, a dizer que gosta?
Passou uns dias à espera que o Coronel desse o ok à sua saída, o que aconteceu logo que chegou o novo capitão. Este a sair da Do, o Gil a entrar, mal deu tempo para se falarem.
© Virgínio Briote (2005)
(ex-Alf Mil Comando, Brá, 1965/67)
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(1) Colina do Norte > A nordeste de Farim, junto à fronteira com o Senegal (vd. carta da Guiné, 1961)
(2) Jumbembem > A meio caminho entre Farim e Colina do Norte
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Como Anonimo, mas identificado.
Por fortuito acaso encontrei este blog (estava a pesquisar a data, temporada, quando as novas fardas de terylene do Exercito foram estreadas. Parece uma busca banal mas faz parte do meu esforco de produzir uma obra fiel a verdade. De facto, a palavra "terylene' apareceu no texto mas em contexto exotico, em Africa, quando eu procuro um lugar mais ameno como Caldasda Rainha, pois foi la constado que os instruendos do CSM de Abril 1968, envergaram pela primeira vez o uniforme assim como botas sem polainas.
E em boa hora me perdi nesta pesquisa despistada, pois encontrei prosa encantadora nascida na orla do Cavado onde muitas vezes me banhei e proximo, em Palmeira, assisti ainda crianca a um festival aeronautico (1959?) com lancamento de paraquedistas, entao os macaricos da Forca Aerea, que me ditou o futuro, assim como ao meu irmao, que nos levou ambos a Tancos, tres anos espacados, ele indo para a Guine (1965-67) a mim para mais longe, donde nao regressei.
Amigo Virginio Briote - ia escrever Virgilio, por inspiracao de Publius Vergilius Maro - pois tanto me cativou a tua prosa e me fez lembrar o portugues vernaculo, e ate belico, do tempo quando um povo pacato se viu armado pelos ventos da historia. Mas essa prosa canta como poesia e quero assim agradecer o prazer enorme que me deu pela sua leitura. Mas principalmente por demonstrar que ha ainda quem saiba exprimr no idioma portugues a beleza da lingua da terra onde nasceu (Entre-Douro e Minho e Galiza), uma joia do povo Galaico, hoje deturpada e estrupiada pelo modernismo digital e profanada por violacao governamental.
Obrigado
Joaquim Fernandes (ex-Fur Mil)
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