terça-feira, 6 de dezembro de 2005

Guné 63/74 - P324: Antologia (31): Socioantropologia dos povos da Guiné (1971) (Sousa de Castro)

Guiné > Xime > 1972: O Sousa de Castro no seu posto de trabalho, operando o Rádio AN-GRC 9.

"O AN-GRC 9 foi o rádio com que trabalhei durante toda a comissão na Guiné em grafia... Não é para me gabar, mas eu achava-me um craque nesta matéria, trabalhar em código morse era comigo, ou não tivesse na minha caderneta a menção de TE (telegrafista especial)" (1)

© Sousa de Castro (2005)

Texto seleccionado sobre o "aspecto humano" da Guiné e enviado pelo Sousa de Castro (ex-1º cabo de transmissões, CART 3494 / BART 3873, Xime e Mansambo, Sector L1, Zona Leste, 1972/74).

Deixem-me dizer-vos que eu tenho um especial carinho pelo Castro: é o sócio-fundador desta tertúlia (2)... Sinto que às vezes não lhe dou a devida atenção! Castro, desculpa lá qualquer coisinha! L.G.

Alguns dados curiosos retirados da monografia da Guiné editados em 1971 pelo Estado-Maior do Exército com o título MISSÃO NA GUINÉ . Composto e impresso nas Oficinas Gráficas da SPEME. Sousa de Castro

O Rádio AN-GRC-9. Foto gentilmente disponibilizada pelo nosso camarada Afonso M. F. Sousa, que vive actualmente em Maceda, Ovar, ex-Furriel Miliciano de Transmissões da CART 2412; esteve na região do Cacheu (Bigene, Binta, Guidage e Barro), entre Agosto de 1968 e Maio de 1970.


ASPECTO HUMANO

População

A população da Guiné era, segundo o censo de 1960, de 544.184 habitantes o que representava um aumento de 33.407 habitantes em relação ao censo de 1950. É característica na Província a diversidade étnica dos seus habitantes (3).

Não falando já dos não autóctones – brancos, mestiços, cabo-verdianos e libaneses, na sua grande maioria – num total aproximado de 15.000, a população autóctone (nativa) guineense apresenta uma grande variedade de tipos, correspondentes a diferentes grupos étnicos (tribos), entre as quais as principais são:

- Balantas (quantitativo referido a 1962 – 150 000).

Habitam entre os rios Geba e Cacheu, com uma ramificação importante na região de Catió-Bedanda, no Sul da Província.

Dotados de boa condição física, são trabalhadores, valentes, enérgicos, com grande força de vontade e viva inteligência.

Bons agricultores, vão buscar à terra, principalmente às regiões alagadas («bolanhas»), os meios de subsistência de que necessitam. Alimentam-se de arroz, azeite de palma, milho e mandioca; apreciam muito a carne, o peixe e os mariscos.

O gado bovino que possuem destinam-no às cerimónias de sacrifício dos ritos que acompanham os funerais («choros»).

Guiné > Cacheu > Barro > CCAÇ 3 > 1968> Militares, de origem balanta, pertecentes à CCAÇ 3.

© A. Marques Lopes (2005)

Condenam o celibato. Extremamente supersticiosos, acreditam na transfiguração da alma, atribuindo à feitiçaria todas as suas desgraças.

Praticam o roubo, em especial de gado, com a consciência de um acto não criminoso, mas sim revelador da perícia própria da tribo. São animistas.

- Fulas (Fulas-Forros e Fulas-Pretos) (120 000).

Povoam o Nordeste da Guiné, a região do Gabu, Bafatá e Forreá.

Os primeiros fulas a entrar na Província foram os fulas-forros, que subjugaram e escravizaram grande número de mandingas, a quem designaram por fulas-pretos.
De um modo geral, são hospitaleiros, considerando mesmo a hospitalidade como um dever sagrado.

Apesar da influência que o islamismo tem entre eles, praticam também o animismo.
Dedicam-se ao cultivo do arroz, sem grande entusiasmo, milho e amendoim e à pesca, à linha ou por envenenamento das águas.

Do gado que criam, considerando como um sinal de prestígio apenas aproveitam o leite para sua alimentação.

- Futa-Fulas (10 000).

Povoam grande parte da região do Boé.

Nos futa-fulas, originários do Futa Djalon, donde lhes veio o nome, não existe unidade de tipo, apresentando as mais diversas características, e, normalmente, a face marcada pr dupla incisão vertical que faz lembrar o n.º 11.

Consideram-se, em tudo, superiores aos restantes fulas.

De elevada estatura, argutos e inteligentes, dedicam-se à agricultura, à criação de gado e ao comércio ambulante. Alimentam-se de arroz, de «fundo» (tipo de cereal semelhante à alpista) e de toda a variedade de frutos. Comem carne, com excepção da do porco, e não bebem vinho por a sua religião (o islamismo) o não permitir.

São polígamos, embora predominem os casamentos com uma só mulher. São islamizados.

- Manjacos (65 000).

Habitam a região compreendida entre o rio Cacheu e a ria de Mansoa e as ilhas de Jeta e de Pecixe.

Um balanta (Kumba Alà) e um papel (Nino Vieira, recentemente regressado do exílio e logo a seguir eleito Presidente da República).

Foto: Blogue Africanidades, do nosso amigo © Jorge Neto (2005)

São curiosos, astutos, dedicados, hospitaleiros, com perfeita compreensão dos princípios morais e de justiça, preocupando-se em adquirir hábitos civilizados.
Têm certa tendência para o comércio e aptidão para as tarefas marítimas.

Dedicam-se ao cultivo do arroz, exploração de palmares, pesca e extracção do sal.

São animistas.

- Mandingas (60 000).

Habitam na região de Farim, Óio, Bafatá e Gabú.

São sóbrios, inteligentes, observadores, aguerridos, alegres e comunicativos.

Com preceitos morais que os colocam acima das outras tribos, admitem o regime de castas (nobres, ferreiros – com uma importância muito especial -, ourives, sapateiros, etc.). As profissões passam obrigatoriamente de pais para filhos e os casamentos só se realizam entre membros de famílias de nobres, ferreiros, ourives, sapateiros, etc.

Dedicam-se à cultura do milho, mas comercialmente o produto mais importante é a mancarra.

O islamismo não fez desaparecer entre eles as práticas animistas.

- Papéis (40 000).

Povoam a ilha de Bissau.

São aguerridos, enérgicos, decididos, desconfiados e nadas expansivos. Tal como os manjacos, têm certa aptidão para as práticas marítimas. Alimentam-se de arroz, mandioca, batata-doce, milho, «fundo» e peixe seco.

Dedicam-se à agricultura (arroz mancarra, em especial) e ao trabalho de carregador nos centros urbanos. São animistas.

- Beafadas (13 500).

Habitam a região de Quinara. Embora robustos, são indolentes por natureza. Progressivamente islamizados, mantêm-se, ainda, agarrados às práticas animistas.

- Brames (ou Mancanhas) 12 500.

Vivem nos regulados do Có e Bula, na ilha de Bissau, na ilha de Bolama e na região continental fronteira a esta ultima ilha.

Têm grandes afinidades com os mandingas e fulas, de quem descendem por cruzamento.
São inteligentes e assimilam com facilidade os usos e costumes dos europeus.

Consideram como delitos de somenos importância, quando não mesmo louváveis, o falso testemunho, as ofensas corporais, o estupro, a violação e o adultério. Veneram o «Irã».

Dedicam-se, sobretudo, à cultura do milho e da mancarra.

- Bijagós (12 500).

Povoam o arquipélago de Bijagós. São tímidos, belicosos e desconfiados. Vivendo constantemente no mar, são excelentes marinheiros.

Em questões de namoro e de casamento, a escolha é feita pela mulher, que os bijagós têm na conta de um ser superior.

São hábeis artistas na escultura da madeira e dedicam-se à pesca e à extracção do sal.

- Felupes (6000).

Habitam na região de Varela e Susana.

São fortes e ágeis, praticantes entusiastas do exercício físico. Bons atiradores de azagaia e flechas, cujas pontas envenenam, dedicam-se à caça. São animistas.

Consideram falta muito grave a união da mulher felupe com um nativo de tribo diferente (4).

- Baiotes (5500).

Habitam ao norte do rio Cacheu, no extremo ocidental da Província. Têm grandes afinidades com os felupes, pois constituem com eles o grupo étnico dos diolas. A diferençá-los apenas existe um dialecto diferente e a sua distribuição geográfica.

São animistas.

- Nalus (5500).

Habitam as regiões do Tombali e de Cacine.

São pouco robustos e de estatura média. Muito individualistas, recusam-se a manter relações com as tribos vizinhas. Têm um conceito perfeito da justiça. Encontram-se em grande parte islamizados.

- Sossos (2000).

Constituem um ramo dos mandingas. São islamizados e têm grandes afinidades com as populações fronteiriças.

Todos os grupos étnicos da Guiné praticam a poligamia, embora existam em maior percentagem lares monógamos. O maior número de lares monógamos encontra-se nos Felupes, Cassangas e Futa-Fulas, que atingem uma percentagem superior a 70%. As menores percentagens de lares monógamos encontram-se entre os Beafadas e os Mandingas.

A poligamia praticada incide na bigamia. São insignificantes as percentagens de lares com mais de 4 esposas.

Entre as tribos guineenses existem para cima de 20 línguas e dialectos diferentes.
Introduzido pelos primeiros colonos e aceite facilmente pelos nativos, fala-se também o crioulo, que não é mais que uma mistura de palavras portuguesas (algumas muito antigas) e palavras das línguas e dialectos locais.

O crioulo permite aos nativos entenderem-se entre si.

O povoamento da Guiné é muito irregular, verificando-se serem regiões do litoral e as regiões vizinhas de Farim e Bafatá (os dois principais centros de comunicação da Província) as mais habitadas, e as do Boé e do sueste do Óio as menos habitadas.
________

Notas de L.G.

(1) Vd post de 2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCIV: Um alfa bravo para os nossos Op TRMS (1)

(2) Vd. post de 20 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - V: Convívio de antigos camaradas de armas de Bambadinca. Eis um excerto do que então escrevi:

"Sei que o BART 2917 [Bambadinca, 1970/72] e as respectivas companhias de quadrícula[Xime, Mansambo e Xitole] foram rendidas em Janeiro de 1972. Ainda ontem recebi um e-mail de um camarada dessa época (que obviamente não conheci, já que regressei a casa em Março de 1971). Trata-se do Xime [e depois em Mansambo]. O meu Batalhão estava em Bambadinca, BART 3873 (CCS), com a CART 3494 no Xime, a CART 3493 em Mansambo e a CART 3492 no Xitole.

"No meu tempo o Xime continuava muito complicado. Como descreve no seu blogue, nas estórias de um tuga, continuamos com esta terra na cabeça, nunca mais nos sai e eu continuo buscando algo sobre aquele tempo passado relacionado com a guerra. Tenho reenviado a sua estória para colegas que estiveram na Guiné e é uma forma de dizermos que estamos vivos. Bem haja. Cumprimentos, Sousa de Castro".

"O Sousa de Castro e todos os periquitos que estiveram em Bambadinca, Xime, Mansambo ou Xitole, entre Janeiro de 1972 e Abril de 1974, serão bem vindos à nossa [CCAÇ 12 e BCAÇ 2852] festa, no dia 11 de Junho, em Faro, na Ria Formosa. Eles terão muito para nos contar: afinal, andámos todos pelos sítios, picadas, rios e bolanhas do Sector L1 da Zona Leste, desde 1968 a 1974... E quer queiramos quer não, aquela terra marcou-nos a todos, a ferro e fogo, no corpo e na alma"...

(3) Vd. Guinée-Bissau.net > le site officiel des amoureux de la Guinée-Bissau e, em especial, a página dedicada aos seus grupos étnicos (em francês) .

(4) Sobre os felupes e os balantas, ver a opinião (qaulificada) do nosso camarada Carlos Fortunato, na sua página sobre a CCAÇ 13 - Os Leões Negros (ele não esconde a sua admiração tanto por uns como por outros, mas noutra ocasião, por e-mail, referiu-me que em provas físicas, na luta corpo-a-corpo, nunca viu um balanta ganhar a um felupe):

"Adversários temíveis, os felupes possuem elevada estatura e grande robustez física. São referidos como praticantes do canibalismo no passado, são coleccionadores de cabeças dos seus inimigos que entregam ao feiticeiro e usam com extraordinária perícia arcos com setas envenenadas.

"Embora se assegure que o canibalismo pertence ao passado, não era essa a opinião das restantes etnias, as quais referem igualmente que estes fazem os seus funerais à meia noite, pendurando caveiras nas copas das árvores, e dançando debaixo delas. O felupe é conhecido como pouco hospitaleiro para com as restantes etnias, pelo que existe da parte destas um misto de animosidade e desconhecimento.

"Os felupes são igualmente grandes lutadores, fazendo da luta a sua paixão. Este desporto tão vulgarizado nesta etnia, prende-o, empolga-o, constituindo o mais desejado espectáculo.

"Este grupo de felupes é famoso pela sua combatividade, a qual não conhece fronteiras, fazendo incursões frequentes no Senegal. As notícias que chegaram depois da independência é que foram todos mortos pelo PAIGC.

"Os balantas são a principal etnia da Guiné, sendo igualmente grandes soldados, trazem consigo uma grande experiência e o conhecimento do terreno, muitos deles foram milícias durante muitos anos, outros foram carregadores, outros ainda lutaram ou lutavam no PAIGC. Possuem contudo um sentimento de lealdade e solidariedade que faz com que assumam uma posição e a mantenham, a palavra traição nunca fez parte do seu vocabulário.

"Os balantas são trabalhadores rurais, que usam enxadas em forma de de remo, são conhecidos pela sua habilidade como ladrões, actividade que faz parte da sua cultura.

"Roubar não é um crime para o balanta, mas uma prova de destreza, que todo o adulto que se preza deve fazer pelo menus uma vez na vida, e se for uma vaca é sem dúvida uma grande proeza.

"O que mais surpreende nestas pessoas, é algumas das suas capacidades, pois possuem sentidos muito desenvolvidos, tais como o cheiro, a visão e o ouvido.

"Penso que foi graças às qualidades e conhecimentos dos balantas que foi possível, conseguirmos fazer o que fizemos, com tão poucas baixas. O inimigo aqui nunca foi menosprezado.

"As capacidades dos balantas permitem-lhes fazer coisas difíceis de acreditar. Um dos casos ocorreu já em Bissorã, quando numa das operações ao Queré, um soldado acordou 2 horas depois da companhia já ter saído para o mato e conseguiu segui-la e encontrá-la, numa noite escura, tendo esta passado por mato cerrado, água, etc".

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