Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 8 de dezembro de 2005
Guiné 63/74 - P330: Cartas que nunca foram postas no correio (1): Em Bissau, longe do Vietname (Luís Graça)
Guiné > Zona leste > Bambadinca > 1969 > O ex-furriel miliciano Henriques, atirador de armas pesadas, da CCAÇ 12 (1969/71) : "Saigão, meu caro, é o último lugar do mundo onde eu poderia esquecer o Vietname!"...
© Luís Graça (2005)
1. Tenho algumas cartas que fui escrevendo, no meu Diário de um Tuga, dirigidas a amigos, mas que nunca cheguei a pôr no correio. Por lassidão. Por cansaço. Mas também por receio de correr riscos, desnecessários. Nunca soube até que ponto a PIDE/DGS me vigiava, nos vigiava.
Se bem me lembro, eu era o único tuga, da CCAÇ 12, em Bambadinca, que recebia o Notícias da Amadora e o Comércio do Funchal, jornais conotados com a oposição ao regime de Salazar-Caetano. O Marques, por sua vez, recebia a Seara Nova. Não era nenhum crime de lesa-pátria nem punha o regime em perigo. Afinal, eram jornais sujeitos a censura (o exame prévio, que eufemismo!). Circulavam legalmente… e até chegavam à Guiné, pelo serviço postal militar (SPM).
Na época, poucos de nós se interessavam por política. De resto, quem se interessava por política era do reviralho, alguns grupos e grupúsculos (intelectuais e estudantis, católicos progressistas, organizações clandestinas, ligadas à esquerda e à extrema-esquerda…). Tínhamos todos nascidos no Estado Novo e sido formatados pelo Estado Novo… Quem se poderia interessar por política ?
Não obstante a efémera primavera marcelista e as mudanças de cosmética no aparelho repressivo, o país começava, perigosamente, a descomprimir-se… A contra-cultura e a contra-ideologia instalavam-se no quotidiano, nas empresas, nas instituições e até nas forças armadas… Era o famoso “espírito dissolvente”, denunciado pelos espíritos mais lúcidos e ultraconservadores do regime.
Chegavam-me, à Guiné, alguns ecos dos movimentos estudantis e as lutas operárias de 1969… Era preciso ler as notícias nas entrelinhas. De qualquer modo, começava-se a perder as ilusões sobre a natureza do regime, sob o consulado de Marcelo Caetano (que tinha estado na Guiné em Abril de 1969). E alguns de nós começavam a ter a consciência do beco sem saída a que nos conduzia a guerra colonial. Na campanha eleitoral de Outubro de 1969, a oposição ao regime defende o direito à autodeterminação das colónias… Em 1966, eu já lutava por fim da guerra, mas sabia que lá iria parar, a Angola, a Moçambique ou à Guiné… Em 1969 eu deveria ser dos poucos militares, em Bambandica, que estava recenseado, tendo inclusive exercido o meu direito de voto… Eu, o meu capitão e poucos mais…
Sempre fui um outsider. Não estava ligado a nenhuma rede ou organização política da chamada oposição democrática. Por me manifestar, a título individual, contra a guerra colonial e expressar as minhas simpatias pelo PAIGC, chamavam-me o Soviético. A alcunha foi-me posta, creio eu, pelo Sargento Piça, o sargento mais bacano que eu conheci na tropa. Uma amizade feita de muitas cumplicidades e muitos copos. Era o nosso pai e o irmão mais velho. Devia andar pelos seus 37 anos, tantos quantos os do nosso capitão Brito, militar de carreira, um bom homem…
2. Publico hoje uma carta que escrevi, de Bissau, a um dos meus amigos... Ao fim de nove meses de comissão, desenfiei-me e fui até Bissau. Tínhamos uma espécie de acordo tácito, nós, os milicianos e o sargento Piça, que nos arranjava a guia de marcha. Todos os pretextos era bons, médicos ou não médicos, para se fugir do Vietname: o mais vulgar, era “ir Bissau mudar o óleo” (sic), tratar dos dentes, marcar a tão sonhada viagem de férias à Metrópole, enfim, beber uns copos, espairecer as ideias…
Tínhamos chegado à Guiné em finais de Maio de 1969. Ao fim de menos de nove meses, era já precária a nossa saúde física e mental… Trinta e cinco anos depois, posso revelar a quem era destinada a carta que nunca chegou ao seu destino: era para o meu camarada e grande amigo Levezinho, o Tony Levezinho, furriel miliciano como eu na CCAÇ 12…
O Tony fez há dias 58 anos, no dia 24 de Novembro, no seu retiro algarvio, lá para os lados de Sagres… É uma surpresa que eu lhe faço, mesmo que ele estranhe o tom desta carta… É também um pequeno gesto de homenagem e de amizade, para com ele e a Isabel que eu , na época, só conhecia de fotografia. O Tony veio de férias à Metrópole, e casou, a meio da comissão, deixando a pobre Isabel candidata a viúva... Bom, ele nunca suspeitaria da existência desta carta que eu, pela minha parte, imaginei mandar-lhe como se ele estivesse na… Metrópole, longe do Vietname…
É uma carta insólita para um camarada, no sentido etimológico do termo: o que dorme no mesmo quarto, na mesma camarata… Devo dizer que já não me recordo de quantos dias andei desenfiado em Bissau, longe do Vietname.. Possivelmente uma semana, não mais… O Levezinho conhecia Bissau, tão bem ou tão mal como eu…Neste acaso, utilizei-o apenas como um simples interlocutor imaginário para uma conversa imaginária… Em condições normais, em Bambadinca, eu nunca faria (in)confidências deste género. Por pudor, simplesmente por pudor.
Este texto está datado, vale o que vale e algumas das suas expressões mais duras podem ferir, mesmo ainda hoje, algumas sensibilidades… Em resumo, não poderia subscrevê-hoje, tal como foi escrito há trinta e cinco anos… Mesmo assim, apeteceu-me divulgá-lo. Julgo que pode ter algum valor documental.
Espero que os meus amigos e camaradas de tertúlia, a começar pelo Tony, sejam condescendentes comigo.
Diário de um Tuga > Bissau, far from the Vietnam. 10 de Fevereiro de 1970:
Meu caro L.
Gostaria de falar-te de Bissau, cidade lumpen, e da sua morna dolce vita, em termos não propriamente de desencanto mas de desmistificação, a ti que ficaste no Vietname… E com palavras que fossem como ácido sulfúrico na pele!... Receio, porém, que a minha crueldade não chegue a tanto (que a realidade, essa, é requintadamente sádica, grotesca, como as telas de Brueghel ou do Goya!) e que não passe, afinal, de azeda esta carta que daqui te envio, aproveitando o macaréu da minha neurastenia e uns fugazes dias de liberdade vigiada. Daqui, da esplanada do Pelicano, frente ao estuário do Geba, rio tragicamente belo, insubmisso como os povos que habitam as suas margens!...
Bissau revisitada… Devo, antes de mais, confessar-te que, se acaso fugi da Guiné por uns dias, nem por isso deixo de sentir-me perseguido pelo seu fantasma. Sabes como é (ou, pelo menos, deves imaginar): uma incómoda sensação de estado de sítio (que nada tem a ver com a insularidade – aliás, pouca gente sabe que Bissau fica numa ilha), agravada, para quem aqui vegeta, pelos fantasmas dos foguetões que ainda há tempos flagelaram Bolama, a antiga capital colonial…
Bissau, cidade-caserna, cidade-bordel!... Para quê falar-te do tráfego (e do tráfico!) de carne branca sem qualquer carga erótica para lá do fetiche da cor da pele ?! De qualquer modo, o contrabando do sexo é negócio que vai de vento em popa - aqui funcionam as leis do mercado, a procura é muita e a oferta é variável ! – a par da quinquilharia oriental e sobretudo dos produtos nipónicos que ultimamente invadiram os free-shops cá do sítio, desde os Gouveia aos Taufik Saad, para quem o amendoim, o coconote e os panos de chita já foram chão que deu uvas… Enfim, o comércio da guerra e a guerra do comércio, uma parelha que sempre se deu bem em toda a parte!
Para quê falar-te dessas prostitutas que naufragam em todos os portos onde cheire a merda, a morte e a soldadesca, fugidas da miséria das ilhas de Cabo Verde e dessas outras ilhas de Lisboa e do Porto ?! Ou ainda dessas fêmeas, balzaquianas, que os tropas do ar condicionado mandaram vir da Metrópole e que passam, sequestradas, nos Wolkswagen e nos Mercedes pretos, conduzidos por soldados africanos – insólita imagem de jovens eunucos negros, subsaarianos, guardando as velhas odaliscas nos haréns dos sultões das Arábias!...
Guiné-Bissau > Bissau > 1996: Aspecto (degradado) do Pelicano que em 1970 era o melhor café-esplanada de Bissau
© Humberto Reis (2005)
Não suporto, aliás, a visão desse branco asséptico, dessa cor neutra das metropolitanas cujo tom de pele tem qualquer coisas de viscoso como as paredes dos hospitais… Receio até que esteja a tornar-me racista ao contrário ou a caminhar para a misoginia, como aquele prisioneiro que, ao sair de Auschwitz, não conseguiu sequer beijar a mulher porque tinha horror a tudo o que era humano…
Decididamente não queria falar-te de mulheres (e, muito menos, das brancas que, aqui, no cu do mundo, povoam os nossos delírios palúdicos)… Mas como não, se elas são o único antídoto contra a angústia da morte ?!... As paredes das nossas casernas no mato estão forradas de posters de gajas nuas, loiras, de olhos azuis, formas esculturais e pele acetinada, que é “para um gajo não se esquecer da carne branca” (sic)…
Em contrapartida, a pomada antivenéria (e, claro, a penicilina, em doses de milhões) é o que mais se gasta nos nossos postos de caserna. O bordel é talvez a única instituição castrense verdadeiramente respeitável… Mas se os franceses mandavam para a Argélia putas de campanha juntamente com os seus legionários, nós, tugas, não temos esse problema: fornicamos sem preconceitos raciais, ou não fossemos “um país, muitos povos, uma só Nação”!...
Imagina, pois, Bissau como estância de repouso do guerreiro. Há aqui, de certo, um equívoco, um tremendo equívoco por parte do médico miliciano, que até é um gajo porreiro, capaz de dar umas baixas aos operacionais, não obstante as ameaças veladas do comandante de sector… Mas eu estou farto dos gajos porreiros, como ele, que joga bridge com os cabrões dos oficiais superiores, apostados em ganhar a guerra (leia-se: os próximos galões) à custa de ti, de mim e da nossa tropa-macaca… É que Saigão, meu caro, é o último lugar do mundo onde eu poderia esquecer o Vietname!...
De qualquer modo, para além duns furtivos raides ao Pilão, as únicas operações que aqui se realizam ainda são do tipo gastronómico. Enfim, a nossa velha filosofia epicurista segundo a qual o melhor que se leva desta vida é ainda o que se come e o que bebe. Eis-nos, portanto, tristemente reduzidos ao ciclo vegetativo , ou seja, aos camarões, às ostras e às verdianas (sim, por que essas pretas de 1ª, na nossa linguagem machista e racista, também são coisas que se comem!)…
Quanto ao Pilão, como escrever-to ? É a grande tabanca, o grande muceque de Bissau, um verdadeiro gueto, um enorme abcesso putrefacto produzido pelo colonialismo e pela guerra, e onde frequentemente explodem as tensões raciais e étnicas.
O Pilão é o lumpen… Daí as recomendações que te fazem ao chegares aqui - lembras-te ? -, à mistura com histórias mirambolantes, pouco ou nada verosímeis, de cabeças cortadas à catanada:
- Ao Pilão nunca vás sozinho, sobretudo à noite. Os gajos são todos turras. E com as verdianas, muito cuidado, menino, que as filhas da puta já nasceram todas esquentadas! - avisou-me um furriel fotocine, no Chez Toi, uma espelunca de 3ª classe com pretensões a night club, onde os tropas de galões dourados redescobrem o gosto civilizado do champagne francês (marado…), bebido com uma pin-up ao colo, como em qualquer bar rasca, de alterne, na Reboleira do J. Pimenta…
Descobri, entretanto, que o gajo – o fotocine – não passava de um proxeneta, nas horas vagas:
- É, claro, se quiseres, tens aqui coisa fina… Pró carote, já se vê..
Trata-se de um safado miliciano, como tantos outros que estão aqui na guerra do ar condicionado, afilhados de padrinhos com boas relações no Terreiro do Paço. Cabrões que conhecem a Guiné au vol d’oiseau, de helicóptero ou de Dornier. Felizardos que passam fins de semana nas praias da Ilha de Bubaque. Gajos para quem Buba ou Bambadinca, Guileje ou Piche são tudo cartões de visita exóticos: apenas sabem vagamente que fica lá no mato, no Vietname, de preferência longe de Bissau…
Quanto ao resto, meu caro, é aquele ritmo burocraticamente febril duma cidadela militar, tradicional reduto da presença dos tugas desde finais do Séc. XVIII, simbolizado no forte da Amura. Há tropa por todo o lado, com particular notoriedade para a tropa especial aqui aquartelada – comandos, paras e fuzos – que entre duas viagens de helicóptero, ou de lancha de desembarque, na ociosidade destes dias e noites escaldantes de Bissau, se pavoneiam pelas esplanadas, de tomates inchados, apalpando o cu das bajudas, olhando por cima do crachat a tropa-macaca ou provocando-se mutuamente, por excesso de adrenalina ou por velhos ressentimentos corporativos…
O tráfego de viaturas e aeronaves é intenso mas só dificilmente nos apercebemos de que Bissau é o centro motor dum país em guerra. O melhor é tu postares à entrada do Hospital Militar e contares os helicópteros que aterram na placa…
À noite, entretanto, c’est le vide: os únicos noctívagos ainda são aqueles que vêm do mato e que sofrem da fobia do arame farpado: é vê-los até às tantas da madrugada, à mesa das esplanadas, empanturrando-se de ostras e de cervejas e contando histórias do mato. Mas em vão o guerreiro, em cura de repouso, busca outra atmosfera em que o oxigénio não esteja carregado das toxinas da angústia e da lassidão… A menos que, no dia seguinte, tenha passagem marcada para a Metrópole… Ele vem da guerra e para a guerra há-de voltar, de avião ou de barco, já que não há praticamente ligações terrestres de Bissau para o resto da Guiné. De qualquer modo, os que vêm do Vietname, ainda são as espécies mais curiosas da fauna humana que vagueia por esta capital-fantasma.
De facto, aqui desaguam todos os rios humanos da Guiné: a carne que já foi do canhão e agora é do bisturi (ou dos vermes, em caixões de chumbo, discretamente empilhados, à espera que o Niassa ou o Uíge ou o Alfredo da Silva os levem nos seus porões nauseabundos); os desenfiados, como eu, todos os que procuram safar-se do inferno verde, quanto mais não seja por uns dias ou até umas breves horas, que o tempo aqui conta-se, de cronómetro na mão, até à fracção de segundo; os prisioneiros de guerra, esfarrapados, andrajosos, a caminho da Ilha das Galinhas; as populações do interior desalojadas pela guerra; os jovens recrutados para a nova força africana; enfim, os criminosos de guerra como o capitão P. que está aqui detido no Depósito Geral de Adidos à espera de julgamento em tribunal militar – suponho eu -, juntamente com um furriel miliciano da sua companhia. Ambos estão implicados em vários casos, muito falados, violação e assassínio a sangue frio de bajudas, além da tortura e liquidação de suspeitos…
A propósito, como os tempos mudam, meu caro!.. Em conversa com um sargento de cavalaria que teve o Velho como comandante de batalhão no Norte de Angola – conversa a que ocasionalmente assisti -, o Capitão P. (que eu não sei, nem me interessa saber, se é miliciano, ou se é do quadro, ça c'est m´égale!), mostrava-se vexado (o termo é dele) pelo facto do então tenente coronel ameaçar executar, in loco, sumariamente os guias nativos que mostrassem a mais pequena hesitação na escolha dos trilhos ou os carregadores que deliberadamente deitassem fora a água dos jericãs...
- E agora, como Com-Chefe na Guiné, não permitir sequer que se toque no cabelo de um preto!
Bissau, enfim, porto de fuga e salvação!... Embora não se possa exactamente prever até onde tudo isto irá parar, com a actual escalada da guerra, de parte a parte, aqui tu tens ao menos a reconfortante sensação de teres as malas sempre feitas, pronto a partir em qualquer altura… Mas nada te garante que embarques a tempo: é que estamos todos metidos num atoleiro e em vias de perder o último avião!...
Make love, not war. Um abraço. Até mais logo. Talvez apanhe o barco da Gouveia, amanhã. Já estou farto desta merda.
Henriques [Luís Graça] (*)
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(*) Ex-furriel miliciano da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)
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