Texto do Carlos Vinhal (ex-Fur Mil, de Minas e Armadilhas, da CART 2732, Mansabá, 1970/72):
Mansabá, 13 de Agosto de 1971 – Sexta-feira
Tarde quente de Agosto que se adivinhava enfadonha. Como não tinha nada que fazer, estava deitado na cama, deixando correr o tempo e ouvia pela milionésima vez uma das duas cassetes que tinha.
O meu Pelotão estava de Serviço ao Aquartelamento e eu, como estava de Sargento de Ronda, entraria ao serviço só lá pela meia-noite. De repente lembrei-me que era Sexta-feira e ao mesmo tempo dia 13.
Como não sou supersticioso, saltei da cama e logo pensei que era o dia indicado para se fazer aquelas tarefas que se não devem fazer nestes dias ditos azarentos. Vesti-me e fui à caserna dos condutores procurar um voluntário para ir comigo ao exterior do arame farpado rebentar granadas velhas. Não foi difícil encontrar alguém, porque toda a gente gostava assistir ao espectáculo dos rebentamentos.
Enquanto ele foi aprontar um Unimog, fui levantar um Rádio e avisar o meu alferes que estava de Oficial de Dia, dos meus intentos, para que ele por sua vez avisasse todos os Postos à volta do Aquartelamento e mais quem achasse por direito ser prevenido.
Carregado o Unimog, dirigimo-nos para o exterior do arame farpado, estrada de Mansabá para o K3, para junto de uma árvore morta onde eu costumava, num buraco existente junto dela, destruir o material que ia armazenando.
Depois de dispostas, com cuidado, as granadas velhas no buraco, juntei-lhes uns pedaços de TNT providos de detonadores eléctricos para provocar o rebentamento controlado com comando remoto.
Após o rebentamento e enquanto o fumo se dissipava, aproximei-me para verificar se tinha corrido tudo bem. Mal me abeirei do local, fui recebido por um enxame de abelhas selvagens, em polvorosa, que me perseguiram, enquanto eu fugia a sete pés.
Como não fui suficientemente lesto fui picado na cabeça e nas mãos. Enquanto corria, pelo Rádio começaram a chamar por mim. Quando pude, parei e atendi: era um soldado das Transmissões a comunicar-me que o Comandante, pessoa com quem eu não simpatizava e vice-versa, ordenava que me apresentasse imediatamente no seu gabinete.
Desmontei o serviço, carregámos as tralhas na viatura e lá fomos a caminho do Aquartelamento, não prevendo já nada de bom.
Quando entrei na porta da Secretaria, o gabinete do Comandante só tinha acesso por lá, fui alvo de riso por parte dos presentes. O meu aspecto era algo caricato pelos inchaços na testa provocados pelas picadas das abelhas. Ao mesmo tempo vi caras de preocupação pelo que me esperava lá dentro.
Bati à porta e à voz de ENTRE, entrei, fiz a continência da praxe e em sentido esperei pela pancada. Indiferente ao meu aspecto, perguntou-me o Comandante, muito furioso:
- Nosso Furriel, quem o autorizou a fazer rebentamentos? - Respondi que ninguém e que julgava ter competência suficiente para saber qual era a melhor ocasião para destruir material perigoso, depositado na Arrecadação do Material de Guerra, à minha responsabilidade, desde que antecipadamente desse conhecimento.
- Mas eu não soube de nada!!!
Disse-lhe que previamente tinha avisado o nosso Alferes B. que estava de Oficial de Dia, para que ele por sua vez alertasse os postos de vigilância e providenciasse pela minha segurança e do condutor que me acompanhava.
- Vá chamar imediatamente o nosso alferes.
Fui ao Bar dos oficiais procurar o Oficial de Dia para ele me acompanhar ao gabinete do nosso Capitão. Com os dois já na presença dele, foi a vez de ser o alferes o interpelado:
- Nosso alferes, o nosso furriel Vinhal deu-lhe conhecimento de que ia fazer rebentamentos?
- Sim, meu comandante, deu.
- E você avisou-me?
- Não meu comandante, avisei toda a gente mas não me lembrei do senhor, peço desculpa pelo esquecimento.
- Nosso furriel, pode retirar-se. Por esta vez escapou de uma porrada, mas tenha cuidado comigo.
O que se passou no Gabinete do Comandante depois de eu sair não sei, mas adivinho que o alferes tenha ouvido das boas.
Na Secretaria fiquei a saber pelo nosso Primeiro que, quando se deu o rebentamento, o Capitão, julgando tratar-se de um ataque ao aquartelamento, deitou a fugir pelo gabinete fora, mas quando viu que toda a gente continuava sentada a trabalhar, impávida e serena e, ainda por cima com ar de riso, ficou furioso. Sabendo posteriormente que fui eu o autor do rebentamento, gostando de mim como gostava, julgou chegada a hora de me dar a porrada há muito prometida.
Restabelecida a ordem, dediquei-me a tratar as picadas das abelhas e a reflectir sobre a tarde que tinha passado. Não foi enfadonha, mas convenhamos que às Sextas-feiras dias 13, o melhor é ficar na cama, sossegadinho, a ouvir pela milionésima vez a música de uma de duas cassetes que se tenha e da qual se sabe de cor e salteado a sequência das canções.
Felizmente, para mim, mais tarde este comandante deu baixa por doença (?) ao Hospital Militar 241, sendo posteriormente evacuado definitivamente para Lisboa.
Carlos Vinhal
Ex-Fur Mil Minas e Armadillhas
CART 2732 (1970/72) (1)
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Nota de L.G.
(1) Vd post de 25 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLI: A madeirense CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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