segunda-feira, 27 de março de 2006

Guiné 63/74 - P636: Os donos dos carimbos (Zé Neto)

Guiné > Bissau > Outubro de 1968. Esplanada do Café Bento, a famosa 5ª Rep onde se juntavam (mas não se misturavam) o pessoal da guerra do ar condicionado e os apanhados do clima que vinham do interior. Comentário do Zé Neto: "A pele e o monte de ossos do Zé Neto que sobrou da Comissão Liquidatária da CART 1613".

© José Neto (2006)


Luís: Guarda aí esta croniqueta para quando te der jeito meteres no blogue. Se for caso disso, a apresentação é por tua conta. Boa noite, um abração e até breve. Zé Neto (26/2/2006).

Comentário de L.G.:

Os burocratas são mais ou menos iguais em toda a parte e em todas as épocas. Nas empresas, na administração pública, nas forças armadas. Em Portugal ou nos Estados Unidos. Com uma única diferença: podem ser mais arrogantes e prepotentes nas sociedades não democráticas, como era aquela em que a gente vivia durante a guerra colonial. Também dependia do seu sentido de impunidade: por exemplo, no mato, era mais difícil ao burocrata levar a burocracia à letra (por exemplo, o RMD - Regulamento de Disciplina Militar)...

Esta estória, aqui contada pelo Zé Neto, é edificante. Acaba bem. Tem moral e tudo. Mas podia ter sido um pesadelo para o nosso amigo e camarada, responsável e único membro da Comissão Liquidatária da sua unidade, a CART 1613... No fundo, a estória teve um desfecho feliz, ou melhor, à portuguesa, graças ao nosso proverbial sentido de desenrascanço...

Felizmente que os sistemas de acção humana organizada (como as forças armadas,a s escolas, as empresas, os hospitais...) são suficientemente flexíveis e contingentes (diz-se hoje, que são sistemas inteligentes) para darem lugar a (ou tolerarem) comportamentos desviantes, logica e formalmente não previstos nem desejados... Neste caso, o efeito não-previsto chamava-se Furriel Miliciano João Paulo...

Enfim, confesso que não fazia a mínima ideia do que era o trabalho dos nossos sargentos nas comissões liquidatárias. Por isso o testemunho do Zé Neto - em complemento das suas memórias de Guileje (1) - merece, mais uma vez, a nossa atenção e o nosso interesse. As guerras também se ganham (ou perdem) com os burocratas e com o seu poder, a burocracia (do francês, bureaucratie, o poder dos escritórios, das repartições).

O Zé Neto tem razão: o que um homem tinha de saber de legislação militar! Vão espreitar o famoso livrinho que nos davam na altura do embarque (Estado Maior do Exército - Missão na Guiné. Lisboa: SPEME, 1971. pp 68 e ss.). É só uma amostra...

Os donos dos carimbos (por Zé Neto)



Guiné-Bissau > Guileje > 2005 > Aqui era o aquartelamento de Guileje... © AD - Acção para o Desenvolvimento > Projecto Guileje (2005)


Preâmbulo

Não me surpreende a constatação do facto de que, até agora, só eu tenho trazido ao blogue um pouco da vivência intramuros (melhor, intra-arame farpado) das unidades combatentes no que concerne ao sector administrativo, por vezes uma guerra tão violenta e suja como a que se travava nas matas.

Aos alferes, furriéis, cabos e soldados pouco importava a manobra dos papéis desde que a pensão na Metrópole, a subvenção de família, o requerimento para a licença, os descontos dos débitos na cantina, o pré e vencimentos pagos na hora e outros assuntos estivessem em dia. Os bipés, carregadores, cantis, facas-de-mato e outros artigos perdidos nas operações eram problemas que, depois de comunicados, ficavam para o pessoal do arame farpado resolver.

Gostava de saber qual dos ex-graduados deste blogue teve o cuidado de, ao render outros num destacamento, conferir minuciosamente todos os artigos de material da Folha de Carga, ou até se essa folha lá estava, como era regulamentar.

Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68) > Alguém, numa unidade de quadrícula, algures no mato, tinha de se preocupar com os papéis, para se poder pagar a pensão na Metrópole ou a subvenção de família, autorizar o requerimento para a licença de férias ou ter o pré e os vencimentos pagos na hora... © José Neto (2006)

Compreendo. Fomos treinados para combater e não para burocratas. Será a resposta.
Só que a soma desses pequenos descuidos sobravam sempre para o Chico chato que responde pela companhia, o primeiro-sargento que, no meu caso, nem esse posto tinha.

Por isso vos trago hoje esta memória da minha campanha contra os donos dos carimbos de Bissau.

Os carimbos e os seus donos

A comissão acabou, o Niassa levou o pessoal com um saco de bagagem e duas mudas de roupa apenas e tudo o que restou ficou com a Comissão Liquidatária da companhia.

Durante duas semanas após o embarque ainda tive a preciosa ajuda do meu Capitão que se recusou a embarcar por saber da montanha de problemas que me deixava.

Depois da sua profícua actuação em que alguns Autos tramitavam de cima para baixo, ou seja, quando chegavam à secretaria do Serviço por onde deviam entrar já levavam o despacho do Chefe, que ele obtinha junto dos seus amigos e condiscípulos da Academia Militar, depois disso, repito, a Comissão Liquidatária era composta por mim de manhã, eu à tarde e o desgraçado do Zé Neto à noite.

A Guia de Desembaraço da Liquidatária só depois de carimbada por todas as chafaricas nela inscritas me dava o direito de pedir o meu transporte de regresso. Avisado de antemão e já com a experiência da comissão anterior em Cabinda guardei 20 miniaturas do Guião da companhia para os subornos, pois os donos dos carimbos tinham uma apetência muito acentuada por esses troféus.

Quando cheguei à parte de liquidar o material de guerra só restava um e esse era o meu. Por nada deste mundo alguém mo arrancava.

Lá me arrastei até à Bolola com uma pasta atafulhada de Guias de entrega, Autos de ruína, extravio, etc. aprovados e fiquei diante dum 1º sargento amanuense, pomposamente intitulado Chefe da Secção de Ficheiros do Serviço de Material, assessorado por um furriel miliciano do recrutamento local, mestiço, ali tratado por João Paulo. Foi o que me ficou do nome do rapaz.
-Hei! nosso sargento. Você tem para aí tralha a dar com um pau! …Traz o Guião?

Arrumei uma mentira dizendo que a Casa das Bandeiras (em Lisboa) se enganara na confecção e que tinham sido devolvidos, com muita pena nossa, bralaubau e por aí fora…

O homem esboçou um sorriso cínico (nunca mais esqueci aqueles dentes amarelos acastanhados que provavelmente nunca viram uma escova) e calendarizou as conferências:
- Amanhã quero o acerto da carga que trouxeram da Metrópole, depois se marca a de Guilege e ainda fica a restar a de Buba e destacamentos.

A primeira sessão foi de arrasar! Estaca práqui, pinchavelho pracolá, o homem tinha estudado aturadamente a maneira de me massacrar. Saí dali com vontade de lhe dar o meu Guião, mas o raio da peta que lhe meti, não se conjugava bem com a situação.

No Clube dos Liquidatários, que reunia ao fim da tarde na esplanada do Bento, comentei o aperto que tinha levado e logo o Parracho (meu conhecido de Macau), que já andava por lá há quatro meses naqueles trabalhos, me afiançou:
– Estás fod... com o gajo. Vai-te espremer até ao tutano. Já em Moçambique esse filho da p... fez mossa nessa função em que se especializou. Estive lá com ele. Arranja maneira de lhe dar a volta.

E arranjei. Ou melhor, os meus santinhos ajudaram-me a dar a volta por cima.
Uma tarde em que não me apeteceu aparecer no Clube, sentei-me na esplanada do Zé da Amura a emborcar cafés para curar o desalento. Senti uma leve batida no ombro e o João Paulo perguntou-me:
- Posso pagar-lhe uma cerveja?
- Não bebo disso, mas sente-se e mande vir que pago eu. Então? Conte lá.
- Passei o dia a separar as suas fichas para a conferência de amanhã e está lá uma que, calculo, lhe pode dar mais um mesito de Guiné. O meu sargento tem a Guia de Entrega assinada das cento e tal espingardas Mauser distribuídas aos núcleos de população em auto-defesa, à responsabilidade da companhia operacional de Buba?
- Espingardas Mauser??? Vi algumas em Nhala, mas até pensei que eram oferecidas como ferro-velho para os nativos caçarem. Ai que estou tramado!!!
- Acalme-se, meu sargento. Eu não estou aqui por acaso. Andei à sua procura.
- Como me incomodam as atitudes do nosso primeiro para consigo, eu resolvi arriscar o extravio dessa ficha que ele ainda não viu, e mais tarde, quando o senhor embarcar, volto a pô-la no lugar, fora de ordem para disfarçar. Depois...que Deus nos ajude.

Para que não ficassem dúvidas da lisura da sua intenção, fez questão de pagar a despesa e foi à sua vida.

No dia seguinte, chegamos à última ficha e, num gesto que me pareceu durar uma eternidade, o ogre ergueu o carimbo, humedeceu-o com o seu bafo mal cheiroso, deixou-o cair no rectângulo respectivo e, com aquele sorriso grosseiro e alvar, pegou na caneta e rabiscou o nome. Nome que conheço, mas não quero escrevê-lo para não manchar este espaço.

Dos nove quilos que perdi na Guiné, creio que nessa noite recuperei uns gramas graças à atitude indisciplinada do Furriel Mil João Paulo qualquer coisa.

Ai, meu caro João Paulo. Se a tua forte compleição física e o teu espírito de bem-fazer te conservaram a vida, andas agora pelos sessenta e eu já vou nos setenta e muitos anos. Podes crer que sempre ocupaste um lugar muito especial na memória deste velho soldado.

José A S Neto
____________

Nota de L.G.

(1) vd post de 25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (Fim): o descanso em Buba

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