quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1501: Blogoterapia (18): Carta aos tertulianos: sobre a vida e sobre a morte (Vitor Junqueira)





Guiné-Bissau > Bissau > Abril de 2005 > Crianças guineenses... Será que têm um avô, como o Vitor a quem as netas dizem 'Avô Vítor, vai vestir o teu pijama porque hoje podes dormir na minha cama, tá bem? E não te esqueças das tuas pistolas por causa do lobo mau'... ?

Fotos: © Hugo Costa (2006). (Gentilmente disponibilizadas por seu pai, Albano Costa, ex-1º cabo da CCAÇ 4150, Guidaje, 1973/74).


Mensagem do Vitor Junqueira (1), com data de 5 de Janeiro de 2007.

Luís Graça,

Hoje estou assim. Tem paciência pessoal, bota no Blog.
Obrigado.

V.J.



Carta aos Tertulianos

Meus queridos camaradas e amigos,

Espero que ao receberem esta se encontrem todos de boa saúde e óptima disposição na companhia dos vossos. Eu por aqui também m’acho bem, embora com muito frio, que é tempo dele.

Resolvi escrever-vos hoje, apenas porque sim, apeteceu-me. Talvez porque estou só e já tenho saudades das minhas netas que não vejo desde esta manhã, quando saíram para a escolinha.
Sei que nem sempre apreciam as minhas lérias, mas estou certo de que no fundo todos vocês m’amam, tal como eu a vós. Afinal, fazemos parte de uma grande família, porventura a mais alargada de Portugal. E, como tal, atrevo-me a contar antecipadamente com a vossa indulgência.

Pois é, manos, tenho andado meio macambúzio. Completei há dias os 59 anos de idade. Interiorizei subitamente, como se tivesse levado uma murraça nas ventas, que sou um … sexagenário! É assim que a malta dos jornais se refere a nós quando noticia uma desgraça qualquer. Mas pior ainda, meus caros, é que a cada dia que passa me vou dando conta de que este mundo em que vivemos já não é o meu. Os faróis que balizaram a minha existência, têm vindo a extinguir-se. Os valores em que firmei as minhas convicções, estão despencando como as falésias da nossa costa. Os jovens falam uma língua que não entendo, bebem shots, participam em raves e ouvem umas músicas estranhas. As sociedades e os povos que as constituem, eivadas de maniqueísmos absurdos, esmagam-se sem cerimónias, fazendo questão se infligirem mutuamente o maior sofrimento possível. Autênticos holocaustos ocorrem todos os dias aqui e além. Guernicas do nosso tempo (eran las cinco menos veinte de la tarde), em que já ninguém repara. E quando são notícia, nem pestanejamos, não é coisa que nos perturbe o sossego.

Perdemos a capacidade de estremecer, assobiar para o lado tornou-se a atitude mais comum. O amor ao próximo não existe, e o amor tout court já não é o que era.

Interrogo-me sobre o que ando por cá a fazer, o que andamos a fazer. Esta Humanidade merece existir? Ou andará Deus distraído?

Daqui em diante, é ver a pila a encolher, os tomates a chegarem aos joelhos, o cheiro a mijo nas calças, os olhos a lacrimejar e o pingo no nariz. Quando ao velho pinga o nariz, não faças caso do que ele diz, dizia o meu pai, a quem o nariz nunca pingou. E o receio de que a travadinha nos apanhe à falsa-fé, gera insónias levadas da breca.

Como diz uma comadre minha, cá vou indo porque ando sempre debaixo dos médicos, ficamos totalmente dependentes desses sacanas. Levam-nos o couro e o cabelo para nos esquadrinharem o corpo ao centímetro, enfiam o dedo em cada buraco que encontram e nem pedem licença, introduzem varetas de aço nas virilhas que chegam até ao coração e não contentes, esfaqueiam-nos por onde querem e lhes apetece, à traição. Sim, à traição, porque primeiro põem-nos a dormir! Entram-nos pela alma dentro, adivinham-nos o pensamento, cheiriscam nos recantos mais secretos do nosso ser e têm a lata de discutir a nossa vidinha toda em grandes simpósios internacionais onde nos reduzem à insignificância de casos clínicos. São assim os médicos. Mesmo que às vezes não pareça, mesmo com as inevitáveis excepções, eles são também os tipos mais interessados, solidários e humanos que conheço.

Por falar em casos clínicos, vem-me à memória um que gostaria de vos contar. Então com vossa licença:

Já lá vão uns vinte e tal anos, estava eu a consultar na Caixa quando me aparece uma freguesa habitual. Doméstica, de trinta e poucos anos, ocupava-se das lides da casa e do amanho da terra. Aparecia porque lhe doíam as costas, ou o coração batia demais, ou sentia um aperto no pescoço que a não deixava resfolgar devidamente … Acho que se sentia melhor só de vir à consulta, e por isso vinha muitas vezes! Era uma mulher tipicamente rural, nos modos e na indumentária, bonita, perna bem torneada, cabelo curto e encaracolado, pele muito morena tisnada pelo sol. Cara alegre (apesar do sofrimento…), tinha uns olhos ternurentos e um sorriso cativante. Perdiz serrana, como por aqui lhes chamam!

Naquela manhã vinha acompanhada pela filha, fruto de um descuido quando era ainda uma garota. A jovem, uma rapariga grande para os seus quinze anos, possuía estrutura de mulher. Atraente como a mãe, era o seu oposto quanto ao tom de pele e cor do cabelo, castanho claro a fugir para o louro. Parecia simpática, mas via-se que não estava para grandes conversas. Estaria ali contrariada? Nunca a tinha visto.

Depois de ter observado a senhora e enquanto fazia a prescrição, vira-se esta para mim e diz-me:
- Doutor, se não se importa ponha aí também umas vitaminas aqui para a minha filha.
- Porquê? Ela parece estar tão bem …
- É que este raio tem crescido muito ultimamente. Está tão grande que eu até tenho medo que fique com os ossos fracos … e além disso tem andado com o período muito alterado, inquietava-se a mãe. Hum, normal nesta idade, reflecti para mim.

A rapariga respirava saúde, mas pelo sim pelo não auscultei-a, espreitei-lhe as conjuntivas oculares, palpei-lhe o pulso, medi-lhe a tensão arterial e a temperatura. Nada, tudo em ordem. Já iam de saída quando à claridade da luz fluorescente do corredor, reparei numa manchazita hiperpigmentada por cima de uma sobrancelha que contrastava com o tom quase leitoso da pele. Parecia um pannus gravídico.
- Olha menina, volta aqui se fazes favor e deita-te na marquesa.

Obedeceu a contra gosto. Parece que lhe ouvi um resmungo.
Roupas para cima, roupas para baixo e … surpresa! Um belo par de mamas de adolescente, túrgidas, com grandes auréolas castanhas, uma linha branca que tinha virado marron e, à palpação, um fundo de útero a dar pelo umbigo, denunciavam uma gravidez no segundo trimestre. Sim senhor, lindo trabalho, pensei!

Peguei naquela espécie de funilito que antes dos ultra-sons, era o que tínhamos para auscultar os batimentos cardíacos fetais e lá estava, a cento e sessenta à hora, uma criatura pequenina a caminho do Mundo.

Sentei-me à secretária a rabiscar um papel enquanto pensava na forma de dar a notícia à rapariga mais velha.
- O sr. doutor sempre lhe receita alguma coisa?
- Sim, hei-de receitar, mais tarde. Umas três dúzias de fraldas e dois biberões, assim como um creme contra as assaduras.

Riram ambas! De repente, a mãe espantou-se. Muito séria, lançou-me um olhar interrogativo. Com um aceno de cabeça confirmei:
- É verdade minha senhora, a sua filha está grávida.

A moça, atordoada, riso histérico, perguntava repetidamente:
- Grávida, eu? Grávida, eu? Este médico não deve estar bom da cabeça - rematava. A mãe coitada, ficou pregada ao chão. A única frase que lhe ouvi foi:
- Ó rapariga, tu, vê lá se arranjas um buraco bem fundo e mete-te dentro dele, coisa que o teu pai não te ponha a vista em cima.- E de novo para mim:
- Veja bem, sr. doutor, que começou a namorar ainda não há um mês! E antes deste não teve nenhum. Como é que isto pode ser? Parece um fenómeno, eu nem acredito!

Conversámos longamente. Como profissional, tratei das formalidades para que a gravidez da jovem fosse acompanhada numa consulta da especialidade. Saíram ambas e durante largos meses, quem não lhes pôs a vista em cima fui eu. Até que um dia, no final da consulta, vem uma funcionária dizer-me:
- Dr., está ali uma doente sua que lhe quer falar, mas diz que não é para consulta.
- Mande entrar, respondi.

Nem foi necessário. Através da porta deixada entreaberta avançam, impantes de felicidade, a avó com o bebé ao colo, e a seu lado a jovem mamã agora casada e visivelmente bem disposta.
- Dr., aqui está o fenómeno - exclamou a avó descobrindo o rosto de uma belíssima catraia com cerca de três meses.

Eu próprio fiquei embevecido com o quadro belo e forte que tinha na minha frente: Três gerações de mulheres-meninas, unidas para toda a vida, por laços de amor, cumplicidade e partilha à prova de tudo!

A história do fenómeno foi-me contada em poucas palavras. A rapariga, terminada a escola aos catorze anos, tinha arranjado trabalho num estabelecimento hoteleiro da região. No final do verão participou com os restantes colegas de trabalho numa excursão a S. Martinho do Porto, Foz do Arelho e Alfeizerão com pernoita a Nazaré. Pelos vistos terá sido uma noite particularmente quente e …, já se sabe, estas coisas acontecem.

Quanto a o pai da muchacha e contrariando todas as expectativas, foi quem melhor reagiu aos acontecimentos. Inchado de orgulho com a extemporânea promoção a avô, foi o primeiro a correr o lugar levando a notícia à vizinhança e parentela. Quando a criança nasceu, não lhe cabia chícharo no cu, dizia-se por lá. O namorado, que já gostava da cachopa ainda antes de iniciarem a relação, honrou esse amor casando com ela, assumindo por inteiro a paternidade da criança que estava para nascer. Foi de Homem! Pais e sogros lá se arranjaram e fez-se o casamento com boda e tudo.

O tempo foi correndo, já repararam como passa depressa? A jovem mamã conseguiu um emprego onde lhe era permitido ter a menina. Como os meios eram escassos, transportava-a num banquito de madeira que adaptou ao suporte da sua scooter. Cruzei-me várias vezes com elas, trocando acenos.

Um dia, ao chegar a casa depois de uma manhã de trabalho, fui informado de que à minha porta se tinha dado um grande acidente com uma vítima mortal. Nesse acidente, contaram-me, a motoreta do meu caso havia sido abalroada por um automóvel com o consequente despiste seguido de queda aparatosa. A mãe esteve um ror de tempo nos cuidados intensivos, mais para lá do que para cá. Ficou muito desfigurada na face. A menina, na altura com dois anitos, teve morte imediata. Ainda não consegui abarcar o significado de tão funesto acontecimento, se é que tem algum. Estou inclinado a que o tenha, porque neste mundo andamos todos por conto, e não acredito no acaso.

Dizem que não há amor mais incondicional do que o de uma mãe pela sua criança. Nem dor mais pungente do que a da perda de um filho. Sei, por instinto, que é verdade. Sei também que esta família, completamente destroçada, mergulhada no mais profundo desespero, voltaria a passar por tudo e jamais deixará de agradecer ao Altíssimo, seja Ele quem for, a suprema ventura que lhes foi concedida; a de terem conhecido e convivido com aquele pequenino ser.

Ao evocar este caso, acodem-me ao pensamento outros casos de meninas-mães, escoiceadas de todos os lados. Como eu gostaria poder abraçá-las, enxugar-lhes com beijos as lágrimas de desespero, de insegurança e medo. Segredar-lhes que gostaria de ser o avô dos seus bebés. E como a todas, eu gostaria de abrigar debaixo das minhas telhas, sentar à minha mesa. Mas infelizmente não posso. E os meus impostos, e os vossos, mal chegam para pagar os míseros ordenados a quem tão dedicadamente se dedica à causa da governação, e comprar os submarinos, helicópteros, éfes qualquer coisa, mísseis, bombas inteligentes etc. que tanta falta nos fazem!

É tarde, numa tarde cinzenta e triste que contemplo através da minha janela. Da casa ao lado, chega-me o som trinado da vozearia de crianças. São as minhas netas acabadas de regressar da escola. A mãe terminou o turno no hospital, passou pelo jardim-de-infância e trouxe-as. Ouço-as chamar avô Viiiitor, avô Viiiitor … Num ápice estão encavalitadas sobre os meus joelhos.
- Abuô (assim mesmo, à nortenha), deixa-me fazer desenhos no teu computador - diz a Inês, que tem cinco anos.
- Eu também quero - reclama a Carolina de dois anos e meio. E para não ficar em desvantagem trata de me aliciar, a matreira:
- Avô Vítor, vai vestir o teu pijama porque hoje podes dormir na minha cama, tá bem? E não te esqueças das tuas pistolas por causa do lobo mau …

Não lhes resisto. O sol quente e brilhante, invadiu de novo a minha casa, a minha vida. Tenho que aproveitar! Retomarei o fio à meada mais tarde.
…………


Meus queridos amigos, como esta já vai longa e eu não vos quero maçar mais, vou terminar enviando abraços para todos e este pedacinho de um poema do José Régio, chamado Cântico Negro (2):

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
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Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou …
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
…Sei que não vou por aí.


Despeço-me até à volta do correio,
Deste vosso que se assina:
Vítor Junqueira

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação (Vitor Junqueira)

(2) Do livro Poemas de Deus e do Diabo (1926)

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