quarta-feira, 11 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1945: Blogue-fora-nada: O melhor de ... (1): Nunca contei uma estória de guerra aos meus filhos (Virgínio Briote)

Guiné > Brá > 1965 > Mulheres africanas trabalhando no campo.Imediações do quartel de Brá, onde funcionou o centro de instrução e formação da primeira companhia de comandos da Guiné (criada em 1964 e extinta em 1966). Os velhos comandos (Mário Dias, Virgínio Briote, João Parreira...) , como ainda hoje eles gostam de ser conhecidos. Do Virgínio Briote, nosso novo co-editor, pode dizer-se que, em menos de um ano de coma ndo, hão houve mata na Guiné que ele não tivesse pisado uma ou mais vezes, incluindo Satecuta/Galo Corubal, na minha/nossa tão conhecida região do Xime/Xitole, por onde andou 19 dias, na época das chuvas (!).

Entre outros soldados africanos, o Alf Mil Comando Briote - que foi em rendição individual, nos finais de 1964, para a CCAV 489 (Cuntima, região do Cacheu) e que seis meses depois estava em Brá a fazer o curso de comandos - teve no seu grupo de combate o Marcelino da Mata e o Jamanta (este último viria mais tarde a integrar a 1ª Companhia de Comandos Africanos que eu vi crescer em Fá Madinga).

Foto: © Virgínio Briote (2005). Direitos reservados.

1. Amigos e camaradas: De Abril 2005 a Maio de 2006, publicaram-se 825 (!!!) posts no antigo Blogue-fora-nada, rebaptizado Luís Graça & Camararadas da Guiné > Blogue-fora-nada. Alguns desses posts são de antologia, são escrita de primeira água, são depoimentos, testemunhos e até documentos, inéditos...

Muitos dos nossos amigos e camaradas que chegaram mais recentemente à nossa Tabanca Grande, nunca os leram e têm alguma dificuldade em localizá-los. Até pro que, na época, eu não punha o nome do autor do post a seguir ao título. E a numeração dos posts era em... romano!!!

Em suma, a versão anterior do nosso blogue era menos amigável do que a actual, com menos funcionalidades. Daí eu ter decidido recuperar alguns desses textos, republicando-os no actual blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (que entrou em vigor a partir de Junho de 2006, e até hoje já publicou mais 1100 posts).

O Virgínio Briote, por exemplo, entrou para a nossa tertúlia, ainda em Outubro de 2005 (1). É praticamente do primeiro núcleo de camaradas que apareceu depois do Sousa de Castro, do David Guimarães, do A. Marques Lopes e mais uns tantos. Entrou e soltou a memória, desatou a escrever. Depois retirou-se para um canto da nossa tabanca e criou o seu próprio blogue: foram os filhos que lho ofereceram, confessou-me. Chamou-lhe Tantas Vidas, rebaptizado depois como Guiné, Ir e Voltar - Tantas Vidas.

De Fevereiro de 2006 a Fevereiro de 2007, o Virgínio deu menos notícias. Mas de Outubro de 2005 a Janeiro de 2006, escreveu, para ele e para nós, coisas notáveis. É justo republicar, em parte ou no todo, algum desse algum desse material. Até para os periquitos da tertúlia conhecerem um pouco melhor o nosso novo co-editor (2). E para os velhinhos matarem saudades... (LG).

2. O melhor de... (1): Nunca contei uma estória de guerra aos meus filhos (Virgínio Briote) (3)


Pois, a Guiné! A Guiné faz parte de mim. Entrou-me no sangue aos 21 anos, tenho 62, vive comigo. Percorrem-me sentimentos contraditórios, não devia ser, mas é o que sinto às vezes. Assaltos, pé ante pé, ao nascer do dia, ou ainda de noite, de heli a qualquer hora do dia. Descargas de adrenalina e de tiros, estardalhaço de rockets, granadas, 10 minutos no máximo, retirar a seguir no goss-goss. Depois, o regresso a Bissau, o banho e o sono, o almoço farto no Fonseca. E o desassossego e a dor tantas vezes levados àquelas gentes, um peso que trago comigo, que me curva. Passou-se comigo, não ouvi contar.

Tenho respeito pelas tropas especiais, que fizeram aquilo que lhes pediram. E muito mais pelos soldados, furriéis, sargentos e alferes milicianos que, sem lhes perguntarem nada, os arrancaram ao trabalho e ao estudo. Espalhados pelas Mafras do País, encaixotados nos comboios, nas camaratas, nos beliches ou nos porões sujos e escuros dos Uíges, de G3 na mão pelas matas, savanas, tarrrafos e bolanhas, corações aos saltos, T6 e Fiats G-91 no ar, helis à procura de locais para pousarem, macas com feridos e mortos, os regressos aos abarracamentos, partir para outra, sempre assim, até ao fim dos dois anos. Viram derreter-se 2 anos da vida deles, a fazerem contas aos dias, dentro do arame farpado, entre abrigos, à luz do petromax, sem frescos, à mercê de tudo, da Dornier, das colunas de reabastecimentos, do valente IN.

Alguns nem chegaram a ir ao Cupilom, saíram dos Niassas, meteram-nos em GMCs, Mercedes, Unimogs e, ala que se faz tarde, estrada fora, a caminho de Nhacra, Mansoa, ou Geba abaixo, Buba a aparecer ao longe. Dois ou três dias depois, parecia que estavam em Bissorã, Mansabá, Cacine, há que meses.

Muito tempo, manga de chatice passada, o caminho do regresso, directos para as lanchas, quando deram por eles, nem acreditavam, era o velho Niassa ou Uíge, outra vez. E, quando chegavam a Lisboa, à terra deles, encontravam gente que lhes fazia perguntas:
- Mataste muitos turras, juntaste algum?

Tempos difíceis que a nossa geração viveu e, valha a verdade, tudo tem sido feito para fazer de conta que nada se passou. E, se calhar é melhor assim, foi só um sonho de uma noite, uma noite que durou 13 anos.
E os que viveram aqueles tempos, quando se encontram agora, recordam episódios, pequenas histórias, quase nunca factos da guerra. Devem ter motivos bem fortes para recordarem os episódios marginais e esquecerem histórias que muitos de nós preferia não ter vivido.

Desculpa lá esta lavagem, Luís. Muito raramente abordo estes assuntos, nunca contei um episódio de guerra que fosse aos meus filhos. Quando desembarquei em Lisboa, jurei a mim próprio nunca mais pegar numa arma, nem na Feira Popular. Quase quarenta anos ao arrumar um sótão de uma casa na aldeia, bem lá para o Norte, vi duas malas cheias de pó. Cartas, roupas, facturas, e uma pistola dentro de um estojo. Quebrei a promessa. Peguei-lhe, meti-me a caminho das margens de um rio e lancei-a para o sítio mais fundo.

E pronto, Luís, a minha prosa bélica acaba aqui, por hoje (...).

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd, post de Guiné 63/74 - CCLV: Virgínio Briote, ex-comando da 1ª geração (1965/66)

(2) Vd. post de 11 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1943: Virgínio Briote, novo co-editor do blogue

(3) Vd. post de 23 Outubro 2005 > Guiné 63/74 - CCLVI: As estórias que não contamos aos nossos filhos (Virgínio Briote).

1 comentário:

Anónimo disse...

Boa-Tarde Caro Virgínio Briote!

Sabe que ao ler este seu depoimento voltei atrás no tempo e senti toda a nostalgia desses anos!?
Era assim como descreve, que por cá, ignorantes da realidade vivida por vós, víamos a situação!
o vosso risco constante, a morte sempre presente, a dor, o ter que cumprir ordens de matar, pedido feito a jovens, que da morte apenas tinham ouvido falar esporadicamente: por isso os vossos traumas, a vossa dor, a vossa revolta, a mágoa de ter sido cumpridores de ordens contraditórias aos vossos sentimentos, os sons que ficam, os gestos, o tempo que permanece inalterável. Foi assim, no desconhecimento, que se imaginava o cenário, porque guerra sempre significou (horror).
E, se falo disto agora, é porque acho, que devem saber, que apesar do pouco que diziam sobre o que então vivênciavam, por cá também se calava o que se adivinhava, e que doía, evitando falar, para que o silêncio, guarda-se o que não se ignorava.
Quando digo (por cá), refiro-me ao povo , às famílias, aos amigos que os esperavam.
Acredito que nunca tenha contado uma história de guerra aos seus filhos, eu também não contaria.
Sempre fui solidária com a vossa mágoa e continuo interessada e vivendo as situações,que vos marcaram, que vos continuam marcando, e com todos os que vivem as vossas recordações.
Sou ANTI-qualquer forma de agressividade!
A liberdade é um Bem, que preso sobremaneira e que acho ser um direito de todos os povos do mundo.

Quando os homens pensarem em se respeitar mutuamente...deixarão de haver conflitos, e o mundo será um Paraíso!

Um Abraço da

Felismina Costa