Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > 1968 > Pel Caç Nat 52 > O Iedró Djaló, milícia, a partir lenha... "Nunca conheci um gago como Ieró. Antes de falar, o rosto contraía-se todo e explodia num trovão as primeiras palavras. Tinha seguramente problemas psicológicos, pois partia sozinho para Finete, alegando saudades da família. Era-lhe indiferente os castigos, duros ou brandos. Irei entregar-lhe à guarda um prisioneiro feito em Quebá Jilã, em Fevereiro de 69, e durante a Opeão Anda Cá apareceu-me durante a madrugada, a escassos quilómetro de Madina a informar-me que o prisioneiro tinha fugido"...
Foto e legenda: © Beja Santos (2007). (Com a devida vénia ao Luís Casanova, que foi o fotógrafo, e que era furriel miliciano no Pel Caç Nat 52). Direitos reservados.
Mensagem do Beja Santos, enviada a 6 de Junho de 2007: Caro Luís, aqui vai o episódio da semana. Encontrarás a fotografia do Ieró Djaló no pequeno lote cedido pelo Luís Casanova. Recordo que tens ainda dois bilhetes postais de Bissau da primeira leva que te mandei e que mostram exactamente os locais onde se situava o Comando Naval da Guiné. mas certamente que elementos sobre Bissau não te faltam. Até ao nosso encontro entre 12 e 15 de Junho, e recebe um grande abraço do Mário.
52ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado a 6 de Junho de 2007. Comentário do editor: Por lapso nosso, este episódio não foi publicado na altura. As nossas desculpas ao autor e aos leitores do nosso blogue. Vd. os posts posteriores (53 e 54) e anterior (51)(1)
Em Bissau, no julgamento de Ieró Djaló
por Beja Santos
Os preparativos da ida a Bissau
Parto amanhã, dia 1 de Julho, para Bissau, onde serei testemunha no julgamento de Ieró Djaló, o cabo das milícias de Missirá que, na madrugada de 22 de Fevereiro, no decurso da Operação Anda Cá (2), tendo a seu cargo a custódia do prisioneiro de Quebá Jilã, o deixou fugir enquanto dormia.
Reuno ao fim da tarde com os três furriéis (Casanova, Pires e Pina) e o Comandante da milícia, Albino, o gentil príncipe Samba. Comunico, em primeiro lugar, algumas decisões: Casanova vai descansar uma semana em Bambadinca, consultará o médico, o Dr. Domingos, e repousará pois é notório que tem os nervos em franja, tornou-se agreste, perde peso e tem períodos de abulia; vai amanhã comigo, fica isento de qualquer actividade operacional; em segundo lugar, as férias dos soldados ficam novamente suspensas, só haverá dispensas a título excepcional, temos gente cada vez mais doente e na semana passada houve dois dias em que repetimos Mato de Cão em 24 horas, o que me levou a abolir as emboscadas nocturnas; o plano de actividades ficará subordinado à construção de um novo abrigo de morteiro 81, em local mais estratégico do que o actual; como, entretanto, o Capitão Rui Gamito me escreveu a comunicar que vai ser disponibilizado o gerador eléctrico para Missirá, deixo ao critério dos meus colaboradores a construção do respectivo abrigo;o professor primário, de nome Benício, terá o seu contrato renovado por provas de desvelo com a cartilha maternal e tabuada, e ser-lhe-á solicitado que passe uma semana em cada mês no aquartelamento de Finete, até se encontrar uma solução para recrutar um professor permanente; relatei a conversa havida com o régulo Malã após o incêndio da cubata da sua tia, Fatumana, a anciã só aceita a reconstrução desde que seja uma cubata circular, seremos responsáveis pela cobertura e cimentação do interior, mas serão os civis a reconstruí-la logo que termine a época das chuvas; por último, peço ao príncipe Samba que se entenda com Bacari Soncó para que haja a deslocação de 7 a 10 homens de Finete para Missirá, para apoiar os patrulhamentos a Mato de Cão, nos próximos dias.
Com a ajuda de Cherno preparo a mala e vejo o estado da farda nº2. Emagreci 10 quilos, danço dentro dos calções, calças e camisas, meticulosamente passadas pela Binta Camará, a mulher de Sabidi. Separo alguma roupa, artigos de higiene, livros e aerogramas. Espero voltar o mais tardar em três dias, mas estou sempre condicionado pelos voos, muitos deles cancelados, pelas situações de emergência.
Escrevo um aerograma à Cristina que amanhã espero meter nos correios em Bissau. Falo-lhe na carta de José Jamanca que eu ainda não sei que será um amigo para toda a vida, está agora em Bolama, tem saudades nossas; Fodé escreveu, está contente com as suas sessões de ginásio, parte em breve para a Alemanha Federal; digo que o Cherno nos surpreendeu, pois foi à caça com Cibo Indjai e apanhou um pato bravo, vitualha que se revelou deliciosa depois de bem esfregada em pimento e alho e frita no forno, parecia cabrito; e que amanhã de manhã, vou assistir às cerimónias religiosas da defunta do almani de Finete; e, relato a satisfação de todos aqui em Missirá com a nova casa de banho, e prometo por último que espero telefonar amanhã ao fim da tarde para Lisboa. Será que não tenho consciência que canso a Cristina com este número infindável de vulgaridades?
Saímos ao amanhecer, como sempre vamos sem cuidado até à zona de Caranquecunda, depois pica-se a preceito a estrada até Flaque Dulo, vamos mais rápidos até Canturé onde os pomares florescem e depois embrenhamo-nos no mato denso até Finete, sempre a picar. Assisto à cerimónia religiosa, converso com Bacari sobre a compra da catanas e machados, deixo aqui Mamadu Camará e Tomani Sanhá que vão trabalhar com a motosserra para limpar a vegetação hermética logo acima de Malandim e prossigo viagem.
Não disse à Cristina que estou com infecções nas pernas e um ouvido a zunir. Em Bambadinca, bato à porta do Dr. Domingos que me deu Di-Adresson, qualquer coisa que tem uma acção muito superior à da cortisona e mandou pôr-me álcool iodado no ouvido. Findo o tratamento vou despedir-me do Pimbas. Estou longe de imaginar que esta é a última vez que nos veremos em Bambadinca, quando eu regressar, ele, o Major Pires da Silva e o Capitão Baptista Neves já terão partido com punições, por esta ou aquela razão.
O Dakota partirá pela 1h da tarde, de Bafatá, chegou a hora de subir para o Unimog e lçançar-me na estrada alcatroada na companhia dos meus fiéis amigos. Cherno toma para si o encargo de me levar a mala. A atmosfera no aeroporto é de muita tensão; terá sido ontem ou anteontem que um helicóptero-canhão explodiu de encontro a uma antena no aeródromo, morreu um capitão e um cabo. O Dakota parte à hora , prometo a todos trazer o que me pedem dos mercados do Bissau Velho e de Bandim. Do ar, quase que procuro Missirá, mas o voo segue mais à direita perto de Mansoa.
Aproveito para rever os meus papéis onde registei tudo o que quero tratar e quem quero visitar: a Engenharia em Brá, falar com Manuel de Lucena acerca do meu recurso e do que devo dizer amanhã em julgamento, jantar com a Maria Luísa e o Pedro Abranches, antes procurar telefonar nos correios de Bissau à Cristina e à minha mãe, não me preocupar com a dormida, posso entrar em qualquer hora no Quartel General, a camarata está sempre disponível e o julgamento está marcado para as 11horas.
Uma intensa agenda social em Bissau
De Bissalanca consigo uma boleia para Brá e entro nos pré-fabricados do Batalhão de Engenharia. O Rui Gamito recebe-me com visível satisfação e apresenta-me ao Emílio Rosa, que em Abril próximo será meu padrinho de casamento. As notícias que têm para mim são entusiásticas: Missirá e Finete foram contempladas com 21 toneladas de material de construção; o gerador está confirmado e garantido, dentro em breve será colocado no cais do Pidjiquiti e eu terei que cuidar de alguém que o acompanhe até Bambadinca, no bojo de um batelão.
Logo simpatizei com a afabilidade do Emílio Rosa, que prometeu novas ajudas, sobretudo quando lhe falei em dois abrigos que carecem de renovação absoluta. Sigo para o Quartel General e falo com o jurista. Confirmo tudo aquilo que eu ouvi do Valentim, em Bambadinca: o juiz irá interrogar-me sobre os antecedentes de Ieró Djaló, depois pedir-me-á toda a informação sobre a ocorrência e como é que eu tomei conhecimento da fuga e qual o comportamento seguinte do réu; seguir-se-á um interrogatório sobre o que eu penso do futuro do réu, isto é, se penso existirem condições para o seu regresso ao serviço militar. A informação que tenho sobre o meu recurso é enigmática: haverá alterações, nada mais se poderá dizer por ora.
Parto para o centro de Bissau e reencontro à porta de um café o Almeida, do Pel Caç Nat 63, que já foi colocado em Bolama. Aproveito para lhe reiterar que lhe devo muitíssima estima pela camaradagem que estabelecemos ao longo deste ano, pela bondade que ele teve em levar coisas para Lisboa, pela tragédia recente do suicídio do Benvindo, que imprevistamente se desfechou em si um tiro, quando estavam no Xime. O Almeida ficou abalado, não sabia reagir, confuso e magoado, é assim que ficamos e todas estas perdas são súbitas, como inexplicáveis e igualmente irreparáveis.
Volto a ter sorte com o telefone, oiço a Cristina, minto-lhe dizendo que estou fisicamente bem, que não se alarme pois vim só como testemunha abonatória, pergunto-lhe pelos estudos, reforço a minha confiança no futuro, não excluo, e digo tudo com voz firme, ir a Lisboa em breve. Descanso-a com a promessa de novo telefonema amanhã pela mesma hora. O telefonema para a minha mãe faz-se aos gritos, cada vez mais surda, não percebe exactamente porque estou em Bissau, pergunta-me se venho para Lisboa nos próximos dias e queixa-se do seu sofrimento físico. Anoitece, vou rezar à catedral, fico para a missa e depois sigo para casa dos Abranches que me recebem com a ternura do costume, repito a sopa de ostras e depois o assado e depois a fruta. Eles olham-me com enlevo, supondo que levo um quilo a mais no combate a este corpo esquálido, quase a definhar.
O Pedro deixa-me à porta do QG e entro no assombroso Vaticano III. Para quem já esqueceu, é uma camarata que só falta estar a céu aberto, parece uma ampla sala de espectáculos, onde uns vociferam, outros cozem a bebedeira, outros roncam e até há quem gema no interior dos seus pesadelos. O Vaticano III é um eloquente bastidor desta guerra, para aqui convergem os jovens oficiais dos três teatros de guerra de todo o exército. Recebo os lençóis e adormeço rapidamente neste universo concentracionário. Adormeço na certeza que hoje não haverá flagelação...
No Tribunal Militar com Ieró Djaló
Nunca mais esqueci os amanheceres ruidosos e o caminhar na laterite de Santa Luzia até ao centro de Bissau: o restolhar das mulheres ruidosas, as sabadoras alvas, puríssimas onde se penduram os andares majestosos, sobretudo dos mandingas e dos futa-fulas, cor de cobre. Sigo até ao tribunal militar, uma outra casa em cimento, fresca e sombria por dentro e onde se acotovelam aqueles que vão ser os julgados por terem morto, desobedecido, insultado, quebrado as regras que a lei militar não consente.
Estão lá os réus, as testemunhas, fazem-se perguntas, explica-se pela décima milionésima vez o que aconteceu, interpela-se quem chega, tenta-se reduzir a ansiedade, pedem-se explicações a quem chega para saber se as nossas acusaçõers são menores que a dos outros. Junto-me a Ieró Djaló, peço-lhe serenidade e comento o que vou dizer em função do crime que lhe foi imputado. A expectativa cresce, não podemos entrar na sala até que um meirinho nos chama a todos, salvo erro três julgamentos à uma.
Sinto-me industriado e confiante em que Djaló tenha todas as atenuantes possíveis. Interrogado pelo juiz, ele a tudo responde quase monossilabicamente. Identificou-se, corrige o nome do pai e a data de nascimento. Confirma que lhe entreguei à sua guarda o prisioneiro. Confessa o seu cansaço e que não se lembra de nada até acordar, espantado com as cordas vazias e que logo me foi avisar, já passava da uma da manhã. Declara que não conhecia o prisioneiro, e disse-o com tal naturalidade que nem havia revolta ou indignação pelo que de horrível pudesse haver em tal pergunta. E, sem que lhe tivessem feito qualquer comentário, empertigou-se, olhou de frente o juiz e disse: "Tenho muita vergonha do que se passou, juro que não volta a acontecer".
O Ieró Djaló que eu apresentei naquela sala numa semi-obscuridade nada tinha a ver com o jovem que de repente desaparecia de Missirá e ia sozinho para Finete, que me dava dores de cabeça quando ia à fonte de Cancumba e fazia propostas menos transparentes às mulheres dos seus camaradas. Nem muito menos me passou pela cabeça alegar que ele era muito bom rapaz mas que tinha inegavelmente um qualquer atraso. O Ieró Djaló sobre o qual eu estava a informar o tribunal era um militar disciplinado, sempre disponível e com múltiplas provas dadas no terreno de operações.
Quanto aos acontecimentos da Anda Cá, resolvi descrever um cenário quase dantesco de calor e pesadelo físico, isto para comentar que estávamos completamente exaustos quando acampámos a escassos quilómetros de Madina. E depois, deu-me para fazer ficção, dizendo que Ieró Djaló queria partir sozinho em perseguição do prisioneiro, e que o contive a custo. Quando fui interpelado sobre o seu futuro, disse sem hesitar que gostaria de o levar ainda hoje para Missirá, caso o meritíssimo juiz assim o entendesse.
Fim do julgamento, foi a marcada a leitura da sentença para o dia seguinte à mesma hora. Surpreendi o Ieró Djaló convidando-o para irmos comer galinha frita no Solar dos 10 e ele aceitou com satisfação. Parece que conheço o Ieró Djaló desde a infância.
À tarde, dirigi-me ao Comando Naval onde encontrei o Comandante Teixeira da Mota. Estava atarefado, sugeriu que jantássemos juntos e logo aceitei. Tinha horas à minha frente, atirei-me às compras, especiarias, peixe seco, folhas de tabaco, tecidos e depois andei a rebuscar nas estantes das poucas livrarias de Bissau. Com as despesas contidas, nem me atrevi a olhar para os discos.
O cais de Bissau foi sempre uma atracção para mim, sentei-me num banco a ver o movimento do porto, o pontilhado dos ilhéus, o vozear dos marinheiros e estivadores. Li os últimos contos de Aldeia Nova, do Manuel da Fonseca, voltei aos correios, dei notícias à Cristina do julgamento, agradeci-lhe o desvelo com que ela tratava o Paulo e o Fodé, pedi-lhe desculpa pelas minhas cartas às vezes tão desencontradas devido ao cansaço, voltámos a falar do futuro e dei-lhe a saber que esperava amanhã à tarde ter um avião de regresso. Então, sem sabermos porquê, começámos a chorar de mansinho e a dizermos aquelas banalidades seguramente próprias de quem não se vê há praticamente 1 ano. Prometi escrever com mais regularidade, quando saí dos correios ainda havia aquela luz crua que ofusca e nos faz olhar defensivamente para o chão. É com alguns sacos que regresso ao QG, deposito a carga e aproveito a boleia de um jipe para voltar ao bulício da cidade.
É aqui que me aguardam várias surpresas. Primeiro encontro o Saiegh. Sabia pelo Serifo Candé que eu viria a Bissau em breve, sentados à mesa do café revela-me que quer voltar para o exército e diz-me num frase hiperbólica: "Dentro em breve, estarei a formar uma companhia perto de Missirá." Eu não sabia, demorei muito tempo a saber, que em Fá se irá formar a primeira companhia de comandos africana. Quando me estou a levantar e a despedir-me do Saiegh, surge-me o Vargas Cardoso, em tratamento em Bissau, felizmente fomos parcimoniosos, não queríamos ambos falar da guerra, embora eu estivesse devorado por saber como estavam os meus antigos soldados.
Um jantar num vaso de guerra, antes dos fuzileiros partirem
O Comandante Teixeira da Mota veste irrepreensivelmente de branco e vamos jantar a bordo de uma embarcação donde, na madrugada seguinte, partirão fuzileiros para uma operação. É um espectáculo estranho, de um lado a amenidade à volta de uma mesa de jantar enquanto que lá fora se carrega armamento e os combatentes limpam as armas. O Comandante Teixeira da Mota tem livros para me oferecer, voltou a falar de Bucol, tive a decência de não lhe dizer que lá estivera, num gesto irresponsável. Sinto que este meu amigo está desconfortado com o que faz, ele é um intelectual que dificilmente convive com esta urgência de operações, embarques e desembarques com auxílio da força aérea, dos comandos e dos pára-quedistas. É um jantar muito agradável mas onde, em dado momento, prefiro calar-me, não quero falar da guerra e já respondi a tudo o que aqueles gentis oficiais queriam saber sobre a navegação do Geba e a singularidade do meu viver em Missirá. Apercebendo-se que estou exausto, o Comandante Teixeira da Mota conduz-me até ao Vaticano III. Não o voltarei a ver mais na Guiné.
À hora aprazada, entramos na sala e o juiz profere a sentença que o nosso cabo Ieró Djaló recebe sem pestanejar: 15 dias de prisão, está livre pois aguardou mais do que este tempo nos calabouços. Cá fora abraço-me a esta fonte de preocupações, temos os olhos humedecidos. Peço-lhe para embarcar amanhã cedo para Bambadinca e parto com os meus haveres para Bissalanca, à espera do primeiro avião.
Nessa tarde só tenho voo para Nova Lamego e aceito sem hesitar. Chegado a esta povoação, que é uma Bafatá em ponto pequeno, vou perguntar ao quartel se há transporte para Bafatá. Sim, não hoje mas amanhã ao amanhecer. Dessa curta estadia recordo um serão passado com um oficial muito cordato, tanto quanto me lembro era o Major Guimarães que me falou do agravamento da situação militar, recordou os primeiros ataques com os mísseis, equipamento que iria mexer com a moral das tropas, contou-me a dureza do ataque a Piche no mês anterior.
No dia seguinte, aproveitei a coluna que viera de Bambadinca buscar o correio a Bafatá, já pude almoçar neste meu círculo de boa camaradagem. Estou contente com tudo o que se passou com o Ieró Djaló, triste por ver a mesa do comando vazia, todos se interrogam sobre quem virá substituí-los. Ao princípio da tarde, já com o camuflado vestido e cheio de boas notícias para as gentes do Cuor, Mufali Iafai deposita-me na bolanha de Finete que atravesso na companhia dos soldados milícias, que me pedem vezes sem conta que descreva um julgamento militar.
Foi um período agitado, li pouco mas comecei leituras estimulantes. Para as idas e vindas de avião, fez-me companhia O Santo e os diamantes roubados, de Leslie Charteris. É um policial de acção, inclui uma louca correria de uma equipa de de bandidos a soldo do Príncipe Rodolfo, parente do Imperador Francisco José, através da Áustria e da Alemanha, para roubar as jóias que o Santo por sua vez roubara a outro ladrão. É um furto valiosissimo de rubis, pérolas, safis e diamantes, de que faz parte o diamante azul Ullsteindach, prenda de casamento do Imperador ao Arquiduqe Miguel. Simon Templar vencerá todos os obstáculos na companhia de Patrícia e do seu inseparável amigo Monty Howard. Nunca me desfiz do livro por causa da bela capa de Lima de Freitas.
Manuel da Fonseca deixou-nos belos contos sobre o Alentejo. Belos e trágicos, ao nível da epopeia, relatos de fome, de castigo, memórias de infância, registos de injustiças, homenagem à beleza telúrica. A Aldeia Nova é uma colectânea de contos onde se cruzam memórias poéticas e o sofrimento do campesinato. Como numa sinfonia gloriosa, os primeiros acordes são vigorosos na vibração e na tragédia. Um exemplo logo no primeiro conto, Campaniça: "Valgato é terra ruim. Fica no fundo de um córrego, cercada de carrascais e sobreiros descarnados. O mais é terra amarela, nua até perder de vista. Não há searas em volta. Há a charneca sem fim que se alarga para todo o resto do mundo. E, no meio do descampado, no fundo do vale tolhido de solidão, fica a aldeia de Valgato debaixo de um céu parado". Sim, Manuel da Fonseca é um dos maiores contistas e soube superar os rudimentos e as limitações do neo-realismo. É bom lê-lo lá no fundo do Cuor.
A rotina vai prosseguir até que no próximo dia 15 Missirá vai ser duramente flagelada mas o revés vai recair sobre a gente de Madina. Serifo Candé virá um dia destes com um gerador que ficará armazenado em Bambadinca, não pode ser transportado por Sintex, é arriscado levá-lo na bolanha. Não será no meu tempo que o verei a funcionar em Missirá. Os patrulhamentos a Mato de Cão não vão abrandar e um dia vamos voltar ao Enxalé, para desgosto de quem vive em Madina. O estado do Casanova é preocupante, o médico fala em depressão. O pior está para vir. Nos fins de Julho, voltarei a adoecer e aguardam-me dolorosos desgostos. Alguém que eu muito estimo me irá chamar "branco assassino". Não serei o mesmo, depois.
___________
Notas de L.G.:
(1) Vd. posts de:
6 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1927: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (54): Ponta Varela e Mato Cão: Terror no Geba
29 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1898: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (53): O ataque a Missirá de 15 de Julho de 1969, visto pelo bravo mas modesto Queta Baldé
22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1870: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (51): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (5)
(2) Vd. post de 23 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1542: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (34): Uma desastrada e desastrosa operação a Madina/Belel
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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