1. Texto de Virgínio Briote, co-editor:
- Corta as pontas das balas com o esmeril ou com um alicate e vais ver se os turras não caem como tordos…
- Mas eu acertei-lhe, o gajo até se dobrou! E não caiu!
Quem de nós não ouviu conversas destas, contadas por gente tão diferente, ao longo de anos e anos até se perfazerem 12 de guerra?
Tal como entre nós, histórias simples passaram a ser contadas e arredondadas pelos que se seguiram, sempre e sempre acrescentadas em mais um e mais um ponto, até se tornarem autênticas lendas, e de que alguns dos nossos foram protagonistas, também os nossos Inimigos de então as cultivavam, e tal como as nossas façanhas passaram a lendas com sabor africano.
Quem não se lembra da anedota do Vexa e Sexa, aquela do Informo Vexa que sigo na mecha. Quando a ouvi pela primeira vez, aí por meados de 65, no Bento (aonde havia de ser...), essa história ter-se-à passado com um então Cap Rosas da CCAÇ 762 (que me perdoem o Cmdt da CCaç 762 e o Cap Rosas se o caso não se lhes aplica), um episódio, aliás, com mais uns acrescentos que, sendo hilariantes, para o caso nada acrescentam.
E tantas vezes deve ter sido contada que passou a lenda. Uns anos depois, à mesa de um café, ouvi-a da boca de um capitão miliciano (daqueles que já eram uns senhores, que a tropa, à falta de quadros profissionais, arrebanhava à má-fila), em que o dito capitão se vangloriava de ser o autor dessa mensagem.
(…) ouvi muitas vezes estórias que versavam sobre os poderes especiais que tinham certos líderes nacionalistas e combatentes na luta pela libertação nacional. Dentre esses poderes, o que mais chamou a minha atenção foi a capacidade que os heróis da pátria tinham de ficar invisíveis em situações de contato armado com as forças portuguesas. (…)
2. Wilson Trajano Filho, antropólogo brasileiro, fala da Guiné, dos tempos que lá passou entre 1987/88 e em 1992. Publicou em 1994, na Série Antropologia, um trabalho sobre O poder da invisibilidade.
O autor fala das estórias que se ouviam sobre a capacidade de certos guerrilheiros ficarem invisíveis aos olhos das nossas tropas. De lendas que corriam entre a sociedade crioula durante a luta pela independência e que perduraram até hoje.
(…) No entanto, passados vinte anos da independência do país, essas histórias continuam a circular em Bissau e em outras cidades da Guiné, indicando que elas permanecem portadoras de significação para aqueles que as contam e as ouvem. (…)
É uma obra sobre um assunto, algo enigmático, tal como a Guiné o foi para muitos de nós, jovens de vinte e poucos. Permanecemos cerca de dois anos num território, muitas vezes sem nos apercebermos de que as gentes com quem convivíamos tinham usos e costumes, acumulados em séculos de migrações, com culturas que nós, europeus, de tão estranhas, não queríamos saber nem tão pouco dar conta.
O Autor justifica o porquê do seu interesse pelo assunto da invisibilidade, cultivado pelas gentes africanas:
(…) A motivação para este trabalho surgiu a partir de uma conversa informal que teve lugar na madrugada de 31 de Maio de 1988. Eu estava hospedado em uma grande casa construída no centro de Bissau, ainda na época colonial. O proprietário da residência me instalara em um barracão no fundo do terreno, de modo que pudesse organizar minhas actividades sem atrapalhar a rotina da casa.
Mamadi trabalhava para meu anfitrião como vigia nocturno. Como me via quase sempre de luz acesa, trabalhando até tarde, ele gostava de chegar à minha janela para uma pequena conversa e um cigarro. Ele tinha então 25 anos e havia nascido no interior, em uma tabanca perto de Bafatá. Veio para Bissau em 1969 acompanhando a mãe e seus irmãos, um pouco depois da morte do pai durante um bombardeio pela aviação portuguesa de uma tabanca onde estava de visita.
Naquele dia, conversamos sobre o tempo da guerra de libertação e sobre a morte de seu pai. (…)
Segundo ele, no tempo da guerra alguns comandantes da guerrilha se destacaram por terem habilidades especiais. Em situação de contato armado com as forças portuguesas, essas pessoas tornavam-se praticamente imortais.
As balas do inimigo disparadas contra eles não os alcançavam ou não perfuravam seus corpos. Outras vezes, as armas dos tugas simplesmente não disparavam.
Mas o maior de todos os poderes era a capacidade que esses guerrilheiros pela libertação da pátria tinham de ficar invisíveis. Mamadi nunca me deu muitos detalhes sobre a origem dessas habilidades. De modo vago, falou de alguns casos em que elas eram obtidas através da realização de cerimónias para os Iran (espíritos) de algumas etnias ou de algumas localidades.
Porém foi muito específico sobre as situações em que eram utilizados e sobre quem os utilizava. Os poderes místicos eram postos em acção em situações de combate contra os portugueses, no mato e, em geral, quando os nacionalistas estavam em franca inferioridade em armas e homens.(…)
Trajano Filho, em nota de rodapé na página 3, conta a história que um santomense lhe contou em 1991, a propósito do mesmo tema, passada com Amílcar Cabral em Cabo Verde.
(…) Segundo a história, o governador militar daquelas ilhas resolveu dar um baile. Na presença das autoridades militares portuguesas, em pleno salão de dança, surgiu de repente Cabral. Convidou a esposa do governador para dançar em meio à surpresa geral. Quando este se refez da surpresa, gritou pelos soldados, mas antes que estes chegassem Cabral desapareceu como havia aparecido. (…)
Foi muito falada até passar a lenda a história de Agostinho Sá, comandante do PAIGC, passada no Como (Komo).
(…) Após perder dois homens em uma escaramuça com as tropas portuguesas, o comandante Agostinho Sá organizou uma pequena coluna formada pelos melhores combatentes de seu grupo e tomou o rumo do acampamento português na ilha, que ficava instalado em uma clareira entre a praia e a floresta.
A coluna parou no limiar da mata, a cerca de quarenta metros do armazém onde estavam instalados os portugueses. Ali, o comandante planejou o ataque. De modo a poupar as vidas de seus companheiros, pois já haviam sofrido baixas na escaramuça anterior, ele decidiu agir sozinho.
Se houvesse mortes, que fosse somente a sua. Portanto, ordenou a seus homens que só disparassem depois de ouvirem algum barulho vindo do armazém. Então, de metralhadora presa às costas e com uma granada quase pronta para explodir em cada mão, Agostinho Sá se dirigiu para o armazém. O que se seguiu é narrado por Azevedo e Rodrigues (1) :
“De repente, para o espanto de todos, Agostinho se torna invisível. É verdade, todos juram. Caminha vagarosamente entre os soldados que estão deitados sobre o arroz…Os companheiros de Agostinho se amedrontam, os tugas olham várias vezes para onde ele está. E não reagem. Não esboçam nenhum movimento, não fazem uma única pergunta.
(…)
O certo é que Agostinho atravessa o pátio entre os soldados. Invisível para eles. Segue sem pressa, passos de cansaço tuga depois de horas de violência. Rosto sério, granadas apertadas nas mãos suadas. Decide: se for descoberto basta um gesto mínimo. E elas explodem.
Entra pela porta dos fundos. Dá passos indecisos na obscuridade repentina, os olhos adaptam-se ligeiros. Está numa peça transformada em alojamento pelos portugueses. Não precisa olhar para saber que há muitos deles…Alguns observam desinteressados, sem nenhuma reacção… (…)
Agostinho caminha até à porta que liga o alojamento improvisado ao bar do armazém. Se esticar o braço pode quase tocar nos tugas meio bêbados em redor do balcão, pesados de tanto álcool…
Em pé, na porta entre as duas peças. Morde o pino de segurança da primeira granada. Simultaneamente, num movimento enérgico de dedos, arranca o pino da que leva na mão direita. Atira as duas ao mesmo tempo. Elas rolam pelo chão do armazém, uma no bar, outra no alojamento.
O guerrilheiro vê – olhos assustados que cruzam com os seus, dando-se conta, confusamente, de que ocorre algo estranho. Alguma coisa que não estava prevista nos manuais militares nem nos planos traçados no quartel-general de Bissau. (…)
Não se lembra exactamente o que aconteceu. Se correu, se voou. Sabe que caiu entre os soldados que dormiam na rua. Os companheiros viram, as granadas explodiram dois segundos depois…” (1977: 100-101)
E continua, Wilson Trajano:
Ele correu em direção ao mato enquanto seus companheiros atiravam e arremessavam granadas contra os soldados que estavam do lado de fora do armazém.
Desesperados, os portugueses que ainda não haviam sido feridos fugiram em debandada rumo à praia, muitos deles caindo sob o pesado fogo guerrilheiro. A coluna só cessou fogo quando o ruído das turbinas dos jatos portugueses começou a se fazer ouvir mais forte do que o matraquear das armas automáticas.
Do lado português houve mais de dez mortos e sessenta feridos. Uma parede do armazém ruiu com a explosão; o telhado foi despedaçado e jogado ao longe. Muitos animais mortos. Do lado dos nacionalistas, nem uma perda, nem um ferido.
É com o espírito de desvendar o mistério do misteryu, de compreender o sentido mais radical das estórias de Mamadi e da narrativa de Azevedo e Rodrigues e de alcançar o significado da invisibilidade que passo à análise (2).
(...)
__________
Nota de vb:
(1) AZEVEDO, L. e RODRIGUES, M.P..1977 – Diário da Libertação (A Guiné-Bissau da Nova África). S. Paulo: Versus
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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